A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
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Donde vimos, para onde vamos...

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quarta-feira, 31 de março de 2021

De Carlos H. do Carmo Silva, para a NOVA ÁGUIA nº 27...

 

TEORIA DA LUZ E DA PALAVRA[1]

Um título que, mais do que rótulo genérico, corresponde na tradição pensante e portuguesa, ao estilo das epígrafes que encontram na «Teoria do Ser e da Verdade» de José Marinho, ou mesmo na «Teoria do Pão e da Palavra» de J. Pinharanda Gomes, entre outras, a especificidade de uma compreensiva visão. Se, na Verdade de Marinho, há algo de excessivo e platonicamente deslumbrante, e se na reflexão de Pinharanda se encontra o saber-sabor da manducação encarnacional da Palavra, na «Teoria da Luz e da Palavra» dir-se-ia descobrir-se uma meridional inclinação do olhar que pelo ‘soletrar’ português e aristotélico ainda se julga teorese. (Justifica o Autor: “A luz e a palavra são um mar oceano universal de todos os mundos possíveis. Deste mar oceano universal emergem todos os sistemas mais ou menos in-finitos que coabitam em várias esferas de transcendência, na epifania da realidade do Grande Todo que é o Universo.” (p. 41)

Donde, não a dialéctica da pura intuição cordial tal a de Afonso Botelho na «Teoria do Amor e da Morte», nem sequer a do antagonismo crítico na «Nova Teoria do Mal» de Miguel Real, ou de outras «Teorias» adjectivas sobre o Mito, a Saudade…; pois, mais que este termo único em pugna interior, ou que a costumeira díade que se explicita na epígrafe, está suposta a dialéctica em que o leitor descubra o sentido da copulativa, entre/ou de ‘isto’ e ‘aquilo’. É, assim, que se explicita a virtual trindade temática, ou hipostática, que no título permanecerá a segredar como conjugação abreviada do que o Mestre Leonardo deixou bem claro na sua palavra de «A Alegria, a Dor e a Graça», e, no caso, poderia ser Luz, Palavra…, e Silêncio (?)…, ou Poder (?)… 

Aliás, o título «Teoria da Luz e da Palavra» na obra em questão acaba por ser pleonástico já que a teoria, não como mera síntese epistémica, outrossim enquanto theá-oráo ‘visão divina’, contemplatio…, remete para a lucidez num ver assim iluminado. E, se se pretendesse ser mais preciso, dir-se-ia, que é uma theoria da claridade – ou do diorático e do diáfano – e não propriamente da luz, já que esta em si mesma é invisível, quer para a ciência física, quer na rica tradição metafísica e mística que a considera lux tenebrosa (ou treva luminosa…). É certo que também não remete tão-só ao brilho extrínseco, aos reflexos secundários, pois, como também dizia Álvaro Ribeiro não se devem valorizar ‘escritores brilhantes’, porém não luminosos. Está, pois, a nossa leitura do título na media res do que não é fiat lux, nem desde logo eflúvios de ‘trevas exteriores’, ou na correspondência com o que na hebraica nomenclatura bíblica não é a aur (luz), nem shamaïm (o brilho dos céus…), mas yom (o dia), a pretendida clareza de um meio-dia… Menos um ver, desde logo sábio em acabada condição sófica, do que um olhar, ainda que no entreabrir de um ‘regard’, uma atenção curiosa e também no prazer do desejo de contemplar o essencial. Trata-se antes da arte filo-sófica desde o agradável de sentir até um ver inteligente, ligada à acomodação do olhar àquilo que é, num exercício similar e inverso ao que Aristóteles refere à inicial cegueira das ‘aves’ nocturnas… 

A epígrafe obriga assim a uma visão declinada, nem cega pelo excesso, nem convertida ao quietismo dos ‘que crêem sem ver’, e também por isso comensura a expressão verbal correspondente: nem o Verbo, quiçá ‘voz do silêncio’, nem a babélica fala do que se diz (por dizer). No entanto, uma teoria da Palavra arrisca ainda o que verdadeiramente não diz, no sentido etimológico de indicar, fazer signo…, mas apenas ‘anda à volta’ constituindo a ‘palavra’ (do gr. parabolé) como parábola. De facto, parece tratar-se desse registo simbólico e sobretudo analógico em que a palavra, seja como nome (substante), seja como verbo e predicado…, permite a tradução (ainda um fabulare ou falar…), o comércio de razões, na comunicação enfim. Enquanto a sílaba primordial, qual mantra, remete para o inenarrável como ‘gemido do Espírito’, e o falatório comum declina no sofístico mercado da mera pragmática linguística ‘de todos e de ninguém’, é na palavra como recolhimento de sentido e concepção racional que se situa a expressão ali aristotelicamente entendida como lógos.

Abre, pois, o título da «Teoria da Luz e da Palavra» para o mero clarear filosófico do lógos enquanto doador ao pensar humano da sua pertinência lógica. E, nesta nossa ‘pátria linguística’ sopesada da específica tradição latina e helénica, constitui-se tal lógica como organon de todo um ciclo civilizacional cujo termo histórico se pode ainda aqui perceber nomeadamente pela poiética insólita e saudosa de tal, como que derradeira, visão do ex occidente lux… ´



[1] De Luís Furtado (Ed. MIL, 2020). Excerto de um texto enviado ao autor, com o seguinte “Antelóquio”: Começando por agradecer ao Autor a oferta da sua obra com a dedicatória que me é dirigida, não deixo de lembrar antigas tertúlias havidas com ele e Francisco Sotto-Mayor, num contacto com a Filosofia Portuguesa e com seus mestres, Álvaro Ribeiro e José Marinho. Além disso, no enigmático do aparentemente fortuito nesta vida –, já que se diz ‘Deus escrever direito por linhas tortas’ –, recordo como Luís Furtado veio a intermediar um meu interesse pela Kabbalah, noutro encontro gerador de inflexões fecundas e decisivas, tido ainda em comum com Marinho e António Telmo.

Saúda-se, agora, a vinda a lume da «Teoria da Luz e da Palavra», enquanto cumprimento de promessa a Álvaro Ribeiro, na linha da hermenêutica do aristotelismo que a seu modo dá continuidade àquele ensinamento da Escola do pensamento português. Será graça que, no sem tempo do Espírito, se faça assim oportunidade de um tempo de lectio que se deseja de clarificação e no trabalho sui generis de um dizer que se pretenda marcante.