No presente ensaio, António José
de Brito regressa aos dois temas nucleares da sua reflexão, de que são marcos
públicos mais significativos, se bem que ainda não devidamente atendidos na
nossa mais exigente vida cultural, os volumes Estudos de Filosofia (1962), Le
point de départ de la Philosophie et son développement dialéctique (1979), Para uma Filosofia (1986), Razão e Dialéctica (1979), Introdução à Filosofia do Direito
(1995), Valor e Realidade (1999), Esboço de uma Filosofia Dialéctica
(2005) e Ensaios de Filosofia do Direito
e outros estudos (2006).
Destes temas ou problemas, o
primeiro é aquele que dá o título a este breve e rigoroso estudo, problema a
que o pensamento do filósofo portuense tem procurado responder através do
aprofundamento da noção principial de insuperável
que, formulada, pela primeira vez, na tese de doutoramento que, em 1979,
apresentou à Universidade de Montpellier, encontrou, depois, mais aprofundado
tratamento e desenvolvimento, agora na nossa língua, em algumas das obras atrás
referidas, designadamente nas que deu à estampa em 1994 (reproduzindo um longo
ensaio anteriormente publicado na Revista
Portuguesa de Filosofia), 1995 e 2005, enquanto o segundo, com ele
estritamente conexo, o do idealismo
ou da opção especulativa por uma solução idealista do problema do conhecimento,
tem definido e singularizado, desde o início, a sua atitude filosófica,
encontrando-se na base do diálogo crítico que, de há muito, vem mantendo com o
pensamento de A. Miranda Barbosa (1916-1973), bem
como os reparos que não deixou de fazer às posições gnosiológicas de Leonardo
Coimbra (1883-1936) e António Sérgio (1883-1969), em seu entender
imperfeitamente idealistas, por admitirem ambas uma realidade fora do
pensamento ou a ele contraposta.
Para o mestre portuense, qualquer
demanda especulativa que pretenda alcançar algo que se apresente como firme e
sólido carece de partir do que, de si, se configure como um começo absoluto que
de nada dependa, revestindo-se, por isso, de um carácter principial ou
primeiro. Deste modo, o ponto de partida do pensar terá, necessariamente, de
ser uma noção básica de que todas as demais decorram, sendo, nesta medida,
secundárias ou derivadas em relação a ela. Porque é, assim, sempre algo
necessário e universal, o ponto de partida não pode deixar de ser um único,
inconcebíveis sendo múltiplos ou diversos pontos de partida.
Daí que António José de Brito
pense só poder constituir verdadeiro ponto de partida do pensar o que se
apresente como insuperável, entendido este como o primeiro princípio, de que
todos os outros dependem e não podem deixar de pressupor ou admitir.
Assim, para o antigo professor da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, esse ponto de partida ou
fundamento radical ou primeiro de todo o pensar terá de ser algo que se
apresente e possa ser afirmado como inegável, indubitável, insusceptível de ser
“colocado entre parêntesis”, auto-demonstrado e unidade na diversidade, tanto
como desenvolvimento lógico como dialéctica entre opostos, unidade que põe o
seu oposto e o supera.
Este conjunto de atributos que o
ponto de partida deverá reunir em si para revestir, verdadeiramente, o carácter
de insuperável primeiro princípio que de nada depende e de que tudo o mais
queda dependente, segundo o exigente pensamento do autor de Razão e dialéctica, não se encontra na
maioria das noções que, amiúde, têm sido consideradas ou pensadas como ponto de
partida, pois, segundo ele, não podem constituir verdadeiros pontos de partida
do pensar filosófico ou da Filosofia nem a linguagem nem noções com a de ser ou
de cogito, nem o pensamento
impessoal, a experiência ou a evidência, dado todas constituírem, de algum
modo, noções ou realidades segundas ou derivadas.
Por outro lado, se, como acima se
notou, o ponto de partida terá de ser algo, simultaneamente, necessário e
universal, cumpre ter em conta, que, para o especulativo portuense, o universal
se configura, necessariamente, como a unidade que tudo abrange e que, por isso,
não pode deixar de conter em si o múltiplo e o variado, o mesmo é dizer que a
unidade e o universal contêm em si, de diversas e múltiplas maneiras, o múltiplo
e o particular, já que, se o não contivessem, não seriam, de modo autêntico,
universalidade do múltiplo.
Para António José de Brito, a
unidade do universal não é uma unidade estática mas uma unidade dinâmica,
porquanto a ela preside ou nela está ínsita a luta, em que, como escreve o
nosso filósofo, “pelo menos idealmente, é vitoriosa a unidade e em que jamais
conseguem triunfar as variadas espécies em composição, seja de que maneira for,
embora a luta, em compensação, nunca cesse”. Para o mestre portuense, este
combate incessante, esta imobilidade nunca alcançada, esta vitória jamais
definitiva constituiriam a dialéctica do real, dialéctica eterna em que a
não-verdade em momento algum logra triunfar, já que a verdade sempre se mantém,
deontologicamente, vencedora.
Daqui decorreria, então, ser
dialéctico o ponto de partida, o qual, do mesmo passo, não poderá deixar de ser
universal, visto que não só põe os particulares como os absorve em si, só sendo
verdadeiro universal quando é tudo, mas é tudo unicamente quando contém aquilo
que não é directamente ele. Assim, para António José de Brito, o universal,
como ponto de partida, é a síntese do mesmo universal com o que se lhe opõe e
nele se integra.
Adverte, contudo, o autor de Valor e Realidade, que a existência do
universal só é possível se houver não-contradição, a qual, se, por um lado,
constitui condição necessária do universal, por outro, só no universal encontra
aquilo que lhe confere realidade, vindo esta recíproca implicação a ser o que
dá corpo ao ponto de partida, na sua universalidade.
Nota, ainda, o filósofo que
cumpre atender a que o universal, sendo embora tudo, o não é da maneira mais
repetitiva, porquanto “há o que se opõe directamente e directamente é superado
até ao que se aproxima em extremo do universal e se integra nele de maneira
quase imediata”. Deste modo, o autêntico universal é universal por envolver ou
implicar também o particular, pois o universal só o é, verdadeiramente, quando
põe frente a si o mesmo particular, visto que, de outro modo, viria a
confundir-se com ele. O mesmo é dizer que o universal envolve em si os seus
opostos e que estes se inserem nele, na sua luta e na sua superadora
unificação.
Com efeito, não só a dialéctica
implica ruptura, se bem que constantemente ultrapassada, como a unidade inclui,
sem a destruir, a variedade que com ela luta, sem lograr nunca aniquilá-la.
Assim, como recorda o nosso autor, a dialéctica envolve liberdade e não
liberdade reunidas ou unificadas numa síntese, “numa vitória eterna que, de várias
maneiras, é ultrapassagem do inimigo, sem jamais ser a sua radical supressão”.
Neste processo intérmino, a
unidade constitui o valor que, através de diversas e inesperadas formas, vai
pondo o que é diverso e fazendo-o de modo também diverso, “desde a
auto-superação do oposto até ao esforço do mesmo para se afirmar sem possível
êxito exclusivamente numa oposição fora da unidade”.
Mas porque o valor é, por si,
dever-ser, a unidade do múltiplo vem a ser valor que é dever-ser, que, no
entanto, não logra alcançar completamente a sua plenitude e nem sempre se
mantém de modo imutável.
Se, como vimos, para António José
de Brito, o ponto de partida só pode ser o universal e se este contém tudo, o
universal não pode deixar de ser o pensamento, visto que situar algo fora do
pensamento é, necessariamente, ainda pensá-lo e, logo, colocá-lo no mesmo
pensamento, o qual, sendo unidade, possui uma dialéctica, que é a sua própria
realidade e na qual a ontologia não pode deixar de implicar uma axiologia e
esta uma ontologia.
Daqui decorreriam, então, duas
decisivas conclusões: a de que teoria e prática vêm a constituir uma unidade
dialéctica e a de que, sendo tudo pensamento, este terá de conter,
necessariamente, tudo o que se apresenta como não-pensamento, dado que, se não
contivesse o seu oposto, carecia de verdadeira universalidade, a qual se
configura aqui como uma dialéctica da universalidade com a pluralidade.
A ser assim, imperioso será
concluir, então, que o realismo filosófico é, necessariamente, obra do
pensamento, ficando, do mesmo passo, resolvida a favor do idealismo a velha
querela que opões este àquele.
Deste modo, para o especulativo
portuense, o idealismo apresenta-se como a doutrina da universalidade do
pensamento, segundo a qual não há nada que seja de natureza diversa do
pensamento, pois todas as coisas são pensamento.
Reconhece, no entanto, o nosso
autor que o idealismo, enquanto doutrina da universalidade do pensamento, só
será confirmada como válida se o mesmo pensamento abranger ou incluir o que se
põe como oposto à primazia do pensamento, uma vez que pôr o oposto constitui o
modo de superá-lo, pois, nesse caso, a universalidade estará a assumir-se como
universalidade, ao não deixar nada fora de si, tudo dominando.
Ora, o pensamento é a realidade
em si porque consegue abranger qualquer pretensão dele se colocar como
não-pensamento, apresentando-se o idealismo como o pensamento de si próprio
consciente e, nessa medida, “vencendo as oposições que ele próprio suscita em
si, como melhor meio de provar que acima dele nada há”, pois, ao suscitá-las,
prova a sua infinitude, realizando-a.
Deste modo, para o filósofo do
Porto, tudo o que se opõe ao idealismo mais não será do que um idealismo que se
ignora, um idealismo imperfeito, um pensamento que não logrou ainda alcançar a
sua plenitude.
Diversamente, a concepção
idealista, tal como António José de Brito a pensa, não é uma adequação ou uma
correspondência do pensamento com algo diverso dele que seja o real, mas, pelo
contrário, uma concepção segundo a qual o pensamento é a própria realidade,
nada existindo fora dele, concepção que, por isso, se põe, imediatamente, como
a verdade, como a insuperabilidade.
António Braz Teixeira
Setembro de 2012