"E Caim responde ao pai: «Quem no matou?
Não fui eu! Não fui eu, mas um fantasma
Gerado no meu ser!
Vi-o surgir da noite e erguer o busto
À altura do meu busto, e dominar-me...
E esse fantasma era ilusório sonho!
O Criador apenas conhecia
O barro da sua Obra. E só por isso
Veio de encontro a mim o seu castigo.»
Teixeira de Pascoaes, Regresso ao Paraíso, Assírio e Alvim, Lisboa, 1986, p.33.
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Podem as ilusões matar(-nos)?
O fratricídio só pode ser fruto da ilusão. Não é necessário descer aos infernos com Pascoaes, viandante muito experimentado nesses trilhos pouco conhecidos de nós outros, para o aprendermos da boca sombria de Caim.
Matar o outro, o outro visto como o que nos impede, a nós, de dominarmos o mundo, co-criado connosco, e, se calhar, para nós, mas não só para nós, é uma tendência libidinal bem entranhada no nosso psiquismo.
E por que razão Caim não matou a sombra de Abel? Se calhar porque Abel não era sombrio. Ou matou a sua sombra negra antes dela se poder apropriar das suas mãos terrosas, feitas de barro e saliva divina.
O problema surge quando confundimos as sombras com o barro.
Mas é muito difícil libertarmo-nos, na vida individual ou colectiva, do infantilismo. Quando se é menino brinca-se com castelos de areia, com tudo o que possa ser apropriado pela fantasia (é óbvio que hoje a coisa vem encaixotada e "engarrafada" em cds e dvds e é consumida já sem a saudável reinação de outros tempos). E é indiferente, para os meninos, o que possa resultar dali. Resulta enquanto resulta. E eles vão-se atribuindo potestades, têm jogos de dominação, há lideranças de recreio.
Ora, crescer é complicado quando o mundo, hoje, é um recreio. Vivemos num mundo infantil. Tudo vale. Tudo se aceita se agradar à seita.
O facto de lidarmos com outros seres humanos é uma coisa que não nos interessa. Quem os mandou nascer humanos? Quem nos mandou nascer humanos?
E quem nos demanda como humanos?
Talvez ninguém nos demande. Ou nos demande dessa forma.
E, já agora, para algum leitor mais atento que julgue que este texto não tem nada que ver com a lusofonia, deixo, aqui bem no meio, uma frase sobre a lusofonia: É.
Ora, sermos demandados como humanos é um privilégio. Significa que alguém reconhece a nossa humanidade.
E vermo-nos reconhecidos na nossa humanidade leva a que a tal sombra que matou Abel não será gerada a partir do nosso coração (que, como é óbvio, embora esteja muito esquecido, é uma coisa que todos temos).
Mas já assisti ao curioso fenómeno de ver essa sombra despontar precisamente quando uma pessoa trata bem outra pessoa. Por vezes parece que a bondade que nos é dirigida, mesmo quando é verdadeira, é uma forma refinadíssima de maldade. É que no mundo em que vivemos parece que parecer bom resulta apenas de duas possibilidades: da ingenuidade ou da maldade.
A tal história dos cordeiros vestidos de lobos e a das vítimas que se enamoram do seu destino.
A política, a autêntica, nada tem que ver com puericultura.
Se bem que faltem creches, jardins de infância, como agora se lhes chama, e os meninos de serviço se afadiguem a construir a imagem de que estão a investir na Educação. É triste ver como se vive uma meninice quando deveríamos assumir a maturidade como o nosso modo de sermos íntegros e verdadeiros.
E temos que perder a mania que o mundo é um espelho.
Temos que aprender a gostar de nós próprios, assim como somos.
Mas só se ama quem ama.
E só chama a si os outros quem se chama a si.
Mas aqui a coisa complica-se mais uma vez: o que é o "si"? Problema!
É claro que a coisa, aqui, aqui nestas linhas, é só retórica. Estou mais interessado em saber do Sol.
Mas isso é uma coisa minha.
Mas não deixa de ser, também, musical. E, já agora que estamos a falar dessa coisa, o ensino da música é muito importante. Em todos os níveis de escolaridade.
Ajuda a afinar o ouvido e a temperar os humores que mantêm a coesão do barro. E ajuda a que queiramos que as nossas fendas não sejam tapadas com cera. A coisa, depois, já não retine como deve ser.
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
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sábado, 13 de setembro de 2008
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3 comentários:
passei por acaso por aqui
só manifestar meu grande agrado
pelo que li
Caro poeta, amigo e confrade, (perdoa-me a linguagem críptica) Caim matou Abel porque Abel tinha que morrer, Abel tinha que morrer porque era filho de Adão, mas Caim era apenas filho de Eva que não o concebeu só. Caim é da prole do Anjo, Deus o marcou com o símbolo do Terceiro Olho, para que todas as criaturas o reconhecessem no seu estatuto e na sua tarefa: foi um construtor de cidades, inaugurou, no plano oculto do Livro de Cima (que, no mundo, os homens por lampejos divisam e imitam), a civilização humana.
Não desmereceu, no sangue derramado, a estirpe de Adão que todos somos, porque tanto de Adão como de Eva somos, e na nossa carne ecoa ainda o Coro dos Exércitos Celestiais e o martelo do Ferreiro e o crepitar do seu Fogo aceso na Palavra.
Abraço.
P. S. Todo o paganismo é polilatria do Deus Único, uma saudade, entre o olvido do apagamento da Língua Primeira e a reunião constante do Espírito a todo o Legado que perdemos e dentro de nós fala, constante, em cada lamento da nossa carne e das nossas vidas mortais.
Gostei do título.
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