Para além de ter sido o filósofo do “outro” do pensar, de todo o ser e de si próprio, Pessoa foi também, a nosso ver, o filósofo do “outro” de nós mesmos, não tivesse sido ele, a par de Teixeira de Pascoaes e de Agostinho da Silva, entre outros, o filósofo que mais profundamente reflectiu sobre o que significa “ser português”. Para muitos, “ser português” significa apenas ter nascido em Portugal – apenas isso, pouco mais do que isso. Para Pessoa, ao invés, isso é precisamente o que menos importa – dado que não é no início, ao nascermos, que sabemos se somos ou não portugueses, mas apenas no fim, na hora, no instante da morte – a seu ver, com efeito, só no fim, na hora, no instante da morte, saberemos se fomos ou não portugueses. Tudo isto porque, para Pessoa, “ser português” é, essencialmente, ter um destino, um destino espiritual, a cumprir – só se sendo pois assim português na exacta medida em que se cumpre esse mesmo destino. Nessa medida, Pessoa não se dirige àqueles que olham para o seu bilhete de identidade e se consideram portugueses apenas porque aí, pretensamente, se atesta tal “estatuto”. Pessoa dirige-se antes àqueles que, independentemente de terem ou não esse bilhete de identidade, de terem ou não nascido em Portugal, se mostram disponíveis para cumprir esse destino. Só, efectivamente, quem se mostra disponível para cumprir esse destino, esse destino espiritual, pode aspirar a ser português. Quem, ao invés, não se mostra disponível para cumprir esse destino, esse destino espiritual, bem pode acenar com o seu bilhete de identidade, com o seu passaporte, com o que quer que seja. Escusa igualmente de mostrar a sua árvore genealógica ou de fazer qualquer teste sanguíneo. Não há “sangue português”, não há nada que, à partida, ateste esse “estatuto”. Ser português não é, aliás, um “estatuto” – é, tão-só, muito simplesmente, à luz desta visão, um “estado de espírito”.
Se há poema onde nos é revelado esse destino, esse poema é a Mensagem. Neste poema, neste conjunto de poemas, triádica, perfeitamente estruturado, começa o poeta por nos dizer: "A Europa jaz,(...)/ De Oriente a Occidente jaz, fitando,/ (...)/ Olhos gregos, lembrando.// Fita, com olhar sphyngico e fatal,/ O Occidente, futuro do passado.// O rosto com que fita é Portugal.”[1]. A voz que assim se faz ouvir, se é que nós na verdade a ouvimos, é, muito mais do que a voz do poeta, a voz do próprio tempo. Diz-nos ela que a Europa jaz, reduzida que está ao que resta das ruínas gregas, à nostalgia de um “paraíso perdido”, como que ancorada no impasse de um “regresso eternamente impossível”. Para a libertar desse impasse, há um rosto, um rosto que fita, um rosto, um espelho no qual ela se fita: Portugal. Eis, com efeito, nas palavras de Pessoa, o destino de Portugal, desde logo, da “arte portuguesa”: “Arte portuguesa será aquela em que a Europa – entendendo por Europa principalmente a Grécia antiga e o universo inteiro – se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações – a Grécia passada e o Portugal futuro – receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras.”[2]. Ainda nas palavras do próprio Pessoa, é esse, efectivamente, o destino da nossa nação – ser não só ela “mas também todas as outras” –, o nosso próprio destino – “sermos tudo”: “Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundido-os portuguesmente no Paganismo Superior. Não queiramos que fora de nós fique um único Deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa!”[3].
Toda a nossa história foi pois assim, nessa medida, uma demorada preparação para a concretização desse destino. Desde Viriato, aquele cujo ser “é como aquella fria Luz que precede a madrugada”[4], que todos os seus personagens foram os intérpretes dessa obra que, desde sempre, beneficiou da “assistência divina” – eis, pelo menos, o que Pessoa expressamente nos assegura, logo a abrir a segunda parte da sua Mensagem: “Deus quere, o homem sonha, a obra nasce./ Deus quiz que a terra fosse toda uma,/ Que o mar unisse, já não separasse./ Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,// E a orla branca foi de ilha em continente,/ Clareou, correndo, até ao fim do mundo,/ E viu-se a terra inteira, de repente,/ Surgir, redonda, do azul profundo (…).”[5]. Essa obra assim descrita não foi, contudo, como muitos pensam, nem a nossa “idade de ouro” nem, muito menos, o nosso “último passo”. Neste equívoco, neste recorrente equívoco, cada vez mais enraizado, reside, aliás, o maior entrave à concretização desse nosso destino. Paradoxalmente, as “Descobertas” significaram o nosso próprio “Encobrimento”. E por isso esperamos ainda pelo regresso do “Encoberto”, aquele que, ainda nas palavras do poeta, partiu na “última nau”: “Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,/ (...)/ Foi-se a última nau (...)// Não voltou mais. A que ilha indescoberta/ Aportou? Voltará da sorte incerta/ Que teve? (...)// Ah, quanto mais ao povo a alma falta,/ Mais a minha alma atlantica se exalta/ E entorna,/ E em mim, num mar que não tem tempo ou spaço,/ Vejo entre a cerração teu vulto baço/ Que torna.// Não sei a hora, mas sei que ha a hora (...).”[6]. O regresso de “D. Sebastião” não significa, contudo, senão o regresso de nós mesmos a nós próprios. Somos nós – é o Homem – o verdadeiro “Encoberto”. Recordemos aqui, a este respeito, as já célebres palavras de Sampaio Bruno, escritas em jeito de conclusão do seu O Encoberto: “Dissipe-se a nuvem que encobre o herói. O herói não é um príncipe predestinado. Não é mesmo um povo. É o Homem.”.
A viagem, a verdadeira viagem, está pois ainda por se iniciar. Ela só agora realmente se inicia – como nos diz o poema, já na sua terceira parte: “Grécia, Roma, Cristandade,/ Europa – os quatro se vão (...).”[7]. Falta, pois, cumprir Portugal, falta, assim, realizar o “Quinto Império” – o Império Outro, Outro porque realmente espiritual. E por isso ele não será apenas mais um Império, apenas mais um “Cadáver adiado”, um “Cadáver mandando”, como o são todos os Impérios não espirituais – nas palavras de Pessoa: “Todo o Império que não é baseado no Império Espiritual é uma Morte de Pé, um Cadáver mandando.”[8]. Para isso, contudo – para que o “Quinto Império” não seja apenas mais um Império, mas sim o Império Outro –, importa que Portugal se negue enquanto tal. Só assim ele se cumprirá. Só, com efeito, negando-se enquanto tal, só, efectivamente, outrando-se, poderá Portugal ser esse outro, esse “rosto” em que todos “se mirem e se reconheçam sem se lembrarem do espelho”. Persistindo em ser, Portugal nada será. Importa pois assim que ele deixe de ser – nas igualmente já célebres palavras de Agostinho da Silva: “Só então Portugal, por já não ser, será.”. Eis, em suma, o destino que Pessoa nos traça, destino esse em tudo idêntico ao seu próprio destino enquanto pessoa. Como aqui vimos, também Pessoa, com efeito, enquanto pessoa, se procurou cumprir precisamente desse modo: na negação, na outração de si mesmo, assim procurado “ser todos”, assim procurando “ser tudo de todas as maneiras”. Dirão alguns que, por isso, o “Quinto Império” não passa de um “sonho”, de mais uma das muitas “projecções pessoanas”. Pessoa, ele próprio, reconhece-o, porém. Daí, aliás, o seu repto: “Comecemos por nos embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o incarnar. Feito isso, cada um de nós independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião.”[9]. Por isso mesmo que “irreal”, eis a “verdade” deste nosso “sonho”, deste nosso destino.
[1] Obras, vol. I, p. 1145.
[2] Obras, vol. III, p. 702.
[3] Ibid., pp. 703-704.
[4] Cf. Obras, vol. I, p. 1147.
[5] Ibid., p. 1154.
[6] Ibid., p. 1160.
[7] Ibid., p. 1162.
[8] Obras, vol. III, p. 682.
[9] Ibid., p. 710.
P.S.: Excerto de «Fernando Pessoa, o filósofo do “outro”: do pensar, de todo o ser, de si próprio, de nós mesmos», ensaio, da minha autoria, publicado na História do Pensamento Filosófico Português, direcção de Pedro Calafate, Lisboa, Caminho/ Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2000, vol. V, tomo 1, pp. 153-166
Se há poema onde nos é revelado esse destino, esse poema é a Mensagem. Neste poema, neste conjunto de poemas, triádica, perfeitamente estruturado, começa o poeta por nos dizer: "A Europa jaz,(...)/ De Oriente a Occidente jaz, fitando,/ (...)/ Olhos gregos, lembrando.// Fita, com olhar sphyngico e fatal,/ O Occidente, futuro do passado.// O rosto com que fita é Portugal.”[1]. A voz que assim se faz ouvir, se é que nós na verdade a ouvimos, é, muito mais do que a voz do poeta, a voz do próprio tempo. Diz-nos ela que a Europa jaz, reduzida que está ao que resta das ruínas gregas, à nostalgia de um “paraíso perdido”, como que ancorada no impasse de um “regresso eternamente impossível”. Para a libertar desse impasse, há um rosto, um rosto que fita, um rosto, um espelho no qual ela se fita: Portugal. Eis, com efeito, nas palavras de Pessoa, o destino de Portugal, desde logo, da “arte portuguesa”: “Arte portuguesa será aquela em que a Europa – entendendo por Europa principalmente a Grécia antiga e o universo inteiro – se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações – a Grécia passada e o Portugal futuro – receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras.”[2]. Ainda nas palavras do próprio Pessoa, é esse, efectivamente, o destino da nossa nação – ser não só ela “mas também todas as outras” –, o nosso próprio destino – “sermos tudo”: “Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundido-os portuguesmente no Paganismo Superior. Não queiramos que fora de nós fique um único Deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa!”[3].
Toda a nossa história foi pois assim, nessa medida, uma demorada preparação para a concretização desse destino. Desde Viriato, aquele cujo ser “é como aquella fria Luz que precede a madrugada”[4], que todos os seus personagens foram os intérpretes dessa obra que, desde sempre, beneficiou da “assistência divina” – eis, pelo menos, o que Pessoa expressamente nos assegura, logo a abrir a segunda parte da sua Mensagem: “Deus quere, o homem sonha, a obra nasce./ Deus quiz que a terra fosse toda uma,/ Que o mar unisse, já não separasse./ Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,// E a orla branca foi de ilha em continente,/ Clareou, correndo, até ao fim do mundo,/ E viu-se a terra inteira, de repente,/ Surgir, redonda, do azul profundo (…).”[5]. Essa obra assim descrita não foi, contudo, como muitos pensam, nem a nossa “idade de ouro” nem, muito menos, o nosso “último passo”. Neste equívoco, neste recorrente equívoco, cada vez mais enraizado, reside, aliás, o maior entrave à concretização desse nosso destino. Paradoxalmente, as “Descobertas” significaram o nosso próprio “Encobrimento”. E por isso esperamos ainda pelo regresso do “Encoberto”, aquele que, ainda nas palavras do poeta, partiu na “última nau”: “Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,/ (...)/ Foi-se a última nau (...)// Não voltou mais. A que ilha indescoberta/ Aportou? Voltará da sorte incerta/ Que teve? (...)// Ah, quanto mais ao povo a alma falta,/ Mais a minha alma atlantica se exalta/ E entorna,/ E em mim, num mar que não tem tempo ou spaço,/ Vejo entre a cerração teu vulto baço/ Que torna.// Não sei a hora, mas sei que ha a hora (...).”[6]. O regresso de “D. Sebastião” não significa, contudo, senão o regresso de nós mesmos a nós próprios. Somos nós – é o Homem – o verdadeiro “Encoberto”. Recordemos aqui, a este respeito, as já célebres palavras de Sampaio Bruno, escritas em jeito de conclusão do seu O Encoberto: “Dissipe-se a nuvem que encobre o herói. O herói não é um príncipe predestinado. Não é mesmo um povo. É o Homem.”.
A viagem, a verdadeira viagem, está pois ainda por se iniciar. Ela só agora realmente se inicia – como nos diz o poema, já na sua terceira parte: “Grécia, Roma, Cristandade,/ Europa – os quatro se vão (...).”[7]. Falta, pois, cumprir Portugal, falta, assim, realizar o “Quinto Império” – o Império Outro, Outro porque realmente espiritual. E por isso ele não será apenas mais um Império, apenas mais um “Cadáver adiado”, um “Cadáver mandando”, como o são todos os Impérios não espirituais – nas palavras de Pessoa: “Todo o Império que não é baseado no Império Espiritual é uma Morte de Pé, um Cadáver mandando.”[8]. Para isso, contudo – para que o “Quinto Império” não seja apenas mais um Império, mas sim o Império Outro –, importa que Portugal se negue enquanto tal. Só assim ele se cumprirá. Só, com efeito, negando-se enquanto tal, só, efectivamente, outrando-se, poderá Portugal ser esse outro, esse “rosto” em que todos “se mirem e se reconheçam sem se lembrarem do espelho”. Persistindo em ser, Portugal nada será. Importa pois assim que ele deixe de ser – nas igualmente já célebres palavras de Agostinho da Silva: “Só então Portugal, por já não ser, será.”. Eis, em suma, o destino que Pessoa nos traça, destino esse em tudo idêntico ao seu próprio destino enquanto pessoa. Como aqui vimos, também Pessoa, com efeito, enquanto pessoa, se procurou cumprir precisamente desse modo: na negação, na outração de si mesmo, assim procurado “ser todos”, assim procurando “ser tudo de todas as maneiras”. Dirão alguns que, por isso, o “Quinto Império” não passa de um “sonho”, de mais uma das muitas “projecções pessoanas”. Pessoa, ele próprio, reconhece-o, porém. Daí, aliás, o seu repto: “Comecemos por nos embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o incarnar. Feito isso, cada um de nós independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião.”[9]. Por isso mesmo que “irreal”, eis a “verdade” deste nosso “sonho”, deste nosso destino.
[1] Obras, vol. I, p. 1145.
[2] Obras, vol. III, p. 702.
[3] Ibid., pp. 703-704.
[4] Cf. Obras, vol. I, p. 1147.
[5] Ibid., p. 1154.
[6] Ibid., p. 1160.
[7] Ibid., p. 1162.
[8] Obras, vol. III, p. 682.
[9] Ibid., p. 710.
P.S.: Excerto de «Fernando Pessoa, o filósofo do “outro”: do pensar, de todo o ser, de si próprio, de nós mesmos», ensaio, da minha autoria, publicado na História do Pensamento Filosófico Português, direcção de Pedro Calafate, Lisboa, Caminho/ Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2000, vol. V, tomo 1, pp. 153-166
2 comentários:
Eu só tirava as aspas...
interessante é ver que outra forma de dizer aspas é vírgulas, comas dobradas... será por isso que andamos em "coma"?
(do Lat., sonolência)
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