Dimas Macedo
Poeta e Crítico Literário.
Professor da Universidade Federa
do Ceará.
Do mar português de Luís de Camões, ao tudo
enquanto nada que permeia a criação literária de Fernando Pessoa, correm as
águas armoriais da cultura lusa. O Barroco, no campo literário, é,
possivelmente, o seu melhor tecido emblemático; e o labirinto linguístico é
feito às vezes de surpresas, que ousam renovar os desvios da língua, mas o que
fazem, não raro, é pagar tributos à geografia simbólica da solidão e da
saudade.
Herculano, Garret, Pascoaes,
Camilo Castelo Branco e tantos outros, fiéis ao imaginário do mito português,
desenharam de Portugal a tatuagem lírica, mas não de forma genial ou sutil
quanto Eça de Queiroz ou Miguel Torga, ou não de jeito tão francamente
existencial e filosófico quanto Guerra Junqueiro ou Antero de Quental,
ascendentes maiores de Pessoa e de Vergílio Ferreira.
Mas
nenhum deles, acredito, foi tão perdidamente simbólico ou tão rispidamente
cético e barroco quanto, respectivamente, Eduardo Lourenço e José Saramago,
possivelmente os dois maiores escritores portugueses vivos. [em 2000].
O que
impressiona, neles, é como ambos foram tocados pelo sentimento da diáspora e
como se expatriaram do território português e continuaram devendo à cultura
lusa as maiores reverências possíveis. Lourenço lhe fazendo acenos de Vence, em
pleno território francês; e Saramago se resignando à solidão dolorida de Las
Tias, pequeno povoado da ilha Lanzarote, nas Canárias – ambos, no entanto,
envolvidos até a medula com a melancolia feliz e com os signos da simbologia
imperial portuguesa, que os castelos de Pessoa e a polifonia armilar dos seus
brasões elevaram talvez ao plano da cosmogonia e representação universal.
Neste
sentido, como ponto de partida, parece-me ser o verso célebre de Fernando
Pessoa – Minha pátria é a língua
portuguesa – o coroamento de síntese inimaginavelmente icônica em qualquer
cultura moderna.
A
reinvenção do barroco, na literatura de Saramago, e a Mitologia da Saudade, almejando Portugal como destino, na Heterodoxia de Eduardo Lourenço, são
espaços seminais que refletem um indiscutível apelo saudosista.
Podemos
observar em Saramago, especialmente em um livro de crônicas de uma fase bem
anterior àquela de construção do grande romancista, intitulado – A Bagagem do Viajante, uma referência
expressa às “Saudades da Caverna”, onde Saramago leciona que “esta atração pelo
primitivo português, que até na decoração de nossas casas ganha aspectos de ideia
fixa, quase agressiva, se por um lado pode significar a continuidade, em plano
diferente, de certa atração de contrários que nos caracterizou como sociedade
particular, (...) há de certamente obedecer a razões menos visíveis e mais
universais”.
Essas
razões a que se refere José Saramago, penso que são aquelas da tradição e do
imaginário português que, segundo Eduardo Lourenço, “ousaram colocar-se no
centro do mundo”, revelando assim o autor de Heterodoxia a ousadia e a erudição da eterna sensibilidade
portuguesa e da sua alma tão enlevada e envolvente.
Sem a fidelidade à língua portuguesa e sem a
sua recriação através de volteios e de inigualáveis torneios barrocos, talvez
Saramago jamais tivesse conseguido ser lido, e é possível também que essa
língua – que é nossa e pela qual sentimos e pensamos de maneira quase solitária
– jamais pudesse almejar o seu futuro Prêmio Nobel, uma vez que o passado não
permitiu a Portugal os louvores do reconhecimento.
A Bagagem do Viajante, de forma gentil e
emblemática, aponta para o eterno retorno da cultura lusa. Mas sobre o seu
autor cabe finalmente perguntar: o que seriam José de Sousa Saramago e a sua
imaginação sediciosa? Em que consistiria o êxtase da sua grande aventura com a
língua? Estas perguntas, claro, me exigem que lhes diga algo sobre o estilo
saramaguiano, isto é, sobre os traços góticos e barrocos de sua escritura
literária.
Minhas
rendas verbais, no entanto, possuem outros acentos literários e, por isto
mesmo, prefiro dizer que amo Saramago pelas muitas virtudes do seu texto e pela
virtuose semântica e estilística do seu universo polifônico. E que vejo em sua
obra os fundamentos da cultura lusa como um todo, principalmente o memorial do
convento português, que é o lócus que
esconde a sua solidão de místico e de poeta, que se tornou cético em relação ao
destino que não lhe permitiu pensar por intuições e metáforas, mas apenas por
alusões e alegorias.
Particularmente, do ponto de vista da
linguagem, José de Sousa Saramago é um escritor enigmático. É cético, como
disse, e pessimista como todo intelectual que se preza. Se tivesse enveredado
pelo romance de ideias, talvez fosse hoje um ficcionista derrotado. Teve, no
entanto, o dom de pesquisar a estética e estabelecer um tormentoso diálogo com
a língua. E isto talvez seja tudo para sua reputação de militante político
renomado.
A excelência que permeia a luminosidade do seu
texto, a extraordinária beleza de sua dicção literária, a polissemia dos
sentidos e a arqueologia da existência social e individual, a consciência de
estar no mundo e de ter que gravitar em meio a incompreensão e a desigualdade –
configuram, com certeza, uma personalidade e uma estrutura literária maiores do
que se podiam pretender.
No mais, que se ponha em relevo, na imensa
bagagem saramaguiana, O Evangelho Segundo
Jesus Cristo, o maior, talvez, de todos os seus empreendimentos barrocos, e
que se releve o Evangelho Cristão-Português de Saramago, antes mesmo que a
cegueira seja uma visão a enfocar o nosso sentimento e o modo de sentir e de
pensar o reino português.
Isto
pode nos levar, também, à concussão de que a mitologia do mar português de Luís
de Camões tenha se esgotado talvez nos artifícios barrocos saramaguianos. Não é
assim que penso, no entanto.
O que
não posso esquecer é aquilo que me ensinou Eduardo Lourenço no seu livro – Mitologia da Saudade, o seu último
conjunto de escritos, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 1999,
com orelhas espantosamente saramaguianas.
Pois
bem: para Eduardo Lourenço, “na trama do imaginário português convivem: a
imagem do reino cristão, o sentimento de isolamento e fragilidade, o sebastianismo
e a ideia de um povo messiânico, a visão de um país – predestinadamente
colonizador e oniricamente imperial”.
Mas é
a saudade, assegura Lourenço, o ícone maior da cultura que se armou em
Portugal, e o elemento que alinhava todos os demais. Saudades da infância,
também, ou do tudo que é nada - o lugar não dito ou não revelado na escritura de
Saramago, e que se tornou, igualmente, uma obsessão em suas entrevistas,
especialmente depois que assumiu a diáspora e não conseguiu esquecer Portugal
como destino. A Mitologia da Saudade
nele é tão intensa e tão forte quanto em Eduardo Lourenço.
Para Saramago, Eduardo Lourenço sempre insistiu
no labirinto de sua vasta obra – a obra de maior ensaísta português da
atualidade – em referir-se a “um lugar de crepúsculo que se esvai como um rio
entre a decepção de outrora carregada de sonho e o sonho de hoje sonhado pela
memória dessa decepção”.
E acrescenta Saramago: “nenhuma dúvida,
portanto, sobre o tema central das reflexões de Eduardo Lourenço: o que sempre
o ocupou e preocupou foi Portugal, um Portugal que, depois de ter inventado,
como lhe cabia, os seus mitos fundadores, fantasiosos como todos são, também
precisou criar o que poderá ser chamado de mitos mantenedores, cujo ofício têm
sido o de sustentar e prolongar as esperanças coletivas, sucessivamente
colocadas num porvir que sucessivamente se nega”.
“Foi por este caminho que viemos desde as
trovas do Bandarra ao profetismo pessoano, com passagem pela “volta” de D.
Sebastião, pelas exaltações patrióticas de Vieira, pelo melancolismo saudoso de
Pascoaes. Equívoco grave, porém, seria pensar-se que a reflexão de Eduardo Lourenço
se gratifica em brumosas contemplações de ausências. Pelo contrário: tudo o que
o autor de Nós Como Futuro escreveu
até hoje obedece a uma necessidade de ver e compreender o que há por trás dos
véus em que parecem esconder-se, mais do que Portugal, os portugueses”.
Por fim, registro que A Viagem a Portugal, de José Saramago, muito mais do que A Bagagem do Viajante, a que me referi,
assim como as linhas barrocas da sua arquitetura verbal e polifônica, são
atestados, grandiloquentes também, de que Saramago sucumbiu ao mar português de
Luís de Camões e ao sebastianismo que fez de Pessoa o Príncipe-Infante da
modernidade literária.
Palestra
apresenta no VI Encontro de Intelectuais e Artistas da Diáspora, realizado em
Fortaleza, em junho de 2000.