A colaboração de Eduardo Lourenço na NOVA ÁGUIA não foi particularmente
extensa, mas foi cirurgicamente marcante. Assim, no nº 15, da nossa Revista, em
que assinalámos o centenário da Revista “Orpheu”, foi de Eduardo Lourenço o ensaio
de abertura: “Orfeu ou a Poesia como Realidade”.
Evocação que se estendeu ao número seguinte, com a transcrição da sua Conferência
de Encerramento do “Congresso 100 –
Orpheu”, em que a NOVA ÁGUIA esteve igualmente envolvida.
Nos números 18º e 20º da Revista, destacamos ainda dois ensaios
seus – sobre Agostinho da Silva e António Vieira, respectivamente. Sendo que o
texto mais marcante foi, decerto, uma extensa entrevista concedida a Luís de
Barreiros Tavares (publicada no nº 16), depois editada em Livro, com a chancela
do MIL: Movimento Internacional Lusófono (“Eduardo Lourenço
em roda livre", MIL/ DG Edições, 2016, 73 páginas).
Na hora da sua partida, anunciamos que no primeiro número de 2021 iremos ter uma secção em sua Homenagem, que não será, de resto, a primeira que a NOVA ÁGUIA lhe presta – Eduardo Lourenço recebeu, como estamos ainda todos lembrados, o Prémio Vida e Obra do 1º Festival Literário TABULA RASA. Caso queira contribuir para esta Homenagem, deverá enviar-nos o seu texto até final do presente mês de Dezembro. Entretanto, publicamos aqui um texto inédito de Manuel Ferreira Patrício, a ser incluído na edição das suas “Obras Escolhidas”, que o MIL lançará ao longo do próximo ano…
SAUDAÇÃO AO IRMÃO HUMANO EDUARDO
LOURENÇO[1]
Portugal, cuja grandeza
frustrada é uma das nossas dores mais dificilmente suportáveis, como se árvore
anémica fosse, dá-nos de quando em vez um fruto de grande dimensão e
envergadura, imponente aspecto, qualidade suma e delicioso sabor, que atenua a
nossa insatisfação histórica. Eduardo Lourenço é um desses frutos, em que até a
modéstia da sua compleição física redunda em benefício do seu esplendor
espiritual. Ele é, sem dúvida, um gigante cultural do século XX português,
mantendo intactas as suas qualidades na segunda década em que já vamos do
século XXI. Pode olhar para trás e sorrir contente pelo que fez. Pode o sorriso
persistir pelo que continua fazendo, com toda a lucidez e sabedoria. Nós também
sorrimos, do mesmo contentamento, onde assoma a consciente gratidão do muito
que nos deu ao longo das décadas em que pudemos beneficiar do seu
companheirismo humano e da sua infatigável operosidade intelectual, de que ia
brotando o ouro que escorria para as nossas consciências e a nossa alma,
enriquecendo dia a dia o nosso património espiritual, aliás crítico de si
mesmo.
Nós os de Évora,
consideramo-lo também nosso. Pela sua amizade e camaradagem com Vergílio
Ferreira, nosso evidentemente, pela nossa própria ligação de amizade e
cumplicidade cívica e cultural com os seus irmãos António e Adriano, que aqui
viveram e trabalharam uns anos, pela ligação à Universidade que estabelecemos
com ele, pelo facto de sermos seus leitores e admiradores desde a longínqua
década de 60, época em que na Livraria Nazareth ― em 67 ― pudemos adquirir (o
Fernando Martinho e eu próprio, professores no Liceu) o livro Heterodoxia-II,
que representou um marco de reforço no nosso itinerário intelectual e
cívico. Mais tarde, nos anos 70 e 80, trabalhando na Universidade, na Divisão
(hoje Departamento) de Pedagogia e Educação, investindo apaixonadamente na
formação de professores para o Portugal democrático, que ansiávamos viesse a
ser lidimamente livre e culto, intentámos apoiar-nos na sua bússola vital
prestando a devida atenção à sua obra Labirinto da Saudade ― Psicanálise
mítica do destino português ― destino que continua a fazer-nos
figas, empurrando-nos, na hora que corre, mais para o psiquiatra que para o
psicanalista. Hoje, a Universidade de Évora trabalha directamente na preparação
da edição das Obras Completas de Eduardo Lourenço, o que é honra para
todos nós.
Li há poucos dias a
extraordinária entrevista que Eduardo Lourenço concedeu à Revista Letras
com(n)Vida, conduzida por José Eduardo Franco, impressionando-me a atenção
minuciosa e de quente inteligência fria (de sabedoria…) prestada ao momento
presente da Europa, do Ocidente, do Oriente, do Mundo, todos nós com o pé no
fio da espada na tentativa de nos mantermos erectos e vivos, de escaparmos. A
hora de A Tentação do Ocidente, de André Malraux, já passou, a
hora de A Decadência do Ocidente, de Oswaldo Spengler, também, a
decadência da Europa é um facto, a decadência dos Estados Unidos da América
anuncia-se por si mesma e na ascensão da antiquíssima China, que julgaríamos
ter morrido e renasce. Um novo mundo vem aí. Com o olhar estóico que me parece
ser o seu, Eduardo Lourenço diz serenamente o que vê, anuncia o que vai vir.
Não diz, como o imperador Septímio Severo, que foi tudo e nada vale a pena. O
seu olhar escatológico é outro e a mim serena-me. É talvez o olhar do seu
cristianismo suave e tingido da liberdade de pensar e ser desde a casca ao
cerne. Não somos nós quem vai para o futuro, é o futuro que vem para um novo
presente.
Eduardo Lourenço, querido
irmão humano da família de François Villon, esteja connosco para festejarmos
juntos essa chegada.