A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
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Donde vimos, para onde vamos...

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Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

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domingo, 4 de novembro de 2012

PREFÁCIO D' AS APORIAS DO PONTO DE PARTIDA DA FILOSOFIA, DE ANTÓNIO JOSÉ DE BRITO



No presente ensaio, António José de Brito regressa aos dois temas nucleares da sua reflexão, de que são marcos públicos mais significativos, se bem que ainda não devidamente atendidos na nossa mais exigente vida cultural, os volumes Estudos de Filosofia (1962), Le point de départ de la Philosophie et son développement dialéctique (1979), Para uma Filosofia (1986), Razão e Dialéctica (1979), Introdução à Filosofia do Direito (1995), Valor e Realidade (1999), Esboço de uma Filosofia Dialéctica (2005) e Ensaios de Filosofia do Direito e outros estudos (2006).
Destes temas ou problemas, o primeiro é aquele que dá o título a este breve e rigoroso estudo, problema a que o pensamento do filósofo portuense tem procurado responder através do aprofundamento da noção principial de insuperável que, formulada, pela primeira vez, na tese de doutoramento que, em 1979, apresentou à Universidade de Montpellier, encontrou, depois, mais aprofundado tratamento e desenvolvimento, agora na nossa língua, em algumas das obras atrás referidas, designadamente nas que deu à estampa em 1994 (reproduzindo um longo ensaio anteriormente publicado na Revista Portuguesa de Filosofia), 1995 e 2005, enquanto o segundo, com ele estritamente conexo, o do idealismo ou da opção especulativa por uma solução idealista do problema do conhecimento, tem definido e singularizado, desde o início, a sua atitude filosófica, encontrando-se na base do diálogo crítico que, de há muito, vem mantendo com o pensamento de A. Miranda Barbosa (1916-1973), bem como os reparos que não deixou de fazer às posições gnosiológicas de Leonardo Coimbra (1883-1936) e António Sérgio (1883-1969), em seu entender imperfeitamente idealistas, por admitirem ambas uma realidade fora do pensamento ou a ele contraposta.
Para o mestre portuense, qualquer demanda especulativa que pretenda alcançar algo que se apresente como firme e sólido carece de partir do que, de si, se configure como um começo absoluto que de nada dependa, revestindo-se, por isso, de um carácter principial ou primeiro. Deste modo, o ponto de partida do pensar terá, necessariamente, de ser uma noção básica de que todas as demais decorram, sendo, nesta medida, secundárias ou derivadas em relação a ela. Porque é, assim, sempre algo necessário e universal, o ponto de partida não pode deixar de ser um único, inconcebíveis sendo múltiplos ou diversos pontos de partida.
Daí que António José de Brito pense só poder constituir verdadeiro ponto de partida do pensar o que se apresente como insuperável, entendido este como o primeiro princípio, de que todos os outros dependem e não podem deixar de pressupor ou admitir.
Assim, para o antigo professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, esse ponto de partida ou fundamento radical ou primeiro de todo o pensar terá de ser algo que se apresente e possa ser afirmado como inegável, indubitável, insusceptível de ser “colocado entre parêntesis”, auto-demonstrado e unidade na diversidade, tanto como desenvolvimento lógico como dialéctica entre opostos, unidade que põe o seu oposto e o supera.
Este conjunto de atributos que o ponto de partida deverá reunir em si para revestir, verdadeiramente, o carácter de insuperável primeiro princípio que de nada depende e de que tudo o mais queda dependente, segundo o exigente pensamento do autor de Razão e dialéctica, não se encontra na maioria das noções que, amiúde, têm sido consideradas ou pensadas como ponto de partida, pois, segundo ele, não podem constituir verdadeiros pontos de partida do pensar filosófico ou da Filosofia nem a linguagem nem noções com a de ser ou de cogito, nem o pensamento impessoal, a experiência ou a evidência, dado todas constituírem, de algum modo, noções ou realidades segundas ou derivadas.
Por outro lado, se, como acima se notou, o ponto de partida terá de ser algo, simultaneamente, necessário e universal, cumpre ter em conta, que, para o especulativo portuense, o universal se configura, necessariamente, como a unidade que tudo abrange e que, por isso, não pode deixar de conter em si o múltiplo e o variado, o mesmo é dizer que a unidade e o universal contêm em si, de diversas e múltiplas maneiras, o múltiplo e o particular, já que, se o não contivessem, não seriam, de modo autêntico, universalidade do múltiplo.
Para António José de Brito, a unidade do universal não é uma unidade estática mas uma unidade dinâmica, porquanto a ela preside ou nela está ínsita a luta, em que, como escreve o nosso filósofo, “pelo menos idealmente, é vitoriosa a unidade e em que jamais conseguem triunfar as variadas espécies em composição, seja de que maneira for, embora a luta, em compensação, nunca cesse”. Para o mestre portuense, este combate incessante, esta imobilidade nunca alcançada, esta vitória jamais definitiva constituiriam a dialéctica do real, dialéctica eterna em que a não-verdade em momento algum logra triunfar, já que a verdade sempre se mantém, deontologicamente, vencedora.
Daqui decorreria, então, ser dialéctico o ponto de partida, o qual, do mesmo passo, não poderá deixar de ser universal, visto que não só põe os particulares como os absorve em si, só sendo verdadeiro universal quando é tudo, mas é tudo unicamente quando contém aquilo que não é directamente ele. Assim, para António José de Brito, o universal, como ponto de partida, é a síntese do mesmo universal com o que se lhe opõe e nele se integra.
Adverte, contudo, o autor de Valor e Realidade, que a existência do universal só é possível se houver não-contradição, a qual, se, por um lado, constitui condição necessária do universal, por outro, só no universal encontra aquilo que lhe confere realidade, vindo esta recíproca implicação a ser o que dá corpo ao ponto de partida, na sua universalidade.
Nota, ainda, o filósofo que cumpre atender a que o universal, sendo embora tudo, o não é da maneira mais repetitiva, porquanto “há o que se opõe directamente e directamente é superado até ao que se aproxima em extremo do universal e se integra nele de maneira quase imediata”. Deste modo, o autêntico universal é universal por envolver ou implicar também o particular, pois o universal só o é, verdadeiramente, quando põe frente a si o mesmo particular, visto que, de outro modo, viria a confundir-se com ele. O mesmo é dizer que o universal envolve em si os seus opostos e que estes se inserem nele, na sua luta e na sua superadora unificação.
Com efeito, não só a dialéctica implica ruptura, se bem que constantemente ultrapassada, como a unidade inclui, sem a destruir, a variedade que com ela luta, sem lograr nunca aniquilá-la. Assim, como recorda o nosso autor, a dialéctica envolve liberdade e não liberdade reunidas ou unificadas numa síntese, “numa vitória eterna que, de várias maneiras, é ultrapassagem do inimigo, sem jamais ser a sua radical supressão”.
Neste processo intérmino, a unidade constitui o valor que, através de diversas e inesperadas formas, vai pondo o que é diverso e fazendo-o de modo também diverso, “desde a auto-superação do oposto até ao esforço do mesmo para se afirmar sem possível êxito exclusivamente numa oposição fora da unidade”.
Mas porque o valor é, por si, dever-ser, a unidade do múltiplo vem a ser valor que é dever-ser, que, no entanto, não logra alcançar completamente a sua plenitude e nem sempre se mantém de modo imutável.
Se, como vimos, para António José de Brito, o ponto de partida só pode ser o universal e se este contém tudo, o universal não pode deixar de ser o pensamento, visto que situar algo fora do pensamento é, necessariamente, ainda pensá-lo e, logo, colocá-lo no mesmo pensamento, o qual, sendo unidade, possui uma dialéctica, que é a sua própria realidade e na qual a ontologia não pode deixar de implicar uma axiologia e esta uma ontologia.
Daqui decorreriam, então, duas decisivas conclusões: a de que teoria e prática vêm a constituir uma unidade dialéctica e a de que, sendo tudo pensamento, este terá de conter, necessariamente, tudo o que se apresenta como não-pensamento, dado que, se não contivesse o seu oposto, carecia de verdadeira universalidade, a qual se configura aqui como uma dialéctica da universalidade com a pluralidade.
A ser assim, imperioso será concluir, então, que o realismo filosófico é, necessariamente, obra do pensamento, ficando, do mesmo passo, resolvida a favor do idealismo a velha querela que opões este àquele.
Deste modo, para o especulativo portuense, o idealismo apresenta-se como a doutrina da universalidade do pensamento, segundo a qual não há nada que seja de natureza diversa do pensamento, pois todas as coisas são pensamento.
Reconhece, no entanto, o nosso autor que o idealismo, enquanto doutrina da universalidade do pensamento, só será confirmada como válida se o mesmo pensamento abranger ou incluir o que se põe como oposto à primazia do pensamento, uma vez que pôr o oposto constitui o modo de superá-lo, pois, nesse caso, a universalidade estará a assumir-se como universalidade, ao não deixar nada fora de si, tudo dominando.
Ora, o pensamento é a realidade em si porque consegue abranger qualquer pretensão dele se colocar como não-pensamento, apresentando-se o idealismo como o pensamento de si próprio consciente e, nessa medida, “vencendo as oposições que ele próprio suscita em si, como melhor meio de provar que acima dele nada há”, pois, ao suscitá-las, prova a sua infinitude, realizando-a.
Deste modo, para o filósofo do Porto, tudo o que se opõe ao idealismo mais não será do que um idealismo que se ignora, um idealismo imperfeito, um pensamento que não logrou ainda alcançar a sua plenitude.
Diversamente, a concepção idealista, tal como António José de Brito a pensa, não é uma adequação ou uma correspondência do pensamento com algo diverso dele que seja o real, mas, pelo contrário, uma concepção segundo a qual o pensamento é a própria realidade, nada existindo fora dele, concepção que, por isso, se põe, imediatamente, como a verdade, como a insuperabilidade.

António Braz Teixeira
Setembro de 2012