TEORIA DA LUZ E DA PALAVRA[1]
Um título que, mais do que rótulo genérico,
corresponde na tradição pensante e portuguesa, ao estilo das epígrafes que encontram
na «Teoria do Ser e da Verdade» de José Marinho, ou mesmo na «Teoria do Pão e
da Palavra» de J. Pinharanda Gomes, entre outras, a especificidade de uma
compreensiva visão. Se, na Verdade de
Marinho, há algo de excessivo e platonicamente deslumbrante, e se na reflexão
de Pinharanda se encontra o saber-sabor da manducação encarnacional da Palavra,
na «Teoria da Luz e da Palavra» dir-se-ia descobrir-se uma meridional inclinação do olhar que pelo ‘soletrar’ português e
aristotélico ainda se julga teorese.
(Justifica o Autor: “A luz e a palavra
são um mar oceano universal de todos os mundos possíveis. Deste mar oceano
universal emergem todos os sistemas mais ou menos in-finitos que coabitam em
várias esferas de transcendência, na epifania da realidade do Grande Todo que é
o Universo.” (p. 41)
Donde, não a dialéctica da pura intuição cordial tal a
de Afonso Botelho na «Teoria do Amor e da Morte», nem sequer a do antagonismo
crítico na «Nova Teoria do Mal» de Miguel Real, ou de outras «Teorias»
adjectivas sobre o Mito, a Saudade…; pois, mais que este termo único em pugna
interior, ou que a costumeira díade
que se explicita na epígrafe, está suposta a dialéctica em que o leitor
descubra o sentido da copulativa, entre/ou de ‘isto’ e ‘aquilo’. É, assim, que se explicita a virtual trindade temática, ou hipostática, que no título
permanecerá a segredar como conjugação abreviada do que o Mestre Leonardo
deixou bem claro na sua palavra de «A Alegria, a Dor e a Graça»,
e, no caso, poderia ser Luz, Palavra…, e
Silêncio (?)…, ou Poder (?)…
Aliás, o título «Teoria da Luz e da Palavra» na obra
em questão acaba por ser pleonástico já que a teoria, não como mera síntese epistémica, outrossim enquanto theá-oráo ‘visão divina’, contemplatio…, remete para a lucidez num ver assim iluminado. E, se
se pretendesse ser mais preciso, dir-se-ia, que é uma theoria da claridade – ou
do diorático e do diáfano – e não propriamente da luz, já
que esta em si mesma é invisível,
quer para a ciência física, quer na rica tradição metafísica e mística que a
considera lux tenebrosa (ou treva luminosa…). É certo que também não
remete tão-só ao brilho extrínseco, aos reflexos secundários, pois, como também
dizia Álvaro Ribeiro não se devem valorizar ‘escritores brilhantes’, porém não
luminosos. Está, pois, a nossa leitura do título na media res do que não é fiat
lux, nem desde logo eflúvios de ‘trevas exteriores’, ou na correspondência
com o que na hebraica nomenclatura bíblica não é a aur (luz), nem shamaïm (o
brilho dos céus…), mas yom (o dia), a
pretendida clareza de um meio-dia…
Menos um ver, desde logo sábio em
acabada condição sófica, do que um olhar, ainda que no entreabrir de um ‘regard’, uma atenção curiosa e também no
prazer do desejo de contemplar o
essencial. Trata-se antes da arte filo-sófica
desde o agradável de sentir até um ver inteligente, ligada à acomodação do
olhar àquilo que é, num exercício
similar e inverso ao que Aristóteles refere à inicial cegueira das ‘aves’
nocturnas…
A epígrafe obriga assim a uma visão declinada, nem cega pelo excesso, nem convertida ao quietismo
dos ‘que crêem sem ver’, e também por isso comensura a expressão verbal
correspondente: nem o Verbo, quiçá ‘voz do silêncio’, nem a babélica fala do
que se diz (por dizer). No entanto,
uma teoria da Palavra arrisca ainda o que verdadeiramente não diz, no sentido
etimológico de indicar, fazer signo…,
mas apenas ‘anda à volta’ constituindo a
‘palavra’ (do gr. parabolé) como parábola. De facto, parece tratar-se
desse registo simbólico e sobretudo analógico
em que a palavra, seja como nome (substante), seja como verbo e predicado…,
permite a tradução (ainda um fabulare ou
falar…), o comércio de razões, na
comunicação enfim. Enquanto a sílaba primordial, qual mantra, remete para o inenarrável como ‘gemido do Espírito’, e o
falatório comum declina no sofístico mercado da mera pragmática linguística ‘de
todos e de ninguém’, é na palavra como recolhimento
de sentido e concepção racional que se situa a expressão ali aristotelicamente
entendida como lógos.
Abre, pois, o título da «Teoria da Luz e da Palavra»
para o mero clarear filosófico do lógos
enquanto doador ao pensar humano da sua pertinência lógica. E, nesta nossa ‘pátria linguística’ sopesada da específica
tradição latina e helénica, constitui-se tal lógica como organon de todo um ciclo civilizacional cujo termo histórico se
pode ainda aqui perceber nomeadamente pela poiética
insólita e saudosa de tal, como que derradeira, visão do ex occidente lux… ´
[1] De Luís Furtado (Ed. MIL, 2020). Excerto de um texto
enviado ao autor, com o seguinte “Antelóquio”: Começando por agradecer ao Autor a oferta da sua obra com a dedicatória
que me é dirigida, não deixo de lembrar antigas tertúlias havidas com ele e
Francisco Sotto-Mayor, num contacto com a Filosofia Portuguesa e com seus
mestres, Álvaro Ribeiro e José Marinho. Além disso, no enigmático do
aparentemente fortuito nesta vida –, já que se diz ‘Deus escrever direito por
linhas tortas’ –, recordo como Luís Furtado veio a intermediar um meu interesse
pela Kabbalah, noutro encontro gerador de inflexões fecundas e decisivas, tido
ainda em comum com Marinho e António Telmo.
Saúda-se,
agora, a vinda a lume da «Teoria da Luz e da Palavra», enquanto
cumprimento de promessa a Álvaro Ribeiro, na linha da hermenêutica do
aristotelismo que a seu modo dá
continuidade àquele ensinamento da Escola do pensamento português. Será graça
que, no sem tempo do Espírito, se faça assim oportunidade de um tempo de lectio
que se deseja de clarificação e no trabalho sui generis de um dizer que se pretenda marcante.