A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

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sexta-feira, 19 de setembro de 2008

"Aluna do Paraíso"


Aluna


Conservo-te o meu sorriso
para, quando me encontrares,
veres que ainda tenho uns ares
de aluna do paraíso...

Leva sempre a minha imagem
a submissa rebeldia
dos que estudam todo o dia
sem chegar à aprendizagem...

- e, de salas interiores,
por altíssimas janelas,
descobrem coisas mais belas,
rindo-se dos professores...

Gastarei meu tempo inteiro
nessa brincadeira triste;
mas na escola não existe
mais do que pena e tinteiro!

E toda a humana docência
para inventar-me um ofício
ou morre sem exercício
ou se perde na experiência...


Cecília Meirelles

___________


Pode parecer estranho, mas na segunda aula de Psicologia levei os alunos a sentirem o seu coração. E vi lágrimas nos olhos de alguns. O ambiente da sala de aula ficou muito denso. Alguns mostraram-se surpresos com o calor do seu peito. Eu disse-lhes que temos um Sol interior a irradiar-se bem no centro do nosso peito. E que os nossos sóis interiores estão em comunicação.
Depois apresentei-lhes Etty Hillesum. E disse-lhes que neste ano lectivo nos iríamos dedicar ao sonho de Etty Hillesum, o sonho de continuarmos a sua vida, ceifada pela bestialidade nazi, no campo de concentração de Auschwitz no dia 30 de Novembro de 1943. Durante estes meses de caminhada escolar vamos ler o seu diário e vamos tentar viver uma vida continuável. Vamos perseguir as suas palavras:

O viver e o morrer, o sofrimento e a alegria, as bolhas nos meus pés gastos e o jasmim atrás do quintal, as perseguições, as incontáveis violências gratuitas, tudo e tudo em mim é como se fosse uma forte unidade, e eu aceito tudo como uma unidade e começo a entender cada vez melhor, espontaneamente para mim, sem que ainda o consiga explicar a alguém, como é que as coisas são. Gostava de viver longamente para no fim, mais tarde, conseguir explicar, e se isso não me for dado, pois bem, nesse caso uma outra pessoa irá fazê-lo e então um outro continuará a viver a minha vida, ali onde a minha foi interrompida, e por isso tenho de viver a minha vida tão bem e tão completa e convincentemente quanto possível até ao meu derradeiro suspiro, para que o que vem a seguir a mim não precise de começar de novo nem tenha as mesmas dificuldades."

O nosso desafio será mesmo este: “um outro continuará a viver a minha vida, ali onde a minha foi interrompida”. E o que é uma vida continuável? No fundo será uma vida vivida eticamente. Uma vida que se entrelaça nas outras vidas e, com elas, se entretece no mundo, assumindo a uni-diversidade de tudo. Uma vida contável e assumida desde o âmago. Assumida, sempre e em primeiro lugar, como uma forma excelsa de criação. Vamos, então, procurar ser poetas:

"Acredito verdadeiramente que é possível criar, mesmo sem jamais ter escrito uma palavra ou pintado um quadro, apenas moldando a nossa vida interior. E isso também é uma proeza."

Coisa difícil. Porque pressupõe que saibamos reconhecer-nos a partir do que somos aquém da epiderme dos dias e da insensibilidade, da anestesia, do viver quotidiano, o viver da proximidade sem aproximação. Vai ser uma caminhada difícil. Que nos levará longe, pelo menos assim o espero. Longe de nós e das inúmeras coisas sem nexo que nos fazemos fazer. Até conseguirmos atingir um ponto de vista que nos permita espreitar em direcção do horizonte para onde apontam as palavras de Etty:

Sei do grande sofrimento humano que se vai acumulando, sei das perseguições e da opressão… Sei de tudo isso e continuo a enfrentar cada pedaço de realidade que se me impõe. E num momento inesperado, abandonada a mim própria — encontro-me de repente encostada ao peito nu da Vida e os braços dela são muito macios e envolvem-me, e nem sequer consigo descrever o bater do seu coração: tão fiel como se nunca mais findasse…"

E para onde apontam estas palavras? A partir de que linha axial elas se articulam? Que experiência humana veiculam? Poderemos nós compreendê-las e apreender-lhes o sentido transcensor e desafiante?
Como estancar o sangramento emocional que, desde a infância, consome por dentro os seres humanos que nascem e crescem nesta sociedade assente em sistemas geradores de esquizofrenia, de depressão e de insulamento egótico?
A escola deveria, precisamente, contribuir para desfazer esta trama. Mas a escola não deveria ter muros, nem deveria ser um espaço concentracionário onde se vive de acordo com um tempo segmentado e constringente. A este respeito o diagnóstico traçado por John Taylor Gatto do funcionamento da escola compulsiva está muito próxima da ideia de Agostinho da Silva segundo a qual a educação deveria estar baseada na vida. Os alunos são projectados para fora da vida, segregados do mundo dos adultos e encerrados numa teia conceptual anquilosante, massificadora e que embota a inteligência.
Mas não há aqui um apelo à escola-parque-de-diversões, a escola que temos sofre deste síndroma. Assenta na convicção de que o esforço é obsceno e que a sociedade que margina a escola não é responsável pelo acto de educar. Até a família perdeu muito da sua dignidade civilizadora.
E todos os grandes males a que tem assistido a humanidade, principalmente no século XX, resultam da abdicação cívica e ética da maioria dos membros das sociedades. Talvez por isso Etty tenha considerado que vivia num tempo em que cada homem deveria ser a sua Pátria. Cada homem de bem será, pois, uma ilha no meio da bestialidade e da desumanidade.
Mas, no fundo, há que acreditar no Coração. Há que acreditar desde o Coração.
Essa a via para a Frátria.


4 comentários:

Unknown disse...

Paulo,

Que palavras interessarão mais do que as de um professor que ainda teima em manter a sua humanidade em relação aos seus alunos/aulas?
É um privilégio ler-te.

Um beijo.

Paulo Borges disse...

Gostava de ser um dos teus alunos, Paulo. Coragem, nessa via realmente heróica e difícil!

Paulo Feitais disse...

Paulo, limito-me a seguir os bons exemplos que tive. Lembras-te dos meus profesores de Filosofia em Portugal? Acho que homenageio ambos ao convocar para a memória do professor Gama Caeiro, um homem bom, com uma erudição imensa que tornava ainda mais humanas a sua humildade e a sua candura.
:)

Paulo Feitais disse...

Anita, o privilégio é meu.
Sempre!
:)