(nova versão do poema "Ressurreição" que lerei hoje, com a música de Vítor Rua e o video de Ilsa d'Orzac, no espectáculo "A Arte na era do porquinho Babe", às 23 h, no Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, em Lisboa)
Gemem nos infernos da terra desolada
corações oprimidos negros esmagados
Revolvem-se no circo de dor do mundo
vidas escravizadas esfoladas torturadas devoradas
Natureza viventes esventrados e abatidos
Para gáudio da humana desmesura
Murmuram suspiram gemem gritam
Assim gememos e gritamos nós
pois tudo nos é íntimo
e somos afinal nós mesmos
que ignaros e ávidos atormentamos e abatemos
Defuntos infantes de uma Terra Pura
erramos no limbo da matriz que violamos
e são nossas próprias formas que vorazes e ledos devoramos
Nossos o abrir fechar de todos os olhos bocas
a fome sede de todas as gargantas
a volúpia de todos os sexos
o pulsar de todos os corações
a cega ânsia dos viventes
por algo apenas obscuramente entrevisto e pressentido
Suas raízes as nossas
febris veias sinuosas
afundando-se e serpenteando silenciosas
nas auroras negras que há por dentro das coisas
a revolver o âmago de tudo em insónias e espantos
espectros lentos que sobem à tona
chamas surdas que crepitam e crescem
a lavrar o íntimo da imensidão
que tarda em amanhecer
Ó turba que adias o despertar
da rumorejante e dolorosa noite do haver!
Sepultos no âmago dos mundos
alucinados assomamos aos berços aos afagos aos rostos
ao riso às lágrimas aos gritos
à faminta aurora do existir
aos sepulcros caiados do que parece
ao delírio do nascer e morrer
e assim rondamos na roda do desejo
que a própria boca sempre outra beija
e o alucinado devir sem fim fecunda e renova
Mas o que sempre agora e instante, ó Irmãos, vem
por entre este murmurante e tépido renovar do mundo
por entre este amoroso halo que às coisas nimba
por entre estas ridentes e floridas núpcias de tudo
por entre estas danças cantos coroas grinaldas
é outra coisa
É a vera verdade prima
Primavera do despertar que nunca conheceu sono
o eterno vivente na orla sem margens do existir
que ressuma da ânsia da terra queimada
e do silente sufocado gemido das vidas e das coisas
O que cresce do fundo de o não haver
e em cada um de nós se faz visão alento corpo
no súbito estremecer de tudo
O que agora se celebra e canta, ó Irmãos
é mistério maior que o haver mundo
mistério maior que o haver
tal qual maior que todo o mistério
É o jamais termos sido reais ou possíveis
o jamais ter havido alguma coisa
e sequer a ideia de haver
O que agora se celebra e canta, ó Irmãos
a trespassar toda a ilusão dor e morte
é a eterna e instante Ressurreição
de nada jamais ter início, duração e fim
e assim, mas de outro modo
oblíquo, fulgurante e maravilhoso
tudo ser afinal e sempre possível
O que agora se celebra e canta é este prodígio natural
de nada ser um e só
esta revoada de fauces bocas mãos asas patas pêlos escamas
que, ígneas pombas bravas, do imo de cada poro
em adamantinos ímpetos se nos elevam
e súbito se transmudam em miríades de vidas outras ignotas loucas impossíveis
a multiplicarem-se ébrias das infinitas possibilidades que há nas infinitas possibilidades que há nas infinitas possibilidades que há no esplendoroso vazio de tudo
Ó turbamulta cascata vertigem abismo
de tudo quanto passado presente futuro
viveu vive viverá
e aqui agora simultaneamente vive imagina pensa sente
Ó multiforme turbilhão de tudo quanto sem acontecer acontece
de tudo o que se agita raiva revolve
em dor júbilo medo esperança
no fundo sem fundo
da terrível e fantástica inconsciência disso
É esse o grande tumulto que aqui agora
neste e em todos os cantos
neste e em todos os poemas
dos fundos da terra queimada
e da tortura dos viventes desponta
O grande clamor das árvores mirradas retorcidas sedentas
o grande clamor dos vivos mortos desatentos esquecidos
rompendo eras mundos paraísos infernos
em rebentos viços e seivas novas
Das árvores nossos corpos amotinados insubmissos amantes
estendendo grandes ramos
vigorosos braços pulsantes
em filigrana ao espaço cingidos
Nossos corpos uns aos outros abraçados enxertados fundidos
humanos animais divinos
multiplicados em folhas flores frutos
espontaneamente jovens e maduros
explosivos de tão plenos tão frementes tão puros
E neles todos os sonhos alucinações delírios
todas as vidas todas as mortes
todas as lágrimas todas as fezes todo o sangue
todo o furor toda a impotência
toda a fome toda a sede todo o cio
todos os encontros todas as perdas todas as despedidas
todo o ranger de dentes todo o tactear às escuras
todas as alegrias todos os pasmos todos os júbilos
todas as esperanças todos os desenganos
todo o vício toda a virtude
todos os crimes todas as expiações
todos os infernos todos os mundos todos os céus todos os paraísos
Tudo isso e o seu rotundo nada
o seu imenso vazio a sua prodigiosa evanescência
em cada fruto brilhante e pleno que da miríade de nossos ramos pende
imperioso e súbito se avoluma até eclipsar o espaço
e neste mesmo instante em torrencial vertigem de luz explode
Branco
Vermelho
Negro
.........................................
Agora pode enfim haver mundo
sonho eternamente livre de o ser
Todos os vivos fluxos infantes sem nome pais pátria morada
Todos os fenómenos danças cantos hinos jogos
Todos os sons poesia muda
Todos os pensamentos invisíveis asas
omnipresentes no infinito espaço que não há
Todas as coisas
Ressurreição de as haver
Todas as coisas
Ressurreição
de a haver
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
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