DA MEMÓRIA… JOSÉ LANÇA-COELHO
Em Ir à Índia sem Abandonar Portugal (pp.26-27), Agostinho da Silva fala da sua passagem pela Faculdade de Letras do Porto, fundada por vultos como Leonardo Coimbra, Teixeira Rego, Hernâni Cidade e Damião Peres.
Quanto à sua vida académica, Agostinho da Silva define-se como, “manhosamente era um bom estudante”, justificando esta atitude do seguinte modo, “porque é a única maneira da gente não se chatear, é estudar tudo, não é?”, concluindo que, “Então, bom é estudar. Manhosamente, o sujeito deve estudar. A cabulice não dá certo. Eu fazia isso, só tinha vinte (…)”.
Porém, não se julgue que a nota máxima era extensível a todas as matérias, pois havia uma que, paradoxalmente, Agostinho da Silva não gostava de estudar, “praticamente a única cadeira em que eu nem dez tinha era Filosofia”.
É aqui que entra o elogio à pedagogia de Leonardo Coimbra, quando Agostinho da Silva o define como, “um homem muito compreensivo”, afirmando que, da primeira vez que foi seu aluno, “em Psicologia não-sei-quê”, Leonardo terá posto um problema de Geometria.
Servindo-se do seu conhecimento das Geometrias não-euclideanas - ”eu de Filosofia não sabia” – confessa Agostinho da Silva, este, dissertou sobre as Geometrias euclidianas e as não-euclidianas “que é um problema filosófico, e que o Leonardo tomava como problema filosófico (além de o tomar como um problema matemático, porque ele era bom matemático, tinha sido aluno da Escola Naval…), ele deu-me dez para eu passar”.
Da segunda vez que Agostinho da Silva foi discípulo de Leonardo Coimbra, este último terá ainda sido, a meu ver, mais compreensivo, e se Agostinho da Silva louva a atitude pedagógica de Leonardo Coimbra, eu não posso deixar de evocar a honestidade e a coragem de Agostinho, ao tornar público este episódio da sua vida académica, que, lhe poderia valer muitas críticas, dada a inveja que grassa nos meios universitários. Só um Homem, despojado das vaidades humanas, um verdadeiro filósofo!, como ele era, o podia fazer.
Vamos, então, ao episódio em questão. Agostinho da Silva diz que a segunda vez que cruzou a sua vida de discípulo com Leonardo, foi na ‘cadeira’ de Filosofia Medieval, matéria sobre a qual nada sabia nem, na altura, se interessava, o que levou o pedagogo a dizer-lhe: “Eu não lhe posso dar nem dez para você passar! Mas tem tão boas notas que ninguém vai acreditar nisso… e estraga-lhe a média. Vamos fazer uma coisa: vamos ver que nota é que não lhe estraga a média.” E acabei por ter dezassete a Filosofia (…). Sinal de que aquela Faculdade tinha pelo menos um – tinha mais – professor inteligente, o que nem sempre sucede em todas as faculdades (…)”.
Realmente, só um verdadeiro pedagogo podia ter uma atitude como esta. Eu que também fui professor compreendo-a perfeitamente. Que interessava a um professor reprovar um aluno na sua ‘cadeira’, quando ele tinha notas de vinte em todas as outras? Só lhe ia estragar a média final e fazer com que ele ganhasse um azar à Filosofia Medieval, matéria pela qual, o aluno em questão mais tarde veio a gostar.
Estes dois exemplos sobre a prática pedagógica de Leonardo Coimbra fornecidos por Agostinho da Silva, mostram como o primeiro era um verdadeiro Pedagogo e, o segundo, já o dissemos, mas nunca é demais repetir nos tempos actuais, em que a mesquinhez e a inveja grassam aflitivamente, um verdadeiro filósofo. Aliás, note-se a ombridade do ‘amante da sabedoria’ quando na sequência do exposto, afirma: “O primeiro governo da Ditadura, resolveu extinguir a Faculdade. (…)Não sei se o Carmona percebeu o que era a Faculdade de Letras, não sei se julgou que era alguma coisa de tipografia porque falava em letras (…) Fizeram-me (…) um grandessíssimo favor! Porque eu tinha entrado naquela máquina da faculdade, ia ser professor de Grego e Latim, que é uma coisa que se estuda toda a vida e nunca se sabe…”
Quem tinha coragem para declarar que nunca viria a saber a matéria que estudou durante toda a sua existência?