"O que é a Beleza?
Leonardo Coimbra definiu-a como 'a unidade na variedade', mas o nosso filósofo não pretenderá com isso significar que ela seja apenas o arranjo harmonioso das múltiplas partes. A Beleza será para Leonardo Coimbra o esplendor do uno que se manifesta no diferente. Diferença é, etimologicamente, o mesmo que irradiação. A definição de Leonardo Coimbra faz logo surgir na ideia a forma da flor. O universo é para ele uma imensa corola ou coro fraterno: os seres não são absorvidos, nem tendem para ser absorvidos no uno; persistem em si, diferentes precisamente porque neles é o uno de que são o esplendor. Outra ilusão do espírito é julgar que igualdade é relativa a unidade; é, pelo contrário, a sua negação, a anulação das diferenças, o Nada. O Uno está presente em cada ser distinto. É a própria lei interior que organiza a energia, é a norma secreta do seu impulso de luz que não a deixa sucumbir no nada, no vazio, na morte sem regresso."
António Telmo, Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões
Gostava que os participantes deste blog lessem devagar e meditassem estas palavras do António Telmo. E, à luz delas, relessem o que aqui se tem dito sobre a Pátria, o trans-patriotismo, o império, a "língua portuguesa como Deus" e o Nada.
Acrescento uma nota sobre Camões, para que as coisas se situem:
No Canto IX d'Os Lusíadas, quando os portugueses do Gama regressam da Índia, Camões descreve-nos como a deusa do amor, Vénus, se dedica à preparação da Ilha dos Amores, coroação suprema e inesperada da ocidental viagem dos marinheiros. A deusa dirige-se antes de mais a Eros, seu filho - o próprio amor. Ora, que estava Eros a fazer, que fazia o Amor nesse momento em que a Deusa o encontra?
"... o filho frecheiro estava então
ajuntando outros muitos, que pretende
fazer uma famosa expedição
contra o mundo rebelde, porque emende
erros grandes que há dias neles estão,
amando cousas que nos foram dadas,
não para ser amadas, mas usadas" (IX.25)
O Amor preparava uma expedição de combate. "O dualismo aparece na Ilha do Amor marcado pela oposição do 'mundo vil e maligno' à 'potência do amor' (...) a 'famosa expedição contra o mundo rebelde' que altere 'o confuso regimento do mundo, antigo abuso'." (António Telmo)
A 'rebeldia' do 'mundo confuso', é o 'amar coisas que nos foram dadas não para serem amadas, mas usadas'; é a confusão igualitária entre coisas que não têm a mesma dignidade porque são intrinsecamente diferentes, e só podem ser ordenadas na fraternidade hierárquica do ser; é a aparente exaltação das coisas todas, que resulta só na elevação de coisa nenhuma. Contra ele, o "partido de Vénus" só pode ser o de amar o que é digno de ser amado, e não amar o que não merece, não pode ou livremente não quer ser amado - esse é o irredutível dualismo do amor. E isso o "frecheiro" e os seus celestes aliados - e as suas amorosas e subtis aliadas - exprimirão em cada uma das suas palavras, em cada um dos seus actos.
Ora, que diz, em Camões, o Amor, que diz ele do amor da Pátria?
Quando os navegadores cumprem a sua união amorosa e, na companhia tântrica das Ninfas, embarcam para regressar a Lisboa e fazer "claro o Rei que tanto amais", é-lhes dito:
Leonardo Coimbra definiu-a como 'a unidade na variedade', mas o nosso filósofo não pretenderá com isso significar que ela seja apenas o arranjo harmonioso das múltiplas partes. A Beleza será para Leonardo Coimbra o esplendor do uno que se manifesta no diferente. Diferença é, etimologicamente, o mesmo que irradiação. A definição de Leonardo Coimbra faz logo surgir na ideia a forma da flor. O universo é para ele uma imensa corola ou coro fraterno: os seres não são absorvidos, nem tendem para ser absorvidos no uno; persistem em si, diferentes precisamente porque neles é o uno de que são o esplendor. Outra ilusão do espírito é julgar que igualdade é relativa a unidade; é, pelo contrário, a sua negação, a anulação das diferenças, o Nada. O Uno está presente em cada ser distinto. É a própria lei interior que organiza a energia, é a norma secreta do seu impulso de luz que não a deixa sucumbir no nada, no vazio, na morte sem regresso."
António Telmo, Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões
Gostava que os participantes deste blog lessem devagar e meditassem estas palavras do António Telmo. E, à luz delas, relessem o que aqui se tem dito sobre a Pátria, o trans-patriotismo, o império, a "língua portuguesa como Deus" e o Nada.
Acrescento uma nota sobre Camões, para que as coisas se situem:
No Canto IX d'Os Lusíadas, quando os portugueses do Gama regressam da Índia, Camões descreve-nos como a deusa do amor, Vénus, se dedica à preparação da Ilha dos Amores, coroação suprema e inesperada da ocidental viagem dos marinheiros. A deusa dirige-se antes de mais a Eros, seu filho - o próprio amor. Ora, que estava Eros a fazer, que fazia o Amor nesse momento em que a Deusa o encontra?
"... o filho frecheiro estava então
ajuntando outros muitos, que pretende
fazer uma famosa expedição
contra o mundo rebelde, porque emende
erros grandes que há dias neles estão,
amando cousas que nos foram dadas,
não para ser amadas, mas usadas" (IX.25)
O Amor preparava uma expedição de combate. "O dualismo aparece na Ilha do Amor marcado pela oposição do 'mundo vil e maligno' à 'potência do amor' (...) a 'famosa expedição contra o mundo rebelde' que altere 'o confuso regimento do mundo, antigo abuso'." (António Telmo)
A 'rebeldia' do 'mundo confuso', é o 'amar coisas que nos foram dadas não para serem amadas, mas usadas'; é a confusão igualitária entre coisas que não têm a mesma dignidade porque são intrinsecamente diferentes, e só podem ser ordenadas na fraternidade hierárquica do ser; é a aparente exaltação das coisas todas, que resulta só na elevação de coisa nenhuma. Contra ele, o "partido de Vénus" só pode ser o de amar o que é digno de ser amado, e não amar o que não merece, não pode ou livremente não quer ser amado - esse é o irredutível dualismo do amor. E isso o "frecheiro" e os seus celestes aliados - e as suas amorosas e subtis aliadas - exprimirão em cada uma das suas palavras, em cada um dos seus actos.
Ora, que diz, em Camões, o Amor, que diz ele do amor da Pátria?
Quando os navegadores cumprem a sua união amorosa e, na companhia tântrica das Ninfas, embarcam para regressar a Lisboa e fazer "claro o Rei que tanto amais", é-lhes dito:
"podeis-vos embarcar, que tendes vento
e mar tranquilo, para a Pátria amada." (X.143)
Falou o Amor aos portugueses, e maior universalidade que a dele não pode haver. Falou o Amor após o encontro (não antes!), e reconheceu digna de amor a Pátria: Pátria lugar de regresso mesmo após a estadia na Ilha dos Amores, e de regresso para combate: porque a união com as ninfas, só por si, não venceu a baixa mistura do mundo. Falou o Amor, e fala diferente não é mais que confusão: influência e acção do 'mundo rebelde'.
Não há, no amor da Pátria, nem intrínseca rebeldia, nem necessária confusão, nem terrena insuficiência; e se nela, até à derrota final do "mundo rebelde", deste mundo desprezível que não merece o nome de "nosso", houver coisas misturadas que sejam indignas de amor - "nódoas do terreno manto" lhes chama Camões - elas revelar-se-ão e dissipar-se-ão à medida que a nossa coragem as enfrentar. Sob essas nódoas emergirá um rosto, na beleza calma desse rosto o prenúncio da verdade maior.
e mar tranquilo, para a Pátria amada." (X.143)
Falou o Amor aos portugueses, e maior universalidade que a dele não pode haver. Falou o Amor após o encontro (não antes!), e reconheceu digna de amor a Pátria: Pátria lugar de regresso mesmo após a estadia na Ilha dos Amores, e de regresso para combate: porque a união com as ninfas, só por si, não venceu a baixa mistura do mundo. Falou o Amor, e fala diferente não é mais que confusão: influência e acção do 'mundo rebelde'.
Não há, no amor da Pátria, nem intrínseca rebeldia, nem necessária confusão, nem terrena insuficiência; e se nela, até à derrota final do "mundo rebelde", deste mundo desprezível que não merece o nome de "nosso", houver coisas misturadas que sejam indignas de amor - "nódoas do terreno manto" lhes chama Camões - elas revelar-se-ão e dissipar-se-ão à medida que a nossa coragem as enfrentar. Sob essas nódoas emergirá um rosto, na beleza calma desse rosto o prenúncio da verdade maior.
3 comentários:
Caro Casimiro, não podendo para já comentar este post importante, remeto quem o desejar para a leitura que faço de tudo isto num texto publicado numa revista e no meu site: "Eros e Iniciação em Luís de Camões. A Ilha dos Amores".
Caro Casimiro
Uma vez mais, obrigado por mais este seu contributo, até para a definição deste projecto...
A esse respeito, e ainda em resposta a algumas considerações suas anteriores, tenho a dizer que este “excesso de transparência” da nossa parte é, simultaneamente, a nossa fraqueza e a nossa força. Como eu próprio já aqui escrevi algures, quem quiser fazer um dia a história deste projecto não precisa de consulta nenhum arquivo secreto – basta reler o blogue com a devida atenção, desde o início…
Porventura, não deveríamos deixar de transparecer tanto todas estas crises existenciais – o que afinal somos, o que afinal queremos ser? Essencialmente um movimento internacional lusófono, ou, sobretudo, um movimento trans-lusófono, ou tudo isso ao mesmo tempo?
A esse respeito, e já que o nome de Leonardo foi aqui convocado, deixo-lhe, em troca, este pensamento dele, que cito de memória: “queríamos ser os caminheiros de todos os caminhos, mas, para andar, é preciso que algum seja escolhido e pisado”.
Caro Casimiro, sem poder comentar tudo o que haveria a comentar, apenas pergunto: após haver aportado à Ilha dos Amores, que amor da Pátria pode haver senão o de a levar, levando a todos os compatriotas, o mais e o mais rápido possível à mesma Ilha dos Amores (que não é um lugar, mas uma experiência-visão de unitotalidade, uma divina visão com os olhos da carne, como a que o Gama tem no cume do alto monte)? Ter outro amor à Pátria não será ainda perpetuar os erros do "mundo rebelde", "amando cousas que nos foram dadas, não para ser amadas, mas usadas" (Os Lusíadas, IX, 25)? O verdadeiro amor da Pátria, que é o de a descentrar para a Ilha dos Amores, ou seja, para a iluminação espiritual, é o único caminho que vale a pena escolher e pisar, pois fazê-lo vale por seguir o melhor de todos os possíveis.
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