PORTUGAL, RAZÃO E MISTÉRIO: A
TRILOGIA[1]
Annabela
Rita
Foi a minha
última aquisição bibliográfica antes do confinamento. No topo de uma ilha de
livros, erguia-se como um bastião, convidando à posse, correspondendo ao já
longo questionamento sobre o 3.º vol. da obra, anunciado e nunca editado,
resolvendo o mistério.
Agora, a
obra surge completada e emoldurada por um paratexto que lhe potencia a sedução,
encenando um colóquio entre desaparecidos e colegas ‘de pena’, com
modalizações que não comento para evitar alongar-me, mas que constituem
importante moldura desta obra notável: de Mafalda Ferro, Joaquim Domingues,
Pinharanda Gomes e Francisco da Cunha Leão, em pórtico, e, no fim, de Pedro
Martins, encerrando com a última entrevista do autor por Antónia de Sousa (Diário de Notícias, 11/3/1993). Nesta, a
última fala replica-se em epígrafe ao volume como “mensagem” aos
concidadãos, recuperando a que encerra a Mensagem (1934) de Fernando Pessoa aos
seus Fratres. 86 anos depois de Pessoa, 33 anos depois de se instalar
“o fantasma do terceiro livro de Portugal,
Razão e Mistério” (cf. Carta a António Telmo, Janeiro de 1987).
E é António
Quadros que me acolhe em chiaroscuro:
a escrever e a assinar a obra, informal e jovem (primeira foto) e formal e
marcado pelo tempo (segunda foto), imerso no projecto e assumindo-o
publicamente em dedicatória indecifrável, voltado para um antes e depois dele e
de cada um de nós, leitores, de olhar fixo nessa mensagem que lega aos
leitores, contemporâneos e vindouros. Entre ambas as fotografias, foi o tempo
da obra e do mistério. Em jeito de cerimonial de iniciação que o Anjo do Reino
de Portugal de Diogo Pieres, o Moço
(séc. XVI), replicará no limiar do texto.
Seguiu-se a
leitura. Apetece dizer: a revisitação de um imaginário identitário nacional
longamente (re)configurado numa perspectiva messiânica, providencialista, de
missão, a mais prolongada e assente na cristofania de Ourique.
Como
trilogia, organiza uma visita em
3 etapas a um conhecimento da identidade nacional portuguesa sistematizado:
desde a génese e fundamentos (“Uma Arqueologia da Tradição Portuguesa |
Introdução ao Portugal Arquétipo | A Atlântida Desocultada | O País
Templário”), passando pela definição da razão de ser, estar e fazer de Portugal
no Mundo, da sua funcionalidade (“O Projecto Áureo ou O Império do Espírito
Santo | O Império segundo Dinis e Isabel | O Império segundo Avis | Os Painéis
de Nuno Gonçalves e a «religião de Avis»”),
e concluindo-se com o eucarístico rito graálico (“O Cálice da Última Tule”)
erguido para nossa comunhão 33 crísticos anos depois dos dois primeiros
volumes da obra (I-1986 e II-1987).
Do passado
ao futuro que o rememore, esta trilogia constitui-se como um Livro do Apocalipse (etimologicamente:
de ‘revelação’) de António Quadros, o centro do seu cânone, o desvelador, mas também o lugar de
chegada de toda uma tradição vocalizada e escrita desde as lendas às crónicas
de Alcobaça e Santa Cruz, passando pela bibliografia providencialista
(de Bandarra a António Vieira), pela iconografia emblemática (com especial
destaque para os Painéis ditos de S. Vicente, encenando uma enigmática e
simbólica representação nacional que muitos têm tentado decifrar, adensando-a,
com eles fazendo Quadros dialogar a sua hipótese de leitura), etc., tradição
revisitada pelo grupo da Filosofia Portuguesa e que António Quadros sistematiza
quase heraldicamente nesta obra. “O seu mais ambicioso projecto”, como diz
Joaquim Domingues, “que se lhe terá revelado cada vez mais premente em face do
agravamento, nos anos 70, da crise de identidade que afectava o País” (p. 12).
Numa
espécie de ‘aviso à navegação’ a acompanhar a
entrada de Portugal na CEE-UE (1985-86), ergue o estandarte dessa sua memória
identitária, evocando toda uma tópica que
Fernando Pessoa organizou em espectral e heráldica galeria de convocações
simbólicas e que Quadros vivifica com a sua omnipresença perspéctica,
enunciativa. Como se Anjo da História (Walter Benjamin) ou Custódio de Portugal
“no dealbar de um mundo disposto a transcender
as ilusões, as alienações, as ligeirezas intelectuais e ideológicas destes
últimos cem anos de positivismo e de materialismo, redutores da complexidade e
da profundidade do espírito humano” (p. 44).
Num tempo
de globalização em que as referências nacionais tendem a ser contrariadas
(Benedict Anderson, Ernest Gellner, Eric Hobsbawm, Patrick J. Geary, etc.) e/ou sombreadas por uma sociedade do espectáculo (Guy
Debord) e pela espectacularidade manipuladora do visível ou a dissolver-se na
liquidez (Zygmunt Bauman) e no relativismo (Franz
Boas e
seguintes) culturais, na perda de referencialidade, Portugal, Razão e Mistério: a Trilogia,
de António Quadros, oferece-se como o tratado ou a Bíblia dessa hermenêutica da História de Portugal, dando, em
grande angular, quer a leitura e a tópica em que ela se organiza como caso “sui generis” (sic), à margem de
projectos imperiais estritamente
políticos (europeus) e religiosos (Roma), quer a sua própria fundamentação
disciplinar.
Assim, este
“Palácio da Memória” colectiva, do “projecto áureo português”, justifica-se
nessa singularidade confluente (Graal,
Ourique, V Império) como a única ilação
relacional da memória colectiva que embebe a diversidade das suas
expressões, inencontrável “nos documentos de chancelaria, nas ordenações ou nas
crónicas” (p. 356), os únicos que a História positivista elegia e aceitava.
Leitura, portanto, com uma metodologia própria, diferente da do paradigma
positivista, como esclarece:
Toda a escrita é composta de sinais
ou de signos, formando as palavras e as locuções que, por seu turno, no
contexto da frase, do período, do poema, do livro, ascendem gradualmente do
signo para a metáfora, para a alegoria e para o símbolo. (p. 357)
Assumindo
esta posição, António Quadros oferece-se como exemplo geracional de amadurecimento “de quem, como nós,
frequentou o Curso de Ciências Histórico-Filosóficas da Faculdade de
Letras de Lisboa nos anos 40, dominado pelo império do positivismo” (p. 490): o
historiador aspirando “ao voo livre de uma filosofia do espírito” (p. 490)
suficientemente iluminadora, desveledora,
enfrentando o “preconceito de uma história
científica” (p. 491). Em “A História: ciência positiva ou conjugação
filosófica de saberes?” (pp. 491-499), enuncia, quiçá, a melhor argumentação a
favor de uma História- “conjugação filosófica de saberes”:
Em nome de uma positividade que
julga segura, mas é limitada e limitativa, não pode descartar saberes que a priori considera herméticos ou
incertos, devido ao seu preconceito positivista, como por exemplo os de ordem
religiosa, mística e teológica, sagrada e mítica, metafísica e gnoseológica,
artística e simbólica.
Para descobrir, desentranhar e
revelar o substrato espiritual de uma estrutura cultural ou civilização em seu
ser e movimento, o historiador, cuja preparação tem de ser pois multifacetada,
há-de recorrer a uma heterogeneidade de fontes, escritas e não escritas,
paleográficas e tradicionais, filológicas e iconológicas.
A história ser-lhe-á não uma
exposição de factos, mais ou menos coloridos por uma teoria ou ideologia
ordenadora, mas uma conjugação de saberes articulados pela razão, uma
conjugação filosófica de saberes positivos e supra-positivos. (pp. 498-499)
Uma
História com diferentes cartografias: a “oculta” ou “secreta” de António Telmo e
do grupo da Filosofia Portuguesa, mas também dos seus seguidores (Manuel J.
Gandra e outros), que perscruta o imaginário colectivo (Lucien Boia. Pour Une Histoire de L’Imaginaire, 1999)
e as Histórias ‘Sagradas’, ‘Lendárias’, ‘Míticas’, a ‘Intra-História’ e a
‘História não contada’ (desde os velhos cronistas a autores actuais como Juan
G. Atienza)…
Eis-nos,
pois, a escutar esse canto das Sereias-Sibilas que nos arrastam para um vórtice
em que o processo de conhecimento exige outro GPS que não o mecânico, documental…
António Quadros oferece-nos o seu erguendo-o como libelo, em jeito de Arauto de
um Delfos nacional. Que assim seja lido!