
Retrato de Fernando Pessoa, 1954
Pintado por Almada Negreiros, Óleo sobre tela (201x201)
Almada Negreiros quis homenagear o seu amigo com esta obra magnífica. Toda a cintilante luz que percorre o café, e faz vibrar os soberbos vermelhos que envolvem o poeta, criam um contraste com a sua indumentária negra, que permanece impassível, concentrado na busca que marcou a literatura portuguesa e a mítica Geração do Orpheu.
Por diversas vezes tenho visto blogues portugueses e estrangeiros com poemas ou citações de Fernando Pessoa, que mostram a sua universalidade. Nessas alturas lembrava o desenho, que fiz para ilustrar uma crónica de jornal:

Fernando Pessoa
Tinta da china sobre cartolina rosa, 27,5 x 27,5 Pormenor
(O meu scanner não tem largura suficiente para apanhar todo o desenho).
A minha crónica dizia:
NA MESA DO CANTO
Os cafés são actualmente um recinto, onde só com muita dificuldade, duas pessoas podem conversar naturalmente, devido à poluição sonora. Em compensação, tornou-se um local privilegiado para se saber as últimas novidades da vizinhança e os palpitantes desenvolvimentos das telenovelas da vida real.
Aquele que eu frequento mais assiduamente, fica em frente a um notário e perto do quartel dos bombeiros. É lá que tomo o café adoçado com meio pacote de açúcar e mexido com uma colherada das notícias do dia.
Na maior parte dos casos a reportagem é feita pela Dona Rosa, uma senhora de meia idade, de carnes generosas e voz de soprano a frequentar as primeiras lições de canto. Entra sempre cansadíssima, porque as suas mãos transportam vinte ou trinta sacos da Cooperativa “A Vontade do Povo”, do Intermarché, do Continente, da Feira-Nova, num frou-frou de plásticos, mistura de proletários e capitalistas, de couves e brócolos, onde convivem carapaus e petingas, com iscas e couratos.
Não sei como é possível uma simples dona de casa do terceiro esquerdo do Bairro da Caixa, ter tantos e incríveis acontecimentos para contar a toda a gente. A televisão sempre a vomitar colcheias, daquele incrível canal que tem a mesma música durante vinte e quatro horas por dia, serve apenas para sublinhar com uma banda sonora, as aventuras e desventuras dos seus personagens, num aumento de decibéis, à medida que as histórias se desenvolvem, entrelaçadas como pétalas de rosa.
Entre os frequentadores do café contam-se um avô e seu neto, Carlitos. O seu relacionamento, pode considerar-se perfeito. Tudo o que vai para a mesa é sistematicamente recusado pelo miúdo, sem razão aparente. Tudo o que a criança escolhe é recusado pelo avô: por ter creme a mais “ficas todo sujo”, ou demasiado gás “faz doer a barriga”, ser muito doce “faz mal aos dentes”, ou ter muito sal “faz muita sede”. Como se constata, por muitas e boas razões, todas ultrapassadas com facilidade, quando o petiz se lança para o chão aos gritos, numa simulação oscarizável de um ataque epiléptico. Claro que a partir desse momento, pode comer o quiser.
Segue-se a invasão dos bombeiros que saem do seu turno. Chegam em grupos de três ou quatro envergando a farda de trabalho, o fato de macaco e pedem invariavelmente sandes e cervejas. Falam só por monossílabos, cansados e, talvez, ainda impressionados com a dureza das nobres missões cumpridas durante a noite.
Segue-se um espectáculo de som e cor: o café transforma-se num estuário onde o azul, profundo como o mar da ganga viril dos bombeiros, é invadido pelo verde das fardas de terilene das técnicas de limpeza e conservação de espaços urbanos (como diria a D. Rosa, mulheres do lixo) que, como um bando de gralhas fugidas do jardim, pousam entre as mesas, grasnando entre si, novidades para todos os presentes.
Um pouco mais tarde, começam a juntar-se os herdeiros. Reconhecem-se com facilidade: vestem de preto, têm os olhos vermelhos e embora sejam todos familiares, dividem-se em grupos, crocitando entre si, como abutres a disputar bocados de carniça.
Saio rapidamente, enquanto o bando se reúne na árvore a espiar a abertura da porta do cartório, esticando os pescoços como as mãos de arrumadores de automóveis na caça de moedas.
4 comentários:
Estive por aqui a ler tudo e acho deslumbrante... E como disse lá no teu blog, Fernando Pessoa é e sempre será um poeta atual e maravilhoso.
Parabéns por fazeres parte deste blog tão imponente... Bem diferente do Prozac :-)
Abraços
Anne
Parabéns por tão belíssimo e imponente quadro. Almada, Pessoa e, já então, úma tão deslumbrante, meiga e doce Águia.
Anne: Todos os blogs são diferentes, mas há uns mais diferentes que outros. :)
Prozac, também faz parte da Comunidade...
Abraço transatlântico.
António
Carlos Alves: Tem razão: Fernando Pessoa é concerteza imponente, moderno, maravilhoso, deslumbrante...
António
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