A expressão "União Lusíada", e a ideia que ela contém, suscitou-me uma profunda reflexão étnico-cultural que gostaria de apresentar. Julgo ser da máxima importância discutir cuidadosamente o que se entende por luso, lusíada e português, e saber destrinçar as suas diferenças, que têm que ver essencialmente com a relação entre mito e história, língua e povo. Será que todos os lusófonos se identificam, logo à partida, como lusíadas?
O termo Luso remete-nos directamente para um ideal de independência e liberdade, associado a Viriato, o mítico herói lusitano, figura em torno da qual os portugueses criaram um dos pilares da sua identidade cultural. Os Lusitanos eram um povo ibérico indo-europeu, posteriormente romanizado, cultores, ao que tudo indica, de uma antiga forma de espiritualidade que resistiu à romanização, tendo sido integrada no próprio Cristianismo primitivo, desenvolvendo-se em Portugal durante a época medieval: o culto do Divino Espírito Santo, e a sua independência em relação à Igreja Romana, é uma eloquente manifestação deste processo. Tendo Camões, muito provavelmente, sido capaz de identificar a natureza pagã daquela antiga forma de espiritualidade, atribuiu, no seu mito, uma ascendência divina aos Lusitanos, considerando-os descendentes de Luso, um filho e companheiro de Baco, expressão romana do deus grego Diónisos; no mito camoniano, Luso é-nos representado como portador do “verde tirso”, símbolo do poder dionisíaco: o impulso espiritual mais básico e universal na busca da experiência da Totalidade, avesso a toda e qualquer limitação das potencialidades criativas e criadoras. Os Descobrimentos portugueses, uma clara expressão desse mesmo impulso, são o momento em que se dá início à universalização desse espírito. Todas as causas lógicas de tipo histórico-político-económicas que normalmente são consideradas como propulsionadoras dos Descobrimentos não são mais do que aspectos da necessária peça de teatro para que o mito se infunda na história, fazendo-a girar; não há história sem mito, sendo através dela que ele se cumpre.
O termo Lusíadas foi criado, originalmente em latim, Lusiadae, pelo famoso humanista português André de Resende, contemporâneo de Camões, tendo sido escolhido por este para o título do seu poema épico. Ora, como o próprio autor do termo explica "A Luso, unde Lusitania dicta est, Lusiadas adpellavimus Lusitanos, et a Lysa Lysiadas, sicut ab Aenea Aeneadas dixit Virgilius", isto é, "De Luso, termo a partir do qual se deu nome à Lusitânia, chamámos Lusíadas aos Lusitanos, e de Lysa Lysíadas, tal como Virgílio criou Aeneadae a partir de Aeneas". Ora, o termo Lusíadas, "os descendentes de Luso”, artificialmente forjado com o sufixo de oriem grega -ada, inscreve o seu referente na antiquíssima tradição épica europeia iniciada com a Ilíada, a saga heróica de Ílion, ou seja, Tróia. Homero e Virgílio, e tudo o que eles representam, são os grandes modelos de Camões, pelo que a epopeia portuguesa celebra uma forma de heroísmo de cunho singularmente europeu, especialmente guerreiro, expansionista e aventureiro, recuperando inclusivamente a famosa expedição dos Argonautas. O termo lusíada contém em si todo o mito heróico da antiguidade greco-romana – evocada sempre que o mesmo é utilizado – juntamente com o ideal templário de santidade guerreira. Os Lusíadas foram, assim, os míticos heróis – historicamente homens portugueses (e portanto europeus) do século XV – que tiveram como missão a universalização do Luso, sendo o espírito lusíada, acima de tudo, um núcleo fundamental da identidade cultural dos portugueses.
Ora, tendo em conta o que ficou dito acima, os brasileiros, por exemplo, quanto à língua que falam, podem considerar-se lusos, ou seja, lusófonos, mas não necessariamente lusíadas logo em primeiro plano. Todo o lusófono que não é europeu terá, naturalmente, uma costela europeia na história da sua cultura, uma vez que se expressa verbalmente por meio da língua de Camões; mas esse facto faz dele, logo à partida, um lusíada? O lusíada é um ser universal, sem dúvida, mas a sua mátria é a Europa e os seus mitos; Ulisses, o mítico fundador de Lisboa, é o primeiro castelo da Mensagem, simbolicamente o primeiro momento de uma história cultural. Os moçambicanos têm o elemento luso na sua cultura, falam luso, mas a sua mátria é a África. Creio que luso deveria restringir-se o mais possível à língua, ou seja, ao sistema formal de comunicação, léxico e gramática; no fundo, luso deveria ser o termo mais universal. O termo lusíada implica uma identificação mais profunda com a cultura portuguesa, mitos e história, assim como com as suas raízes europeias.
Desta forma, Luso designaria o espaço linguístico-cultural universal e, ao mesmo tempo, a própria língua falada nesse mesmo espaço: o lusófono seria, em primeira instância, não aquele que fala portugês, mas sim aquele que fala luso, passando a considerar-se, do ponto de vista linguístico, o português, o galego ou a brasileiro como variedades regionais do luso, o que seria uma boa solução para a desajeitada denominação oficial de português europeu e português brasileiro. Luso deveria ser a designação da língua da Lusofonia, isto é, do Luso; português seria a variedade de luso que se fala na Europa, brasileiro a variedade de luso que se fala na América; assim os brasileiros já poderiam dizer à vontade que não falam português, mas sim que falam luso, mais especificamente uma das suas variedades denominada brasileiro.
Dito isto, é claro que passaria a ser incorrecto restringir o emprego de luso ao estado político com o nome de Portugal, como é uso corrente dizer-se, por exemplo, uma cimeira “Luso-Angolana” (dever-se-ia talvez dizer algo como “Porto-Angolana” ou “Portugo-Angolana”...). A referência de luso deveria ser todo o universo lusófono, não só Portugal. Lusíada, por sua vez, deveria referir-se ao mítico povo heróico europeu que universalizou, há 500 anos atrás, o Luso. Actualmente, como Agostinho da Silva muito bem compreendeu, quem tem nas mãos esse principal papel é o Brasil. Considero que uma das mais importantes responsabilidades de Portugal, como Lusíada que é, deverá ser, entre outras, precisamente a de mostrar ao Ocidente como se chega ao Oriente, ou seja, especializar-se, de forma exímia e impecável, em cultura oriental e torná-la acessível, realizando o tão Desejado encontro entre a tradição filosófico-científica e religiosa ocidental e as tradições sapienciais, espirituais e esotéricas do Oriente.
Antes de se pensar numa possível união política, julgo que a comunidade lusa deveria começar por ser, acima de tudo, uma potência cultural, anúncio de uma nova confraria mundial, da qual não duvido que venha a surgir, de entre muitas outras novidades, um novo modelo político. Para lá se chegar, é urgentemente necessário, primeiro, unificar a ortografia da língua – processo que tem sido grandemente bloqueado por Portugal há vários anos – de forma a que todos os lusófonos, conscientes de que o luso é a voz de diferentes culturas, se possam reconhecer, pelo menos para começar, nessa identidade linguística ortograficamente unificada.
Valete!
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra).
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19 comentários:
Em primeiro lugar, parabéns pelo excelente contributo para a nossa reflexão conjunta.
Agora os comentários:
1) a exactidão etimológica, que tão bem assinalou, é por vezes contraproducente. Dou um exemplo: é sabido que "Ibéria" designa apenas a parte leste da Península mas, para mim como para muitas outras pessoas que tenho consultado a esse respeito, é mais aceitável designar a nossa Península como "ibérica" do que como "hispânica" (dado que "hispânico" remete demasiado para "Espanha"...).
2) Qualificar a "União Lusíada" como "União Lusófona" parece-me curto. Trata-se bem mais do que de uma comunidade de língua. Trata-se de uma comunhão da cultura, da mundividência, que subjaz a essa língua, nas suas variantes...
3) Já quanto a "União Lusa" não tenho objecções, apesar das consequências: "cimeira porto-angolana ou portugo-angolana"...
4) Trata-se obviamente de começar pela Cultura, ou seja, pelo reconhecimento do que mais profundamente nos une. Depois ver-se-á qual a configuração política mais adequada...
5) Por último, sou também o mais possível a favor do "acordo ortográfico". Por razões estratégicas. Ainda que, no plano estritamente pessoal, resista um pouco às suas implicações...
A questão exige séria e demorada ponderação, tanto mais que uma simples designação, em matéria tão sensível como esta, pode suscitar adesões e adversidades igualmente irreflectidas e irredutíveis. Seria importante ver qual a sensibilidade dos demais povos e culturas lusófonos, que é fundamental para este projecto, demasiado importante para que um mero nome o comprometa ou dificulte. Por mim não tenho uma opinião definitiva, mas neste momento pondero que União Lusófona tem por seu lado a vantagem de ser mais imediatamente consensual e não dar a aparência de se pretender assumir um único paradigma cultural, o português, para caracterizar uma comunidade muito mais vasta e mentalmente polifónica. Julgo que é nessa polifonia que devemos apostar, para que a Comunidade que queremos fundar ou fazer despertar seja verdadeiramente uma alternativa a nível mundial.
Quanto às etimologias e à relação mito-história, no que respeita a Luso e à Lusitânia, não deixo de os relacionar com os sentidos de i-lusão, enquanto jogo criador (de que há ecos na "ilusión" castelhana, que não é um mero "engano"), e de libertação, até pela sua clara conotação dionisíaca, que não me parece redutível ao heroísmo guerreiro, apenas uma das suas expressões. Esta leitura parece mais consentânea com outras designações mais arcaicas do extremo-ocidente peninsular: Oestrímnia, de "oistros", "estro", que remete para o transe dionisíaco, e Ophyussae, a terra das Serpentes. Não foi por acaso que Pessoa relacionou Portugal com o Canminho da Serpente que é o de todos nós: passar pelos contrários e, em constante superação, neles nunca se deter; nem sequer em Deus: ir sempre mais além...
1. Há ainda hoje uma grande polémica sobre as origens dos ibéricos, tema que não cabe aqui detalhar. Mas os romanos chamavam de "ibéricos" fundamentalmente essas populações de Leste a sabe-se que a sua lingua nada tinha a ver com a das populações do Ocidente (cujas línguas pertenciam ao chamado "substrato mediterrânico"). Mas se a opção é entre "ibéria" e "hispânia > espanha"... Bem, então a primeira vence... Já que permite repelir eficazmente os anticorpos gerados pelos tradicionais pendores imperialistas de Castela e Madrid...
2 e 3. Sim, é verdade. A Língua é a base comum, o esteio comunitário e a forma e alma da portugalidade (não confundir com nacionalidade). Ficamos pela "união lusíada"? Mas o termo não demasiado... étnico? E os povos africanos ou indígenas que não têm o adn dos lusitanos (fossem eles o que fossem) no sangue? O termo étnico não se arrisca a excluí-los (embora inclua a maioria dos brasileiros que de facto entroncam nesse "genus"...)
Porque não usar um termo mais de "caminho" ou "destino" do que de "estado" (língua ou etnos)? Qual... Não sei ainda... Mas nada como recorrer às fontes (Pessoa, Vieira e Bandarra, sobretudo...)
3. E pela Educação, parte essencial da Cultura... Ponto essencial para divulgar estas ideias tão "radicais" e ignoradas pelos Media e pelo sistema académico e educativo dominado "imperialmente" pelo pensamento único neoliberal e das "gentes loiras do norte" de Agostinho...
4. Um tema sobre o qual escrevi recentemente e que já recolhou retorno por parte de alguns brasileiros mas... ainda de nenhum português... Curiosamente, ou... talvez não!
http://movv.org/2007/12/09/do-acordo-ortografico/
"A questão exige séria e demorada ponderação, tanto mais que uma simples designação, em matéria tão sensível como esta, pode suscitar adesões e adversidades igualmente irreflectidas e irredutíveis. Seria importante ver qual a sensibilidade dos demais povos e culturas lusófonos, que é fundamental para este projecto, demasiado importante "
-> Bem... Para isso recomendo uma, ou melhor, duas sondagens... Que podem ser colocadas aqui mesmo, ou se preferirem que posso também colocar online no movv.org (depois insiro os links aqui num post ou na banner lateral esquerda) propondo e sondando por várias alternativas de designações.
-> Mas esta questão é sumamente importante... O primeiro aspecto da coisa é o seu nome, e este pode logo de partido introduzir nela um aspecto negativo ou positivo, ou gerar aqueles anticorpos de que falaste ainda recentemente.
-> Sugiro que se deixe esta questão em aberto e que se oiçam mais posições, especialmente do Brasil e de África, já que importa manter aqui duas separações: afastar qualquer designação que leve à crença de um "quinto império português" ou de uma "expansão do Brasil até à demais lusofonia".
"para que um mero nome o comprometa ou dificulte. Por mim não tenho uma opinião definitiva, mas neste momento pondero que União Lusófona tem por seu lado a vantagem de ser mais imediatamente consensual e não dar a aparência de se pretender assumir um único paradigma cultural, o português, para "
-> Mas é um termo redutor logo à partida... Arrisca-se a dilur-se num novo acordo ortográfico, e a morrer aí... Os objectivos, a alma correm muito mais longe do que isso, e por o termo me causa... anticorpos...
"caracterizar uma comunidade muito mais vasta e mentalmente polifónica. Julgo que é nessa polifonia que devemos apostar, para que a Comunidade que queremos fundar ou fazer despertar seja verdadeiramente uma alternativa a nível mundial."
-> Longe das hegemonias materias (militares e económicas) do passado e do presente...
"Quanto às etimologias e à relação mito-história, no que respeita a Luso e à Lusitânia, não deixo de os relacionar com os sentidos de i-lusão, enquanto jogo criador (de que há ecos na "ilusión" castelhana, que não é um mero "engano"), e de libertação, até pela sua clara conotação dionisíaca, que não me parece redutível ao heroísmo guerreiro, apenas uma das suas expressões. Esta leitura parece mais consentânea com outras designações mais arcaicas do extremo-ocidente peninsular: Oestrímnia, de "oistros", "estro", que remete para o transe dionisíaco, e Ophyussae, a terra das Serpentes. Não foi por acaso que Pessoa relacionou Portugal com o Canminho da Serpente que é o de todos nós: passar pelos contrários e, em constante superação, neles nunca se deter; nem sequer em Deus: ir sempre mais além..."
-> A superação pelas antinomias, via diálogo dos contrários...
-> E Festus Avienus escrevia:
“os Cempsos e os Sefes que possuíam colinas elevadas no campo de Ofiussa, e perto dessas situavam-se o ágil ligur e a descendência dos dráganos". Unindo já os Sefes (serpentes) aquilo que seria a matriz essencial da portugalidade com os ligures do norte de Itália (e antecessores da romanidade). É nesta matriz ancestral que radica a unicidade dos portugueses e a sua essência original, já que a própria epigrafia (de Coninbriga, p.ex.) demonstra que os colonos do Lácio era uma imensa minoria e que a maioria dos habitantes das cidades "romanas" eram de facto indígenas. Algo que devíamos aprender para os dias de hoje...
Sem uma significativa representação e real participação dos demais povos lusófonos, este projecto nunca poderá passar de uma ideia exlusivamente unilateral. Quais são os lusófonos que estão realmente interessados em alinhar em semelhante projecto?O que têm eles a dizer sobre isso?
Será viável estar a avançar com um projecto que inclui milhões de pessoas sem uma prévia averiguação das suas sensibilidades? Onde está a polifonia?
De facto, o elemento que mais une os lusófonos é, em primeiro lugar, a língua; creio que deve ser esse o eixo de identificação... Ao dizer "luso" não me estou a referir à raça, ou sangue ou ADN, mas simplesmente à língua e ao espírito universal (independência, liberdade, totalidade) que está nela, o que não é coisa pouca... Acontece que a língua a que nós chamamos de "portuguesa" não é só dos portugueses, mas de todos os lusófonos, que a enriqueceram com o espírito das suas culturas, tornando-a verdadeiramente universal. Por isso defendo que o eixo de identificação deve ser de base linguística (o que inclui todas as culturas que falam essa língua e que a plasmaram à sua própria cultura) em cuja designação deveria estar presente, pelo menos, o elemento "luso", termo que deveria remeter para a língua e seu espírito (que já não é só português). O termo "lusíada" é que já significa mesmo "da raça de", "do sangue de”, ou “descendente genético de”, o que já é outra história...
Compreendo que a língua é que será o esteio fundamental de tal união. Sem dúvida que sim. Mas não é tal opção, em si mesma, redutora e limitadora de perspectivas?
Por isso me inclino a favorecer (ainda de forma não decisiva) a tese da "União Lusíada", porque não se trata aqui que lusitanos -> portugueses ou seus descendentes directos, nem de lusófonos (que se limita à língua) mas a... "Lusíadas" termo aliás forjado pelo pai da própria língua e primeiro escritor e poeta de todas as lusofonias: Camões.
"termo aliás forjado pelo pai da própria língua e primeiro escritor e poeta de todas as lusofonias: Camões".
Em abono do rigor, não foi Camões que forjou o termo, mas o seu contemporâneo André de Resende (está bem escarrapachado no post...)
De qualquer das formas, não se estará a dar demasiada importância e prioridade à designação de algo que ainda não existe, pondo em risco, como o disse o Paulo Borges, de provocar adesões e aversões precipitadas e indesejáveis? Como se pode atribuir um nome a "algo", e neste caso, "algo" de máxima importância para toda a Humanidade, cuja configuração ainda está tão longe? Para se perceber que nome poderá ter, é preciso primeiro deixar que esse "algo" se defina, é preciso que comece a ser vivsível a sua forma. O "nome" de um projecto de tal envergadura (em que estão em causa centenas de milhões de pessoas), que tem como objectivo dar origem a todo um novo paradigma civilizacional, não deveria ser decidido antes de se ter criado uma confraria entre essas centenas de milhões de pessoas, ou seja, antes dessa ideia de comunidade alternativa ter entrado no debate público de toda a Lusofonia. Não acho mal que se lancem propostas para o nome desse projecto, isso também ajuda a que ele se defina, mas talvez seja desnecessário dar tanta importância ao nome, quando a própria comunidade lusófona, tal como a conhecemos actualmente, é ainda pouco unida e pouco consciente das suas potencialidades; os lusófonos conhecem-se mal uns aos outros, e as suas relações ainda estão minadas por preconceitos e traumas coloniais.
Para além disso, parece-me que há aqui uma noção incorrecta do que se entende por "língua": há uma ideia generalizada de que uma comunidade unida "unicamente" pela língua é algo de redutor e limitado. Meus amigos, isso não é nada assim, uma língua contém toda a história, toda a cultura, toda a mundividência, todo o espírito de quem a fala, e é isso que é a comunidade lusófona, está lá o mundo inteiro. Querer uma comunidade mundial unida mais do que pela língua, logo para começar, implicaria, para já, que os portugueses tivessem uma excelente cultura geral acerca de todas as outras culturas lusófonas, e não têm; os portugueses conhecem muito mal a cultura dos povos que outrora colonizaram, e enquanto assim for, essa união não poderá ter mais do que a língua como centro, o que já é algo de verdadeiramente grandioso e extraordiário e, no que respeita à Lusofonia, até agora muito pouco explorado; o nosso ensino público, por exemplo, não transmite praticamente nada de cultura lusófona: o que sabem os portugueses dos povos africanos, seus mitos, tradições, línguas, danças? E dos índios do Brasil, o que nos ensinam na escola? E da colossais culturas indiana e chinesa? Como diz o Vergílio Ferreira quanto ao novo mundo a criar: “Está tudo por fazer...”
"Em abono do rigor, não foi Camões que forjou o termo, mas o seu contemporâneo André de Resende (está bem escarrapachado no post...)"
-> Obrigado pela correcção.
-> Mas foi Luiz de Camões que mais está associado ao termo. De facto poucos conhecem sequer o nome de André Resende quanto mais a sua paternidade do termo... Isto quer dizer que usar este termo era associá-lo a Camões, que aliás, referiu nos Lusíadas a aparição de uma nova "ordem" mundial:
"Conquista será a quarta, que no Império
Portuguez só reside com possança:
Pois no emblema e no infimo Hemispherio
As quatro partes só do mundo alcança.
E as quatro Nações d'elles por mysterio
com que conquista, e tem certa esperança,
Que Christãos, Mouros, Turcos e Gentios,
Juntarão n'uma lei seus senhorios."
O que só é mais um argumento na nossa amigável "discussão" sobre o tema...
"De qualquer das formas, não se estará a dar demasiada importância e prioridade à designação de algo que ainda não existe, pondo em risco, como o disse o Paulo Borges, de provocar adesões e aversões precipitadas e indesejáveis? Como se pode atribuir um nome a "algo", e neste caso, "algo" de máxima importância para toda a Humanidade, cuja configuração ainda está tão"
-> Compreendo esta posição e aceito os argumentos. Mas não é também certo que para que algo começe a ganhar corpo e substância, esse algo não tem antes que ser denominado? Porque achavam os índios americanos que conhecendo o seu "nome secreto" ou seus adversários os poderiam logo dominar? Ou seja, o nome das coisas é efectivamente a sua própria essência. Por isso insisto nesta questão da designação... Mas se caminho aqui isolado, cedo e recuo para aquilo que acharem melhor. Sem problemas.
"longe? Para se perceber que nome poderá ter, é preciso primeiro deixar que esse "algo" se defina, é preciso que comece a ser vivsível a sua forma. O "nome" de um projecto de tal envergadura (em que estão em causa centenas de milhões de pessoas), que tem como objectivo dar origem a todo um novo paradigma civilizacional, não deveria ser decidido antes de se ter criado uma confraria entre essas centenas de milhões de pessoas, ou seja, antes dessa ideia de comunidade alternativa ter entrado no debate público de toda a Lusofonia. Não"
-> É o que estamos a fazer. A começar esse debate. Neste sentido, penso que seria vital recolher penamentos do outro lado do Atlântico. O que pensam os brasileiros sobre esta questão? Esta sondagem:
http://www.luckypolls.com/2222/se-233-brasileiro-concorda-com-a-uni227o-brasilportugal
indica que quase 50% dos brasileiros concordam com a ideia da União. Com que nome a pensarão? "República Federativa de Portugal e do Brasil"? E porque não? Mas sim... colocando os termos assim, torna-se patente uma certa desadequação desta celeuma, quase bizantina...
" acho mal que se lancem propostas para o nome desse projecto, isso também ajuda a que ele se defina, "
-> Aqui discordo, pelos argumento supra...
"mas talvez seja desnecessário dar tanta importância ao nome, quando a própria comunidade lusófona, tal como a conhecemos actualmente, é ainda pouco unida e pouco consciente das suas potencialidades; os lusófonos conhecem-se mal uns aos outros, e as suas relações ainda estão minadas por preconceitos e traumas coloniais."
-> Muito verdadeiro em relação à ambígua relação de amor-ódio que ligar muitos africanos a portugueses e vice-versa... Nem tanto no caso do Brasil, mas também como provam alguns comentários aqui deixados.
"Para além disso, parece-me que há aqui uma noção incorrecta do que se entende por "língua": há uma ideia generalizada de que uma comunidade unida "unicamente" pela língua é algo de redutor e limitado. Meus "
-> Teria o risco de uma vez chegando aí, tudo estaria realizado, quando o âmbito das propostas é muito mais global e geral do que mera forma linguística.
"amigos, isso não é nada assim, uma língua contém toda a história, toda a cultura, toda a mundividência, todo o espírito de quem a fala, e é isso que é a comunidade lusófona, está lá o mundo inteiro. Querer uma comunidade mundial unida mais do que pela língua, logo para começar, implicaria, para já, que os portugueses tivessem uma excelente cultura geral acerca de todas as outras culturas lusófonas, e não "
-> E os projectos de Vieira e Agostinho não se ficavam pela língua... Agostinho falava de uma segunda fase (o mundo latino e hispânico) e de uma terceira, englobando todo o mundo... Reduzir o projecto à língua é contribuir para a sua paragem na primeira fase, ponto de partida e não de chegada.
"têm; os portugueses conhecem muito mal a cultura dos povos que outrora colonizaram, e enquanto assim for, essa união não poderá ter mais do que a língua como centro, o que já é algo de verdadeiramente grandioso e extraordiário e, no que respeita à Lusofonia, até agora muito pouco explorado; o nosso ensino público, por exemplo, não transmite praticamente nada de cultura lusófona: o que sabem os portugueses dos povos africanos, seus mitos, tradições, línguas, danças? E dos índios do Brasil, o que nos ensinam na escola? E da colossais culturas indiana e chinesa? Como diz o Vergílio Ferreira quanto ao novo mundo a criar: “Está tudo por fazer...”"
-> Imensamente de acordo... É notável a falta de notícias de Portugal nos Media brasileiros e vice-versa, mesmo agora em tempos de globalização e de tantas viagens de portugueses para o Brasil... Apesar de tudo começamos a ver algo a evoluir, cá e lá... No melhor sentido e esse movimento de aproximação vai acentuar-se com o reforço dos laços económicos que ultimamente tem acontecido.
Para que possa ser mais do que uma união de língua, primeiro tem que ser uma união de língua, e ainda não o é. Porque se já fosse uma verdadeira união de língua (tendo em conta o que realmente significa "língua") a Lusofonia já estaria a ser, hoje, uma gigantesca potência cultural, de onde já estariam a surgir as mais interessantes e brilhantes novidades artísticas, filosóficas, políticas,diplomáticas, sociais, económicas, religiosas, etc, ou seja, já estaria a ver-se esse despertar e a preparar-se algo mais do que união de língua. Mas a verdade é que acho que ainda não há uma verdadeira consciência de união linguística, com todas as suas infinitas potencialidades. É preciso fazer nascer um "discurso cultural" lusófono, uma verdadeira "cultura lusófona": arte lusófona, música lusófona, ciência lusófona; são necessários muitos estudos antropológicos e étnicos, muita confrontação inter-cultural. Todo esse trabalho está incompleto, acho que não há ainda uma verdadeira "consciência lusófona" generalizada.
Compreendo perfeitamente a questão do "ficar-se pela língua e morrer aí", mas julgo que isso está a acontecer à Lusofonia porque não se está a promover nem a sensibilizar adequadamente os lusófonos para as infinitas potencialidades da sua comunidade, que são potencialidades, acima de tudo, culturais. A Lusofonia é um gigante da Cultura. Questões como direito, política, economia, ecologia,etc, que parece ser o que mais preocupa a todos, são produtos culturais...
Antes de mais, não julgo que quem se melindra com o termo "lusíada" não se vá melindrar, em igual medida, com o termo "lusa" ou "lusófona" para qualificar a União de que falamos... Mas se houver pelo menos uma pessoa para quem isso seja realmente decisivo, eu, pela minha parte, passo a falar apenas na "União lusófona". Tanto mais porque, para mim, como defendi acima, qualquer língua tem sempre subjacente uma Cultura, uma Mundividência, por mais que aquele que por ela se expresse não tenha disso consciência...
Para que esta ideia chegue a todo o mundo lusófono, há que a tornar tão consensual quanto possível, em termos de designação, sem sacrificar o seu rico e vasto conteúdo e aspiração. Enquanto a ideia amadurece, bem como a sua formulação, sinto que há dois vectores fundamentais e indispensáveis: Lusofonia e Universalidade. A mensagem a transmitir, a meu ver, é que a Lusofonia é sinónimo de Universalidade: o que nos diferencia é o ímpeto para o todo e o universal. Outra questão fundamental, entretanto, é definirmos, com a maior clareza e simplicidade, o que propomos como base deste movimento cultural, cívico e político, para Portugal, para a comunidade lusófona e para o mundo, desde o plano económico, ao político e ao ético-espiritual. Com aspectos concretos, que possam desde já ser postos em prática. Começo a pensar num outro Manifesto que sintetize isto e todas as contribuições são necessárias.
Também acho que nos devemos preocupar mais com a "coisa" do que com o "nome". Quanto a este, basta, aliás ,arranjar uma boa sigla, bem sonante, tipo UPEL, União dos Povos de Expressão Lusófona... Prometo contribuir para esse Manifesto!
Excelentes ideias!
Paulo:
"Outra questão fundamental, entretanto, é definirmos, com a maior clareza e simplicidade, o que propomos como base deste movimento cultural, cívico e político, para Portugal, para a comunidade lusófona e para o mundo, desde o plano económico, ao político e ao ético-espiritual. Com aspectos concretos, que possam desde já ser postos em prática. Começo a pensar num outro Manifesto que sintetize isto e todas as contribuições são necessárias."
-> Concordo. É vital passar das palavras às acções, como dizia Agostinho e começar por aclarar ideias quanto à estruuta, dimensão e organização desse movimento. Contudo, penso que seria preferível dar-lhe um enfoque mais político do que cultural, já que este deve permanecer na esfera da acção da revista e da própria Associação Agostinho da Silva, o autor moderno que melhor espelha este tipo de pensamento.
Renato:
" Também acho que nos devemos preocupar mais com a "coisa" do que com o "nome". Quanto a este, basta, aliás ,arranjar uma boa sigla, bem sonante, tipo UPEL, União dos Povos de Expressão Lusófona..."
-> Por mim, em isolamento aparente, continuo reticente com uma designação meramente "linguística", porque redutora e potencialmente castradora... Mas concordo num ponto: é cedo para aprofundar a questão e certamente que a designação não é coisa essencial, aqui. Aqui é expendir e divulgar estas ideias e propostas. Ainda que o seu agrupamento sob um "bom" nome fosse importante, na minha opinião...
" Prometo contribuir para esse Manifesto!"
-> E estamos à espera!... Eu esperarei pelos vossos contributos, já que efectuei ainda recentemente um trabalho idêntico...
Também acho que o "nome" é importante. E que ele deve ser o de "União Lusíada", ou, em alternativa, o de "União Lusa" ou "Lusófona". Até para se contrapor melhor ao de União Europeia... Mas que isso não seja entrave à emergência da "coisa"!
Eu sou pela polifonia e pela prudência em relação aos "portugocentrismos". Quanto ao futuro político da Lusofonia, bom, o minha área de trabalho é a Cultura, e cada um desempenha o seu papel. Deixo essa questão para os especialistas em política.
De qualquer das formas, a CPLP anunciou no ano passado um projecto de criação de um Parlamento Lusófono, talvez seja importante não se estar isolado desse projecto.
Eu também sou pela polifonia: da Língua e da Cultura... Só não concordo com essa ideia de deixar a política aos políticos. É precisamente por isso que o país está como está! Num país como Portugal, a pasta ministerial mais importante deveria ser a da Cultura, pois é a Cultura o Fundamento do Estado... Decerto, estaremos atentos à criação do Parlamento Lusófono. Mas se a ideia for apenas concretizada pelos políticos que temos, não irá longe...
Eu concordo plenamente. Há uma coisa que é esta politiquice que anda à nossa volta e que já não interessa para nada, e há outra coisa que é a verdadeira Política e aí é que está a questão: não acho que haja política separada da cultura; na minha perspectiva, a verdadeira Política é a Cultura ("cultura", em grego, diz-se "politismós"...). Contudo, quem é que pensa assim? A noção de "política" que se generalizou está de tal forma deturpada e sobretudo limitada à gestão económica que preciso de fazer um profundíssimo questionamento sobre o que se entende por esse termo até me atrever trabalhar com ele. Não me referia aos nossos políticos, mas a alguém com excelentes ideias na área de "gestão" do Estado, decerto mais qualificado do que eu na matéria.
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