PAIVA COUCEIRO, CONDESTÁVEL DA PÁTRIA
J. Pinharanda Gomes
A recente publicação de um livro documental sobre Paiva Couceiro (Paiva Couceiro. Diários, Correspondência e Escritos Dispersos, 2011) da autoria do Doutor Filipe Ribeiro de Meneses, trouxe-nos à relembrança a figura do seu Testamenteiro Político, o Dr. Francisco Manso Preto Cruz (Lagares da Beira, 1883 – Lx.ª., ?), personalidade que de perto conhecemos há um bom meio século. Dele temos a imagem de um cavalheiro para o alto, monárquico professo e escritor algo bafejado por espírito criativo. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, era redactor da Câmara dos Pares quando os acontecimentos de Outubro de 1910 ocorreram. Na data da licenciatura (1907), era Henrique de Paiva Couceiro Governador de Angola, tema da sua mais carismática obra literária (de teoria política) intitulada Angola (Estudo Administrativo), publicada através da Tipografia da Cooperativa Militar de Lisboa, em 1898.
Nesta obra, cremos que pouco ou nada lida em nossos dias, Paiva Couceiro patenteou raríssimas qualidade de construtor de um Estado, como outra criatura, filha da mesma pátria. Escrevia então: “As nossas aspirações para o futuro de Angola deviam ter por objecto a transformação desse vasto território numa grande província portuguesa, falando a nossa língua, seguindo os nossos usos, reproduzindo as nossas tradições, consolidando-se enfim, pela alma, com a nossa própria nacionalidade” (p. 17). Um fenómeno político-cultural, com apoio em sistema económico por ele definido e projectado, no “sonho e aspiração vivida de cada noite, e de cada hora “– reconstituir um Portugal respeitado e forte” (p. 94). Anteviu a possibilidade de a Província se assumir como Estado independente, mas acreditava que “nem por isso cessará o benéfico influxo resultante das relações mútuas” (p. 18). Mais do que doutrina, é programa de acção governativa.
Paiva Couceiro estava dotado (ou dotara-se) dos carismas de governante, nome tipológico raro atribuível aos políticos que não souberam elevar a Monarquia e, depois, aos que não conseguiram levar a efeito uma digna República, assim conforme ao juízo de quem, no ano de 1924, escrevia na revista A Águia: “Esta não é a República que os senhores sonharam”. A frase é do discurso que Leonardo Coimbra proferiu no Porto, dirigindo-se aos militantes do Partido Nacionalista, que desejava salvar a República (ver A Águia, n.ºs 23/24, 1924, pp. 178-182, p. 181).
Principal ultramarinista, cujo método Norton de Matos também tentou praticar, a figura de Paiva Couceiro está injustiçada. A República reinante não lhe perdoou as tentativas restauracionistas, quais as de Chaves, em 1911 e da Monarquia do Norte, em 1919, antes de sujeito a um humilhante exílio, deportado e posto na fronteira, sem documentos de identidade, em Outubro de 1937, exílio vivido em Granadilla, onde escreveu, durante o ano de 1939, a Profissão de Fé – Lusitânia Transformada (Ed. Gama, Lx.ª, 1944). De lá voltou um dia, para, ao menos, fechar os olhos na terra natal, era o dia 11 de Fevereiro de 1944.
“Soldado de Portugal”, agora, e ainda, sujeito ao exílio por quem antepõe o credo partidário à lealdade à Pátria. Nem todos teremos já entendido o lema dos Reis da Etiópia que Paiva Couceiro aportuguesou: “Portugal não estende a mão senão a Deus”. Não se rebelou por ambição. No Ministério da Guerra, em 2 de Abril de 1911, afirma: “Revolto-me contra a República para salvar Portugal”.
Qual outro Santo Condestável foi compensado, na medida do possível, pela lealdade e, diremos, veneração, do seu testamenteiro político, Francisco Manso Preto Cruz, que tivemos o ensejo de conhecer cerca de 1960, através de outras pessoas do mundo político-literário, no Café Palladium, junto ao Elevador da Calçada da Glória, que ele habitualmente frequentava aos fins de tarde. O local de actividade profissional que me fora atribuído situava-se no início da Avenida da Liberdade, no mesmo passeio do Café Palladium, sendo normal que, ou com brevidade, ou morosidade, fosse possível cumprimentá-lo e beneficiar da sua conversa, que invariavelmente afluía à memória de Paiva Couceiro.
Preto Cruz era monárquico, não tinha uma vida fácil, vivendo decerto de alguma pequena reforma, já como antigo funcionário, já como advogado aposentado. Considerava Salazar apenas um “contabilista” e, quanto a Carmona, achava que ele era o principal objector, enquanto militar, à figura de Paiva Couceiro, caso contrário teria evitado o seu exílio. Ignoramos se tinha família próxima, mas sabiamos que residia em quarto alugado. Quando publicou a Biografia Política do Comandante (como chamava a Couceiro) morava na Rua do Conde de Redondo, n.º 14, r/c Dto. Quando o conhecemos, morava numa casa de família, sita na Rua de S. José, n.º 45, r/c, no prédio em que, no 2.º andar, estava instalada a Sociedade da Língua Portuguesa. Tendo mudado de local de trabalho, bem afastado do centro de Lisboa, em Setembro de 1966, não mais voltámos a encontrá-lo, nem sequer vimos, fosse o que fosse, acerca do seu falecimento que terá ocorrido cerca de 1970, dada a idade avançada (77 anos) em que o conhecemos. Não vimos o livro do Dr. Ribeiro de Meneses, onde talvez algo conste.
Discípulo de Paiva Couceiro, viveu o caso de Angola com paixão e militância, tendo publicado, que saibamos: Salvemos Angola (1964) e Em Defesa do Ultramar (1961, reeditado em 1965). À questão social dedicou pelo menos o ensaio A Emancipação Económica e Social dos Operários e dos Trabalhadores do Campo (1946), Romance Antigo: Os Ferroviários (1950) e Reivindicação, Romance Social (1954). Na sua bilbiografia pesa, no entanto, o elenco sobre Couceiro, designadamente, P.C., Politico, Militar, Colonial (1944), O Exemplo Politico de Paiva Couceiro (1945), Vitória do Espírito (1948) e, sobretudo, A Biografia Política e o In Memoriam de Henrique de Paiva Couceiro (1946).
Consideramos que a análise do espólio couceirino, entregue pela família à Biblioteca Nacional, permitirá a elaboração de uma grande biografia, digna do Condestável. Entretanto, a obra devida a Preto Cruz é paragem estacional obrigatória. Na primeira parte, em onze capítulos, apresenta a biografia do Comandante, e, na segunda parte, inclui os testemunhos de várias personalidades da vida cultural e política, como o romancista Tomás de Figueiredo e outros, sobretudo monárquicos, mas no conjunto avulta a biografia espiritual escrita pelo Padre Sebastião Pinto da Rocha, S. J., que regista os últimos momentos de Paiva Couceiro, junto a um crucifixo, suplicando: “Ó meu Rei! Ele é o amor de sempre, de toda a minha vida”. Esses momentos de vida beata tornam bastante parecidas as vidas dos dois Condestáveis: Nuno Álvares Pereira e Paiva Couceiro.
A fechar, o testamento do biógrafo: “O meu ‘serviço’ finda aqui. Cumpri as ordens do Comandante, e tudo o que lhe prometi, ao receber o seu sagrado e honroso mandato. [...] Dei à história deslumbrante da vida heróica e política de Paiva Couceiro, todo o meu coração. Nada mais tinha para lhe oferecer”.
E ainda: "APOLOGIA DA GRAMÁTICA ELEMENTAR"