Colmeal, segunda parte - História de uma Injustiça
Parte II,
(continuação)
Caiu a noite, levanta-se uma brisa que parece uma benção. António Martinho Baptista, director do centro de Arte Rupestre, está impressionado.
Deslocou-se ali a nosso pedido para também ele partilhar o segredo de Aires e dar-lhe validade.
O arqueólogo, personagem que ficará na história das descobertas de Foz Côa, já andava por ali há algum tempo com a sua equipa.
Descobriram pinturas rupestres num conjunto de cinco abrigos mesmo na aldeia.
Nessa altura, olhou para as ruínas apenas como mais um tesouro de informação histórica.
Pensou:"Que belas ruínas arqueológicas." Agora, ao ouvir a narrativa daquelas gentes que corre entrecortada pelo choro de Aires, olha de novo para os escombros da velha aldeia como quem apresenta condolências: "Como é possível semelhante crime em pleno Século XX?" Estende a mão direita e pousa-a no ombro do outro: "Amigo Aires, chegámos até aqui porque descobrimos uns abrigos pintados, mas fazendo ligação entre a descoberta das pinturas rupestres áquilo que é a história dos nossos dias, porque a História passada só tem razão de ser se for vivida,actuante, teria todo o gosto, através do estudo que faremos aqui da arte pré-histórica, em contribuir para que a sua aldeia ganhe nova alma e nova vida."
Que nem de propósito: o céu carregou-se de nuvens e promete presentear-nos com os braços luminosos dos trovões.
A equipa de António montou andaimes no abrigo onde se descobriram as pinturas rupestres.
Um gerador torna fantasmagóricos os cabeços que guardam o Colmeal.
Fernando Barbosa, desenhador de arte rupestre, com um pincel retira o pó do painel; os rabiscos pintados no xisto do abrigo pré-histórico ganham formas.
Depois borrifa-os e espera um pouco. A água entranha-se na rocha e as cores da pintura ganham vida.
Fernando começa o recalcamento das pinturas, no plástico polivinil que colocou no painel.
Com uma caneta vermelha copia as figurinhas que o tempo apagou.
A cor é quase fiel ao pigmento vermelho, feito á base de óxido de ferro que o homem, já no paleolítico, retirava do hermatite para assinalar o seu território.
Passamos todos os semáforos do tempo para reviver.
Aires sorri com o esbanjamento das crianças a cada explicação de António.
Aquilo a que o seu povo chamava a Caverna dos Riscos fica registado cientificamente. "Trata-se de um painel com onze figuras humanas ordenadas em várias posições, umas para cima e outras para baixo.
A disposição delas e o facto de estar aqui um casal claramente identificado sugere uma dança fálica.
A figura humana, ao contrário da arte paleolítica onde predominam os animais é o tema dominante. O tema fundamental deles é o seu auto-retrato".
Todos estamos petrificados com os marcos notáveis carimbados pelos nossos antepassados.
Por momentos ficamos presos ás emoções milenares.
Aires, esse, que vive assombrado pela recordação dos seus, aproveita cada momento para se livrar do jugo do passado.
Tente tocar com os dedos no painel, fazer parte daquelas impressões digitais como se a osmose fosse mais uma prova da sua luta.
Não consegue. Mas a aproximação do corpo ao xisto provoca uma corrente que lhe transforma o rosto, o olhar, a pele.
A sua mão conquistava finalmente a sã substância da meninice que lhe roubaram.
Nada se altera no rosto de António, onde está desenhada há muito uma espontânea alegria.
Os olhos do arqueólogo são o ecrã da História.
Podia ali ficar o resto da vida dedicando-se unicamente a pensar, a lembrar e a olhar.
Os outros vergam-se ao calor que os ferrara durante o dia.
A noite fechava-se e o segredo de Aires ficava suspenso.
António mantinha frieza, mas estava inquieto. Formávamos uma roda de três crianças que Aires dominava.
A procura do tesouro inicia-se de manhã mas às horas dos gozadores.
Estava alta , e felizmente o sol não nos açoitava.
Do Colmeal seguimos para a aldeia anexa ao Bizarril que enterrara os seus mortos no cemitério do Colmeal r na Igreja matriz de São Miguel festejara as cerimónias do baptizado e dos enlaces que eram para sempre. As memórias sobem com os raios do dia, e as paragenspara descanso a meio do cabeço vertem lembranças. Não há dúvida que António está no seu mundo, o útero da terra.
Estamos na altura das colheitas, Junho; falta um mês e um ano para o cinquentenário da tragédia do Colmeal.
Nessa altura, António tinha sete anos, dava os primeiros passos na escola primária.
Emparelhava com Aires na classe social mas não na fortuna.
Nascera numa padaria, abraçado pelo calor do forno e as essências do trigo.
No Alentejo, Alter do Chão, o antigo regime deixava também as suas marcas.
Havia bufos, gente da Legião Portuguesa, que se podiam contar como as searas a registar a discórdia geral daquele povo inflamado.
Na sua casa tarbalhava-se noite e dia.
De manhã, a mãe vendia o pão, muitas vezes o único passadio dos pobres.
À noite, o pai punha mãos à massa e esperava a fornada...
(continua)
Trecho de um registo feito por Felícia Cabrita, publicado no jornal Ecos da Marofa, ao qual foi cedido pela própria.
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