
DA MEMÓRIA… JOSÉ LANÇA-COELHO
Terminámos o artigo anterior com uma apreciação negativa a Baudelaire da parte de Miguel Torga transcrita do Diário I, porém, o autor de S. Martinho de Anta volta a falar do autor de As Flores do Mal no Diário II, ao mesmo tempo que o compara com outros três autores, como se constata na seguinte passagem:
“Coimbra, 22 de Dezembro de 1942 – Não há dúvida nenhuma: se um leitor não se tem firme nos pés diante de certos livros e de certos autores, acontece-lhe como quando a gente se debruça a uma alta janela e olha com adesão exagerada para o fundo: atira-se dali abaixo. E coisa curiosa: tanto monta que o aceno venha dum clássico, como dum romântico, como dum realista, como dum futurista. Desde que a mão feiticeira que o faz saiba da sua poda, um homem, que ainda ontem era enforcado de Villon, passa a satânico de Baudelaire sem qualquer cerimónia. Por mim, já esta semana tive tentações de ser o Bimnarder da Menina e moça, o António de Faria da Peregrinação, o Nathanael das Nourritures terrestres, e não sei que mais. Mas é claro que me segurei ao parapeito da janela, e não cedi à atracção do abismo. – Calma! Calma – ia murmurando, a ter mão no juízo. Calma, que mais vale um caldo de couves em choupana nossa, do que um lauto banquete em palácio alheio.” (D. II, pp. 96-97)
Como já se percebeu, os autores que vimos citando aparecem aqui por ordem alfabética. Assim, depois de Baudelaire, surge Raul Brandão, o autor português de quem Torga cita a obra Os Pescadores.
“Leiria, 9 de Julho de 1939 – Berlengas o dia inteiro. Vide Raul Brandão, página 195 de Os Pescadores. (Para que raio há-de a gente estar para aqui a presumir).” (D. I, P. 99)
Em seguida, surgem diversos livros e seus respectivos autores ligados à Índia: Tagore, Fernão Mendes Pinto e Rudyard Kipling. Ao lado desses escritores, outros dois magos do pensamento humano – Buda e Gandhi.
“Coimbra, 9 de Agosto de 1941 – A propósito da morte de Tagore, fui reler coisas da Índia. Daquela Índia maravilhosa, que em mim começa em Fernão Mendes Pinto, passa pelo Buda, e acaba no Rudyard Kipling. Li, e perdi-me como sempre num fantástico labirinto humano, onde até um Deus pode morrer ortodoxamente duma indigestão de carne de porco. Passei pelos jejuns do Gandhi, pelo barqueiro que esteve um ano a fio a contemplar uma árvore, e só parei diante de um extraordinário monge, rapaz novo ainda, de lindos olhos, pelos quais a esposa de um mercador se enamorou. A tentá-lo, a mulher parecia a serpente do Paraíso. Falava-lhe daqueles olhos como das riquezas de um marajá. Mas ele sabia disto de castidade. E não esteve com meias medidas: arrancou um olho, e secou o pecado da cobra pondo diante do fogo do seu desejo aquele pedaço de carne sangrento e feio. (…)” (D. I, p.199)
Segue-se Byron, o autor que tratou tão mal os portugueses, quando os confrontou com as belezas de Sintra, pelas quais se apaixonou.
“Coimbra, 25 de Janeiro de 1937 – Leitura de uma «Vida de Byron». Não há dúvida nenhuma que aquele homem foi uma espécie de Henrique VIII do reino da poesia. Coragem de ser quem era, e coragem de pôr a sua realeza ao serviço do seu corpo. Pessoalmente, prefiro um Shelley honrado, a sustentar o sogro, a dar lebre por lebre, e sem sombras de incesto. Mas é evidente que se não fossem os Byrons que de vez em quando aparecem na família dos poetas, a humanidade, com o desprezo que tem por nós, já nos tinha mandado capar a todos.” (D. I, p. 35)