Aires Cruz trava o passo na casa dos Cabrais.
Uma ruína apenas reconhecível pelo brasão: um chibo e uma cabra.
Aqui, neste mesmo sítio, há 12 anos, depois de me ter contado a sua história e da sua gente, avisou-me que tinha um segredo.
Um dia, talvez, o partilhá-se comigo.
Tentei esgravatar cada vez mais a memória do homem, apanhá-lo numa curva acidentada do tempo e apoderar-me do segredo.
Nada feito, essa seria a sua última arma de arremesso ao futuro, caso o nosso trabalho de investigação não conseguisse dialogar com o poder local e com a justiça.
Esperei assim muito tempo até fazer parte dos mistérios do Colmeal.
Chegara a hora.
Aires não mudou.
Tem o mesmo olhar assombrado.
Chama o silêncio, fica muito tempo a ver desfilar, na câmara escura das recordações, as sombras da sua aldeia que o antigo regime quis tirar do mapa da história Portuguesa, e Abril ignorou.
A boca amárra-se vê-se o ódio pela força que os músculos dos maxilares exercem.
Raios vermelhos abrasam-lhe o olhar como se tivesse visto o sangue dos seus mortos, como nuvens espessas a submergir o Colmeal.
Lembra-se da sentença do tribunal que transformou uma aldeia que vinha nos cronicões numa quinta privada.
Evoca o poeta Amadeu que nunca se conformou por não ter dado cabo do canastro ao juiz, e trauteou-a.
Acompanho-o. "Adeus lugar de Figueira/ onde canta a Perdiz/ a maior pena que eu tenho / foi de não matar o juiz."
Colmeal ficava no cabo do mundo, ferrada nos baixos da serra da Marofa.
Pertencera ao reino de Leão, mas com as convulsões da História passou para a coroa Portuguesa.
D Afonso Henriques deu-lhe carta de couto em 1540, era senhorio desse povo João Gouveia.
Com a morte do fidalgo, andou aquela terra de mão para mão até acabar nas unhas de Pedro Álvares Cabral.
Aires era menino e pelava-se para ouvir as histórias de Amadeu.
Junto à fogueira, com a garrafa de vinho à perna viajava mais rápido no tempo e contava o que ouvira aos seus antepassados.
O seu pai sabia muito até porque também era poeta.
De tempos a tempos, atravessava soutos e moitas, a entregar aos Cabrais um braço de cebolas e umas tantas galinhas pelo foro do povo.
O tempo passa e arrasta a mudança.
Com a República entrou o enguiço naquelas paragens.
A burguesia endinheirada apodera-se dos domínios da nobreza.
Os condes de Belmonte, com medo das vindictas dos republicanos, vendem o foro do Colmeal.
A Igreja também abana.
Os seus bens são arrolados pelo estado.
A Igreja paroquial do Colmeal também.
Na Beira, os novos proprietários mantinham direitos que remontavam ao tempo das sesmarias.
Lavraram-se á pressa as escrituras, delimitaram-se terrenos nos olhos da gente do Colmeal que habituada à velha servidão, continuava a pagar agora aos feitores dos novos senhorios.
Aires atira o olhar para a Igreja, um escombro; já não se vê o cemitério, nem sobre os ossos do pai pode lamentar-se.
Ainda há 12 anos, as sepulturas dos seus antepassados se viam.
Estavam abertas, um silvedo encorpado dificultava a entrada, crânios e partes de esqueletos como se cumprissem um castigo eram assento para as cabras que ali iam despejar a tripa.
Um incêndio recente acabou por atear até os antepassados de Aires.
O homem faz um "flash-back" e encalha nas memórias da mãe.
Nos anos quarenta do século XX, um novo feitor anunciava a desgraça.
Parecia um gato a brincar com as suas presas.
Um dia tomou a sua mãe de surpresa, disse-lhe que afinal não era foro que pagavam mas renda.
Graciosa da Cruz passou a andar endividada.
A colheita mal dava para pagar ao arrendatário: eram impostos da burra, dos cães e da carroça dos machos, mais a côngrua ao padre, um alqueire de trigo.
Começa a construção de uma tramóia macabra.
Rosa Cunha e Silva queria-se dona de todo o Colmeal, e foi ao seu advogado, um opositor do regime com passado, um socialista que meditava em "part-time" nos dramas dos pobres, Manuel Vilhena, que de um sopro baralhou as leis e transformou a povoação anterior à nacionalidade numa quinta privada.
O pleito correu durante 3 anos no Tribunal de Figueira de Castelo Rodrigo, sede do concelho.
Aires tinha 9 anos quando a sentença foi lavrada.
Os homens e os rapazes subiram aos montes para evitar desgraças, enquanto uma força da 25, soldados da Guarda Nacional Republicana, armada até aos dentes, vinha executar o mandado de despejo.
Escondido num penedo, Aires via a Guarda às corunhadas a escavacar a porta de sua casa para retirar os bens e encher as carroças.
Nessa noite, perdido na serra, o menino fez uma jura.
Faz agora 50 anos e é certo que está à beira de cumpri-la....
(continua)
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