LITERATURA PORTUGUESA (III)
Com o século XVII, e por motivos que ainda não estão suficientemente dilucidados, visto que os apresentados até hoje mais podem aparecer como efeitos do que como causas, a literatura portuguesa apresenta-se com certo aspecto de decadência. No verso, com uma pronunciada influência de Gôngora, aparece um mau gosto de que já não é responsável o poeta espanhol; ora se procura expor um pensamento enredado e confuso, ora se entretêm os poetas em rebuscamentos de forma que têm um interesse puramente técnico, mas que não deixaram de exercer a sua influência no desenvolvimento posterior da poesia portuguesa. As colecções de poesias do século XVII, muitas das quais inéditas, mas de que se publicaram A Fenix Renascida e o Postilhão de Apoio, não revelam nenhum grande poeta ; apenas merece citação Aparte pelo seu engenho e sentido de harmonia verbal Jerónimo Vahia (1623-1688). Os poetas de epopeias, que são numerosos e todos mais ou menos influenciados por Camões, nada valem; e as três poetisas religiosas, Maria do Céu, Violante do Céu, Madalena da Glória, não conseguem impor-se nem pelas concepções místicas, nem pelos talentos poéticos.
Os prosadores valem muito mais do que os (poetas, embora, se exceptuarmos Frei Luís de Sousa 1555-1632), que segue na corrente dos prosadores do século XVI, estejam, mesmo os melhores, sob a influência dos defeitos literários do tempo. Frei Luís de Sousa, que escreveu a Vida do Arcebispo D. Frei Bartolomeu dos Mártires, a História de S. Domingos e os Anais de D. João III é um prosador cheio de ritmo, de sentido da beleza formal, de vigor descritivo. Frei Manuel Bernardes (1644-1710), de nulo interesse quanto a ideias, tem na Nova Floresta páginas que se podem contar entre as mais perfeitas da nossa prosa. Rodrigues Lobo (1580-1622), de preocupações intelectuais bastante limitadas, ensina regras de etiqueta na Corte na Aldeia e conta amores pastoris na Primavera, no Pastor Peregrino, no Desenganado; é poeta com algumas qualidades, mas de certo modo insensível à monotonia dos temas e das formas.
Os dois grandes prosadores do século são D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) e o Padre António Vieira (1608-1697). D. Francisco Manuel, que pouco vale como poeta, é um historiador arguto e de grande talento narrativo nas Epanáforas e na História da Catalunha (em castelhano), um moralista bem desperto para a realidade e de aguda crítica nos Apólogos Dialogais e na Carta de Guia de Casados, um comediógrafo hábil na construção e no desenho das personagens com o auto em verso O Fidalgo Aprendiz. Não há, no entanto, na sua obra, a discussão de nenhum problema de interesse essencial. Já o mesmo não acontece com o Padre António Vieira, cujo temperamento e cujas tendências intelectuais o arrastavam para a política de preferência à teologia; alguns dos seus sermões são de uma audácia extraordinária, quer no tratamento dos temas de fé, quer sobretudo na crítica ao governo do Brasil; o interesse humano posto na defesa dos índios, a energia da luta contra os que iam ao Brasil apenas para explorar quem por lá trabalhava, a clareza e a justeza de algumas das suas ideias económicas e sociais, dão ao Padre António Vieira uma superioridade que mais se acentua com o seu estilo riquíssimo, vigoroso, exacto, perfeitamente modelado. Se não escapou aos defeitos do tempo, manteve-se muito acima dele pela força da sua inteligência, a coragem da sua acção, a amplitude no tratamento de certo número de problemas.
A partir dos meados do século XVIII desenvolve-se uma reacção contra o que caracterizava a época anterior, quer no aspecto geral do pensamento, quer no domínio mais restrito da literatura. Alguns homens em contacto com as correntes culturais europeias, por exemplo Verney, o autor do Novo Método de Estudar, e Ribeiro Sanches, que escreveu as Cartas sobre a Educação da Mocidade, pretendem reintegrar o país no espírito europeu, considerando que se tinha afastado dele logo que se encerrou a época dos descobrimentos; insistiram sobretudo, no que se referia à necessidade de progresso nos domínios das ciências exactas e das técnicas, mas, como não podia deixar de ser, influíram ou directa ou indirectamente numa renovação do gasto literário. O gongorismo é o apontado como uma traição à inteligência, sem que nenhum dos seus críticos tenha compreendido o que nele havia de apuramento estético; a atitude devia-se, por um lado, à inevitável esquematização de quem ataca, por outro lado, à falta de gosto artístico, de sensibilidade literária dos que se levantaram a criticar. O movimento, no campo da ciência e da técnica, vingou por algum tempo, embora, por motivos que não eram talvez de plano intelectual, não tivesse lançado raízes bastante profundas. Quanto à literatura, os resultados foram menos brilhantes.
Efectivamente, saiu-se da obscuridade do século XVII para cair numa clareza que vinha mais das limitações do que duma forte ordenação da inteligência. Os escritores deixam-se prender por um classicismo estreito e artificial, que não tinha quase nada de um verdadeiro classicismo, exactamente porque não havia nenhuma forte paixão, nenhum pensamento profundamente sentido ; faziam-se imitações formais de imitações formais, procurava-se o classicismo romano de preferência ao classicismo grego e os autores do século XVIII francês de preferência aos autores do século XVII. No entanto, como sempre acontece, os melhores de certo modo conseguiram escapar à influência do tempo, pelo menos nalgumas das suas composições.
O teórico do neo-classicismo foi Correia Garção (1724-1772) que proclamou a necessidade do estudo, a desconfiança da inspiração, o trabalho paciente sempre aconselhado por todos os autores de Artes literárias; mas são exactamente as obras em que menos se sente a aplicação dos princípios aquelas que nos aparecem como realização artística de maior valor; às Odes, justamente esquecidas, antepõem-se os sonetos sabre pequenos episódios familiares; e na Cantata de Dido, que devia aparecer como o modelo de poesia do século XVIII, vale talvez mais o vago romantismo, as emoções novas, o sentido da cor, a admissão do apaixonado movimento, do que a nitidez da linha melódica, do que a marmórea construção do verso. De Reis Quita (1728-1730), cujas tragédias são bastante inferiores, poder-se-iam citar, como não tendo perdido todo o interesse, algumas cenas de Inês de Castro e de Licore, sem que, no entanto, se conteste a harmonia e a limpidez do verso. Cruz e Silva (1731-1799) ficará somente por algum trecho do Hissope, embora ele se possa contar entre os melhores poemas herói-cómicos da literatura europeia; mas o próprio género vale pouco.
Tomás António Gonzaga (1764-1807), poeta luso-brasileiro, afastando-se bastante da corrente neo-classicista, atinge na Marília de Dirceu uma finura, uma graciosidade lírica em que toda a artificialidade se desvanece, e não receia os temas em que se pode revelar oposição às fórmulas sociais do seu tempo ou aqueles que anunciam já o romantismo que se aproxima. E, no entanto, com Bocage (1765-1805), que este pré-romantismo se define melhor; o temperamento exaltado e doentio do poeta, o seu perfeito sentido da musicalidade do verso, a facilidade da improvisação, dão-lhe entre os poetas do século XVIII, um lugar de nítida superioridade. Nem José Anastácio da Cunha (1744-1782), nem a Marquesa de Alorna (1750-1839), nem Filinto Elísio (1734-1819), podem, sequer de longe, competir com Bocage, a quem, no entanto, prejudicaram muito, quer os defeitos da sua personalidade, quer as pressões de vária ordem que sabre ele se exerceram.
Aparte do neo-classicistas ou arcádicos (das Arcádias ou academias em que se reuniam) e dos pré-românticos, situa-se Nicolau Tolentino (1741-1811), poeta satírico em que se reuniam dotes de observação, de crítica e de sensibilidade que o habilitaram a compor algumas das melhores sátiras portuguesas (O Bilhar, O passeio, A função, A guerra); Nicolau Tolentino é também um dos artistas mais perfeitos do verso, um dos poetas que têm mostrado maior finura no ajustamento vocabular.
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