DA MEMÓRIA… JOSÉ LANÇA-COELHO
Na perspectiva do filósofo português Agostinho da Silva, dentro do tema «Trabalho», há que considerar os «Amadores de Coisas», elemento essencial e, assim definido:
AMADORES DE COISAS
“ «O senhor o que é que gostaria de ser?», talvez ele dissesse «Ai, eu gosto muito de guiar carros.» Muito bem. Pronto, gosta de guiar carros, estupendo. Então, entra numa classe que temos de aproveitar no mundo futuro, que é a classe dos amadores de coisas. Há uma quantidade de gente que é amadora de fazer aquilo que a nós, por exemplo, custaria. Mas eles gostam… (…) Há sujeitos que não gostam de fazer coisa nenhuma senão de estar a olhar para ma nuvem. Eu considero esses tipos utilíssimos, porque ninguém sabe o que sairá dali. Não se conta aquela história de que a lei da gravitação apareceu por ter caído uma maçã na cabeça de Newton? Não era obrigatório que o Newton estivesse a estudar Matemática na altura em que lhe caiu a maçã na cabeça… podia estar a dormir debaixo da árvore, ou ter acordado naquele momento, ou qualquer coisa assim, eu sei lá! Quem me diz que a um homem, cujo ideal é estar de papo para o ar olhando para as nuvens, de repente, não se lhe atravessa na cabeça uma ideia? Por que é preciso intuir isso, hem? É que há pessoas que julgam que fabricam as ideias com a cabeça. (…) O facto da ideia ser secreta, ele conhece-a, eu não, dá-me a ideia de que ele é que está, realmente, a pensar com a cabeça dele. (…) qualquer sujeito que já fez versos, ou fez Matemática, ou qualquer coisa assim, sabe perfeitamente que de vez em quando a cabeça é atravessada por um verso.” (Agostinho da Silva, Ir à Índia sem Abandonar Portugal, pp. 16-17.)
Agostinho da Silva afirma aqui, que, não é pelo facto de se estar deitado e olhando o firmamento que, de um momento para o outro, não se possa ter uma ideia genial, facto que pode ser comprovado, por qualquer pessoa que tenha já feito qualquer tentativa de concreto no campo das Letras ou das Ciências.
Um pouco mais adiante Agostinho da Silva disserta sobre a importância das máquinas para a Humanidade, afirmando que para além delas e da já citada, classe dos amadores, existem as pessoas que estão prontas a sacrificar-se pelos outros, e, o serviço civil.
Este último item leva-o a falar da reforma. Assim, depois de se questionar sobre o que é um homem reformado, responde do seguinte modo:
REFORMADO
“ Quer dizer que esse homem cumpriu um certo número de anos de serviço, civil ou militar. A partir daí é dispensado. Acha-se que já contribuiu o bastante para toda a gente comer – e ele próprio -, de maneira que pode ir para casa e terá de comer. É evidente que se aproveitássemos ao máximo todos os recursos que há hoje, ninguém teria de se reformar aos sessenta ou setenta anos, toda a gente se poderia reformar aos trinta, por exemplo, ou aos quarenta…E muita gente já se reforma. Gente que, por acaso, entrou muito cedo num determinado serviço, ou, noutros casos, lhe contaram em dobro o tempo.” (Agostinho da Silva, Ir à Índia sem Abandonar Portugal, pp. 20-21)
É curioso o modo como Agostinho da Silva termina o presente escrito, intitulado «Elogio do Ócio» (pp. 15-21), referindo como a anterior situação se aplica a ele próprio. Assim, revela que, quando ainda era professor de liceu, concorreu para Moçambique, sabendo que o tempo de magistério exercido naquela antiga colónia, lhe contaria a dobrar para efeito de reforma:
“ De maneira que ia-me reformar muito cedo, e como havia muita coisa em que pensava e que queria fazer… uma delícia! Porque me libertavam daquela coisa toda de ensinar latim aos meninos, aí aos cinquenta anos, e eu, de acordo!” (Agostinho da Silva, Ir à Índia sem Abandonar Portugal, p. 21).