LITERATURA PORTUGUESA (II)
Com o século XVI e devido à empresa dos descobrimentos e conquistas em que se tinham empenhado os portugueses, a literatura muda quase inteiramente de carácter. No entanto, há persistência das formas tradicionais e, mesmo, em certos casos, de pensamento medieval, no grupo de poetas a que se convencionou dar o nome de poetas da medida velha. No romance, aparece Bernardim Ribeiro (1482?-1552?), também autor de cinco Éclogas em que é evidente, quanto ao assunto, a influência de bucólicos estrangeiros; a sua obra mais importante é, contudo a Menina e Moça, de composição um pouco embaraçada, com elementos de romance pastoril, de romance sentimental e de romance de cavalaria; o que mais importa, é, porventura, o tom que o escritor consegue manter em quase toda a obra, um tom elegíaco, de resignado sofrimento ante os desastres da vida, e o estilo, de qualidades quase femininas, pela delicadeza, a branda harmonia, o profundo repasse de tristeza, dado na própria qualidade musical das palavras. Cristóvão Falcão (1515?-1577), em que se tem pretendido por vezes ver apenas como que um pseudónimo de Bernardim, não lhe é inferior em emoção poética nem em concepção da vida que o autor, sem propriamente a exprimir, comunica através de todo o episódio que narra no Crisfal.
Gil Vicente (1465?-1537?) tem ligações mais directas com os poetas satíricos dos cancioneiros provençalescos e do Cancioneiro de Resende e a sua obra, pelo movimento geral, integra-se muito mais na Idade Média do que no Renascimento; as próprias alusões às empresas de além mar são ainda feitas sob o ponto de vista medieval. Os seus Autos, quase sempre satíricos, embora com trechos líricos de excelente qualidade, são simples apontamentos, esboços de obras que ficaram por completar; a construção é bastante defeituosa, nenhum dos caracteres aparece explorado a fundo, nenhuma das situações aproveitada como o poderia ser; o talento de Gil Vicente dispersa-se em improvisos, sem dúvida notáveis, mas que não podem de modo algum competir com as grandes obras do teatro mundial. No entanto, não faltavam ao poeta nem a imaginação, nem a facilidade do verso, nem o sentido do teatro, nem a objectividade, nem até uma certa elevação de pensamento; o meio que lhe permitiu escrever, a corte, prejudicou-o também pela futilidade, pelo carácter breve de divertimento que exigia em tudo, e que não podia ter deixado de marcar Gil Vicente, apesar da sua relativa independência de juízos. Em todo o caso, alguns dos seus melhores trabalhos, o Auto da Índia, a Farsa de Inês Pereira, os Autos das Barcas, Quem tem farelos, Jubileu de Amores, Auto da Feira, o Velho da Horta, o Triunfo do Inverno, têm qualidades inegáveis de força crítica, de inspiração e de originalidade.
A influência dos descobrimentos só aparece plenamente com os historiadores, os viajantes e os sábios e os poetas épicos. João de Barros, o primeiro no tempo (1496?-1570), escreveu as Décadas da Ásia, fragmentos de uma história geral que não chegou a completar, em que narra principalmente o descobrimento do caminho marítimo para a Índia e as lutas dos portugueses com os africanos e os índios. A obra assenta sobre uma documentação muito sólida, mas João de Barros concebia a história como uma epopeia: tinha de se exaltar a nação portuguesa, o que se obtinha tanto pela deformação de certos factos históricos, de resto de pequena importância, como pelo empolado do estilo, imitado do latim de Tito Lívio, com fraco sentido das possibilidades da prosa portuguesa da época. Mais realistas e, portanto, mais de acordo com o espírito prático e científico dos descobrimentos, são um Fernão Lopes de Castanheda (1500-1559), autor da História do descobrimento e conquista da Índia, ou um Gaspar Correia (1495-1565?), que escreveu as Lendas da Índia; ê possível, por vezes, pela comparação de passos das várias obras, verificar o trabalho de imaginação e de embelezamento que houve da parte de João de Barros. Diogo do Couto (1542-1616), embora tivesse continuado as Décadas deste último historiador, teve a experiência pessoal da Índia e apresentou-se com um espírito bastante diferente do do seu predecessor; o diálogo do Soldado Prático é mesmo uma obra violenta de crítica à administração pública na Índia. Damíão de Góis (1602-1574) é de carácter bastante diferente, o que é natural dado o seu contacto com as correntes do pensamento europeu mais influentes do seu tempo; é um homem culto, bastante erudito, e que procura acima de tudo apurar a verdade, tanto na Crónica do Príncipe D. João (D. João II), como na Crónica de D. Manuel.
Dos viajantes, o mais notável é Fernão Mendes Pinto (1510-1583), autor da Peregrinação, narrativa de aventuras extraordinárias por terras e mares da Índia, da China e do Japão; as duas características fundamentais de Mendes Pinto, o espírito sinceramente religioso e o amor da aventura, levam-no tanto a afirmações de carácter moralista e satírico como a empresas em que, segundo parece, nem sempre estava de acordo com os princípios que nobremente defendia. Ao lado da sua devem citar-se as obras de Duarte Barbosa, O Livro de Duarte Barbosa, de António Galvão (?-1557), Tratado dos Descobrimentos, de Frei João dos Santos, Etiópia Oriental, de António Tenreiro, Itinerário, de Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo de Situ Orbis, que não são mais do que algumas das muitas que nos aparecem neste século e no seguinte. Como documento realista, embora de nulo valor literário, sobressaem as narrações de naufrágios compiladas na História trágico-marítima. Dos sábios directamente interessados nos trabalhos dos descobrimentos são os principais D. João de Castro (Roteiros), Pedro Nunes (Tratado da Esfera), Garcia da Orta (Colóquio dos Simples e Drogas).
Os poetas épicos Corte Real (1533-1588), com o Segundo Cerco de Diu e o Naufrágio de Sepúlveda, Quevedo, com Afonso Africano, são nitidamente inferiores, quanto a dotes artísticos e, muitas vezes, quanto a simples bom senso. Mais sentido de epopeia se encontra, por exemplo, num João de Barros, num Gil Vicente ou num dos viajantes, e até, embora se possa estranhar o facto, num místico como Amador Arrais (Os Diálogos); é também caso isolado, porquanto nem Heitor Pinto, com a Imagem da Vida Cristã (se exceptuarmos as suas alusões aos heróis da índia), nem Tomé de Jesus (Os Trabalhos de Jesus), dão grande importância aos acontecimentos do mundo profano, sem que por isso atinjam grandes profundidades místicas.
Paralelamente à corrente de escritores cuja obra se inspira directa ou indirectamente dos descobrimentos, surgem os poetas influenciados pelo humanismo e pela poesia quinhentista italiana; o chefe da escola é Sá de Miranda (1485-1558) que poucas vezes conseguiu ser poeta, embora sejam bastante numerosos os seus versos; dos sonetos só um ou dois (À morte da mulher), (A um retrato da mulher), se poderão mencionar como indo além do nível habitual e é nas Cartas em verso de sete sílabas que se tem de buscar o melhor de Sá de Miranda, mais ainda, porém, no que respeita a carácter do que no que entra propriamente em campo literário; no entanto, na Canção a Nossa Senhora a forma corresponde quase perfeitamente à emoção do poeta. Vale talvez um pouco mais do que ele António Ferreira (1528-1569), autor de Inês de Castro, tragédia à maneira grega, e de poesias várias em que frequentemente o poeta se deixa vencer pelo peso da erudição. Os melhores de todos os poetas do mesmo grupo são Diogo Bernardes (1530?-1595) e seu irmão, Frei Agostinho da Cruz (1540-1619); Diogo Bernardes (O Lima) é um poeta cheio de delicadeza e de sentido da harmonia do verso e, em algumas das suas composições, atinge uma grandeza suficiente para ter sido confundido com Luís de Camões; Frei Agostinho da Cruz, inferior a ele, é, no entanto, o autor de poesias religiosas sinceramente sentidas e muitas delas impregnadas da solidão, da majestade e da graça das paisagens da Arrábida.
É com Luís de Camões (1524?-1580) que se faz a síntese dos vários aspectos do século XVI, quer quanto à forma, quer quanto ao tema das suas poesias. Camões é a um tempo o poeta medieval que defende a Fé, com todo o espírito da cruzada, e tem pela sua amada ideal o respeito do cavaleiro trovador, e o poeta do Renascimento italiano, apaixonado por Platão, sobretudo no que se refere à concepção do amor. O seu génio criador permite-lhe uma junção harmoniosa de todos os elementos: no fundo, eles não são mais do que o objecto que permite a realização das múltiplas possibilidades do seu espírito, do que o excitante para que se exprima o que constitui o fundamento da sua força poética. Pela amplidão e variedade dos temas, pela eloquência magnífica dos melhores passos dos Lusíadas, pela suavidade e pureza incomparáveis da linguagem nas poesias líricas, Luís de Camões é um dos grandes poetas do mundo e talvez com Antero o único dos escritores da língua portuguesa que até hoje se elevou a planos verdadeiramente universais. E ainda, ao contrário do que geralmente se supõe, melhor poeta lírico do que épico, embora haja nos Lusíadas, alguns trechos (Batalha de Aljubarrota, Os Doze de Inglaterra, parte do Episódio do Adamastor) que suportam comparação com as grandes epopeias; mas, mesmo na epopeia se afirma o lírico (episódio de Inês de Castro, história amorosa do Adamastor, episódio da Ilha dos Amores); é, no entanto, nos sonetos, nas oitavas, nas canções, na paráfrase do salmo Super Flumina (Sôbolos rios), que Luís de Camões dá toda a medida das suas possibilidades como pensador e como poeta; o amor da realidade em nada contendeu com as suas tendências platonistas, pelo contrário lhes deu mais vigoroso impulso de ascensão; por outro lado, o gosto da evasão, ou pela acção ou pela filosofia, não atenuaram em nada o sentido trágico da vida sem o qual é difícil, senão impossível, a existência de um poeta de autêntico valor.
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