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quarta-feira, 14 de abril de 2010

Para um dos próximos volumes da Colecção NOVA ÁGUIA

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NOTA SOBRE O APARECIMENTO DA FENOMENOLOGIA EM PORTUGUAL


António José de Brito


Como diria, com irresistível lógica M. de la Palisse, para classificarmos um filósofo como fenomenólogo, precisamos de ter uma noção adequada de fenomenologia.
Talvez nos objectem que isso é impossível, porque todas as noções são convencionais, ou até, mais simplesmente, porque tudo é convencional. Ponhamos de lado, porém, tal ponto de vista, que se destrói a si próprio, porque, se tudo é convencional, então podemos convencionar que o convencional é anti-convencional, acontecendo, assim, que “tudo é convencional” se transforma no seu oposto, aniquilando-se a si mesmo.
Se, portanto, não é impossível estabelecermos a noção de fenomenologia, não podemos deixar de reconhecer que a tarefa é difícil. Basta recordar, por exemplo, que Spiegelberg, na sua conhecida obra “The Phenomenological Movement”, abrange autores tão variados que vão de Franz Brentano e Merleau-Ponty.
Então que critério vamos utilizar para estabelecer o verdadeiro conceito de fenomenologia? Usaremos um critério meramente nominal, isto é, consideraremos fenomenologia aquilo que como tal for denominado ou auto-denominado? Nessa altura, bastará que um autor se proclame, ou seja chamado fenomenólogo, para ser genuinamente adepto da fenomenologia. Esta será considerada como englobando as concepções de todos os autores que se classifiquem ou sejam classificados de fenomenólogos. Simplesmente, acontecerá, então, que a fenomenologia abarcará as coisas mais díspares ou mais afastadas entre si, não passando de um flatus vocis.
Recorrendo a um exemplo, diremos que, no § 7 de “Sein und Zeit, Heidegger afirma que vai recorrer, na sua investigação ontológica, ao método fenomenológico de Husserl, a quem se refere muito elogiosamente em notas.
Acontece, todavia, que se examinarmos as concepções de Husserl e de Heidegger, verificaremos que estão bem longe de se mostrarem próximas ou patentearem afinidades em pontos fundamentais.
Julgo que a filosofia de Husserl (e de Scheler) tem dois momentos capitais: 1) a redução, isto é, o afastamento de todo o pre-conceito ou pre-juízo, o banimento daquilo que seja aceite previamente ao estabelecer-se uma tese considerada básica; 2) depois de feita a redução, só aceitar então o que aparece de forma directa, mediata, intuitiva, ou seja, o fenómeno puro numa experiência que podemos considerar a priori porque não assenta no que é dado a um sujeito corpóreo que o apreende através de sensações. Ora, não vemos em Heidegger nem a redução nem o dado intuitivo e directo, numa palavra, o que se assemelha essencial em Husserl.
Talvez se me objecte que Heidegger invoca a tese husserliana de dirigir-se às coisas mesmas (zu den Sachen selbst), isso bastando para merecer o título de fenomenólogo. Em todo o caso, o dirigir-se às coisas mesmas não é o equivalente à redução e ao intuicionismo, juntando-se a isto que o próprio Heidegger indica que dirigir-se às coisas mesmas pode significar a atitude própria de toda a espécie de investigação e não caracterizar, unicamente, a atitude fenomenológica. E parece-nos que é de adoptar semelhante observação, pois o materialismo pretende atingir as coisas mesmas, ou o idealismo igualmente, ou o espinosismo, e assim por diante.
Quer isto dizer que, apesar das suas declarações, a perspectiva do autor de “Sein und Zeit” está bastante afastada de Husserl (e de Scheler). E se estes são representantes típicos da fenomenologia, não supomos que os pensadores que perfilhem concepções divergentes mereçam ser qualificados de adeptos da fenomenologia.
Chamamos a atenção para o seguinte ponto: não pretendemos lançar um veto absoluto para o emprego do termo fenomenologia em sentido diferente daquele que é usado por Husserl e Scheler. A linguagem possui um mínimo de convencionalidade. Desde que se forneçam os devidos esclarecimentos, não há dúvida que é lícito dizer que filosofemas bem afastados dos pensadores que referimos – e que, unanimemente, ou quase unanimemente, são proclamados fenomenólogos – podem ser classificados como tal, embora, seja dito entre parêntesis, só se contribua para espalhar confusões, tal como só serve para estabelecer confusões baptizar a monarquia de democracia, ainda que acentuando que não se pretende que aquela seja o governo do povo pelo povo.
Tendo procedido a esta breve e, como tal, imperfeita anotação acerca do que representa a fenomenologia, passemos então a indicar de que modo foi surgindo a fenomenologia no nosso país.
*
Entendemos que o primeiro fenomenólogo português foi Luís Cabral de Moncada em “Do Valor e Sentido da Democracia”, obra que se apresenta como “conclusão de uma série de reflexões sobre o mesmo tema ocorridas numa troca de impressões no ano de 1929 com o ilustre escritor António Sérgio” .
Esta troca de impressões girou, fundamentalmente, sobre a possibilidade do dever-ser poder ser extraído da experiência sensível da ciência positiva. Sérgio considerava impossível derivar normas dos factos, negando, em princípio, a existência duma autêntica ciência política ou, se quisermos, ético-política. Moncada, ao invés, abertamente invocava ensinamentos normativos da ciência social com base na experiência sensível factual. Ora, semelhante ponto de vista é rectificado em “Do Valor e Sentido da Democracia”. Leia-se antes de mais nada, a seguinte nota : “…se tomarmos a experiência no sentido lato da experiência imanente, de experiência no sentido fenomenológico da palavra, abrangendo a própria intuição das essências, então não será difícil achar também um fundamento “empírico” latu sensu para a nossa preferência dada aos valores da personalidade como os mais elevados. Não podendo entrar aqui em desenvolvimentos, limitamo-nos a dizer que reputamos os valores da personalidade os mais altos de todos… É numa experiência, desse modo entendida, que se funda a nossa preferência pelo personalismo como atitude inicial, a mesma sobre que os fenomenologistas fundam a ciência moral, como por exemplo Max Scheler, ao dizer que “jede Art von Erkenntnis wurzel in Erfahrung und auch dis Ethik muss sich auf Erfahrung gründen (todo o conhecimento se funda na experiência e a moral deve também fundar-se na experiência)”.
Aludindo à experiência imanente como própria da fenomenologia, Moncada usa a expressão de Scheler quando esclarece que “a experiência fenomenológica é experiência puramente imanente” .
Experiência puramente imanente é, parece-me óbvio, a que não assenta em pressupostos, logo firma-se numa redução que permite a apreensão directa e imediata do que é.
Porventura, observar-nos-ão que Moncada fala em empírico lato sensu, o que é muito pouco fenomenológico. Replicaremos que o contrário é que possui verdade. Com efeito, Husserl não deixa de afirmar que “o naturalismo empirista procede – devemos reconhecê-lo – de motivos estimáveis” , ao passo que Scheler sublinha que há um sentido em que é possível considerar “a filosofia fenomenológica um empirismo e um positivismo de tipo radicalíssimo” , usando precisamente a expressão que Moncada utiliza: “experiência imanente”.
Acentuemos que a influência de Scheler sobre Moncada foi assaz patente, pois se aquele caracteriza o seu personalismo como expressão duma “ordre du coeur” diferente da razão, Moncada igualmente entende que a concepção correcta de pessoa não é a racionalista, ambos entendendo que o Estado não deve sobrepor-se à personalidade ou tentar que esta se identifique com ele. Explicitando o seu pensamento, Scheler traça as seguintes linhas: “não consigo ver mais do que uma imensa banalidade e uma simplificação infantil dos problemas na confrontação, que ainda se encontra em muitos investigadores de importância, entre o individualismo – falso, na sua opinião – da interpretação liberal, mecânica do Estado, com a interpretação universalista orgânica. Nesta última, o Estado é uma coisa – bem supra-individual, a que o indivíduo deve fazer toda a espécie de sacrifícios. Digo o mesmo da nossa interpretação alemã do Estado como herança dos antigos. Toda a interpretação ‘antiga’ do Estado foi eliminada de uma vez para sempre por Jesus” . Por sua vez, Moncada assevera: “A personalidade não é também fim de si mesma. Está, por sua vez, subordinada, nos seus valores, à vontade de Deus para glória do qual foi criada. Logo, trans-personalismo, não trans-personalismo político ao serviço dos valores da comunidade à moda do Estado pagão, que Cristo destruiu para sempre, ou do moderno Estado totalitário” .
Como se vê, há até emprego de expressões idênticas ou quase, prova de uma influência vincada e indiscutível.
E agora uma observação indispensável. Se recorremos, até aqui, unicamente a passagens de “Do Valor e Sentido da Democracia”, isso não permite concluir que o contacto com a fenomenologia foi apenas um entusiasmo passageiro de Cabral de Moncada. Com efeito, ele, daí por diante, continuou a seguir as orientações fenomenológicas, como o demonstram v.g. os notabilíssimos trabalhos “Sobre Epistemologia Jurídica” (1943) “Do conceito e essência do político” (1961).
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Em 1939, foi defendida, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pelo assistente Garcia Domingues, uma tese de doutoramento (de cujo infeliz destino não falaremos) que se apresentava nestes termos: “este trabalho… insere-se, no entanto, de certo modo, na produção da fenomenologia que, de origem ciência alemã, começou a encontrar em Portugal, como em todo o mundo, cultivadores entusiastas” . E cita, entre nós, e muito bem, Cabral de Moncada.
A tese em causa mostra um forte esforço reflexivo e uma ampla cultura. É pena que esteja maculada por extravagâncias que a desvalorizam. Assim, à pergunta o que é a filosofia, responde que está reduzida “a um conjunto de disciplinas mais ou menos experimentais” que são “a psicologia, a lógica, a teoria do conhecimento, a ética, a teoria da concepção da vida e do mundo, a estética, a filosofia da religião, a filosofia da sociedade, a filosofia da economia, a filosofia da história, a metafísica” .
Ora, por um lado , distingue e separa ciência e filosofia e, por outro lado, na caracterização da filosofia, inclui espécies de filosofia, o que é um círculo vicioso manifesto. Mas deixemos esta índole de considerações, e procuremos antes ver o que há realmente de fenomenológico na obra de Garcia Domingues.
As páginas 52 e 53 são consagradas ao método fenomenológico, apontado-se a “necessidade da descrição pura”, que se baseia “numa exigência importantíssima: a redução de todos os pressupostos”.
Simplesmente, o aspecto fenomenológico aparece integrado numa analítica transcendental do pensamento com três partes: A) Fenomenologia da consciência; B) Analítica fenomenológica; C) Analítica fenoménica.
Ora, com uma estranha falta de rigor, a analítica fenomenológica passa a dividir-se em duas partes: a analítica fenoménica e a analítica transcendental.
Na analítica fenoménica, ocupa-se Garcia Domingues v.g de Taine, Binet, Paulhan, Janet, Rigano, Piéron, Dewey, Hoffding, a que associa, não se sabe porquê, Gentile. Também inclui nessa analítica a escola de Wurzburg, com os nomes eminentes de Ach, Marb, Messe e Bühler. Com excepção de Gentile, trata-se de vultos marcados pelo positivismo naturalista, contra o qual se ergueu a fenomenologia. Com tais autores gasta Garcia Domingues numerosas páginas. E quando se dedica à analítica transcendental e se julga que ia abordar algo, ao menos, próximo da fenomenologia, deparamos, além do estudo de pensadores do anterior estilo, uma longa e penosa análise das leis de Fechner e de Weber. O que tem tudo isto a ver com a descrição pura e a redução de pressupostos?
Debrucemo-nos em outros aspectos das considerações de Garcia Domingues. Assevera ele: “há pois, uma conexão essencial entre valor e ser. E é essa conexão que mantém o dinamismo da existência. Estas considerações parecem ir ao encontro do problema na fenomenologia de Scheler” .
A fenomenologia, para Scheler, é uma certa forma de filosofar, sem oferecer como tal uma solução para os problemas. Daí que Scheler, considerando-se sempre fenomenólogo, assumisse posições metafísicas diversas.
A relação entre valor e ser não é nada de específico da fenomenologia no entender de Scheler, ao contrário do que Garcia Domingues pretende. Adiante, porém.
Ocupemo-nos, agora, de dois autores que, sem serem adeptos da fenomenologia, lhe deram um relevo destacado na sua reflexão. Referimo-nos a Delfim Santos e, de modo mais relevante, a Miranda Barbosa.
Delfim Santos foi um realista deliberado e franco, tendo escrito, de modo decisivo numa das suas obras fundamentais – “Conhecimento e Realidade”, de 1940 –, sem hesitação: “A existência dum mundo fora do sujeito, independente na sua existência do sujeito que o conhece e mesmo radicalmente indiferente às possibilidades de descoberta que este possua, é condição mínima necessária de todo o conhecimento”
Como realista, procura Delfim patentear que “a redução fenomenológica” de um grande pensador como Husserl, embora não fosse um dos seus inspiradores , nas Ideen mereceu o nome de idealismo e pensou-se mesmo haver uma contradição íntima na fenomenologia que, como é sabido, tivera um ponto de partida realista” . Mas, contra tal ponto de partida, logo recorda que Husserl esclarecera que a exclusão (Einklammerung) do tal mundo independente era apenas uma atitude metodológica: excluindo o mundo exterior, “não praticava idealismo, como os críticos apressados concluíram” .
Julgamos que a posição husserliana não teve um sentido tão claro e que o filósofo jamais declarou inequivocamente que a epoche respeitasse a independência do mundo “exterior”.
Seja como for, o problema requer uma exegese mais rigorosa e exigente do que a interpretação algo dogmática de Delfim Santos, interpretação ainda mais estranha visto que, um anos antes de “Conhecimento e Realidade”, em 1039, o mesmo Delfim Santos aludia à “tendência final idealista de Husserl” . É claro que estava no seu pleno direito de mudar de opinião…
E passemos a Miranda Barbosa. Perante a fenomenologia, Miranda Barbosa tomava uma dupla posição. Por um lado, reconhecia “os pontos em que a minha linha (…) toca tangencialmente” na fenomenologia e acentuava que “muitas conclusões, métodos e processos são comuns” . Isto sem falar no apoio dado a assistentes no sentido de que estudassem a fenomenologia e a obtenção para o efeito de bolsas de estudo na Alemanha. Por outro lado, declarava inequivocamente: “se a análise seguinte é inspirada na atitude fenomenológica, de alguma forma se emancipa do método fenomenológico de Husserl, ou (…) ainda do método fenomenológico em geral, no que diz respeito às suas consequências, geradora duma nova sistemática filosófica” . E em várias ocasiões por escrito , ou oralmente, insistia que a fenomenologia era insuficiente. Insuficiente em quê? Na perspectiva de Miranda Barbosa, porque o “método fenomenológico não permitiu (…) chegar a uma solução para o problema essencial do conhecimento oposta ao idealismo solipsista” .
Com efeito, segundo Miranda Barbosa, no pensamento surge como fenómeno “uma relação entre sujeito o objecto, na qual o sujeito supõe intencionalmente apreender as notas características do objecto e julga saber o que o objecto é” , impondo-se, pois, em investigar “se o conhecimento é ou não aquilo que no fenómeno do conhecimento parece intencionalmente ser” .
Importa, assim, para Miranda Barbosa, averiguar se o objecto constitui ou não apenas uma representação, uma “criação” do sujeito ou algo em si, independente deste. Por outras palavras, impõe-se decidir entre o idealismo ou o realismo. Claro que então o realismo é uma solução possível, com o que é, desde logo, afastado o idealismo implicitamente, uma vez que entende que não pode haver nada para além do pensamento.
Deixada de lado semelhante objecção, e seguindo os pontos de vista de Miranda Barbosa, a tese idealista acerca da natureza do objecto traz consigo uma série de aporias que apenas o realismo transforma em euporias, ou seja, em soluções sustentáveis. Não vou aqui decidir se Miranda Barbosa tem ou não tem razão, uma vez que já o fiz noutro lugar e não desejo repetir-me. Limito-me a acrescentar que, uma vez estabelecida a realidade incontestável – para Miranda Barbosa, não para mim – do objecto em si, torna-se válida uma ontologia, da qual, por seu turno, deriva uma antropologia que dá fundamento a uma ética.
Temos, assim, concluída a estruturação da filosofia como sistema, sistema que se inicia com a lógica e termina na ética, passando, como vimos, pela gnoseologia, ontologia e antropologia.
Tratemos, por último, de Joaquim de Carvalho. A tradução portuguesa, da responsabilidade de Albin Beau, do célebre estudo de Husserl “Philosophie als strenge Wissenshaft” foi, por assim dizer, o sinal precursor da aparição de bom número de obras de vulto acerca da fenomenologia. A tradução referida era precedida dum largo prefácio de Joaquim de Carvalho, professor catedrático da Faculdade de Letras de Coimbra e vulto de forte prestígio no âmbito do pensamento português.
Tal prefácio data de 1962. E logo em 1965 o Professor Júlio Fragata, da Faculdade de Filosofia de Braga, lançou à estampa “A fenomenologia de Husserl como fundamento da filosofia”, seguido, pouco tempo depois, pelas teses de licenciatura e de doutoramento do Professor Alexandre Fradique Morujão e de Gustavo de Fraga como o que se podia asseverar que as concepções fenomenológicas tinham lançado definitivamente raízes entre nós.
Voltemos, porém, ao ensaio com que Joaquim de Carvalho antecedeu a pequena obra de Husserl já mencionada: “A filosofia como ciência de rigor”. Este é dividido “em quatro secções, destinadas, respectivamente, ao ideal da filosofia se constituir como ciência de rigor, à crítica da pretensão da filosofia natural a ser a filosofia fundamental, à crítica da concepção da filosofia como mundividência e ideologia e à indicação da Fenomenologia como ciência filosófica fundamental e rigorosa” .
Pondo de lado aspectos ligeiramente tautológicos de semelhante divisão, sublinhemos que, para Joaquim de Carvalho, seguindo Husserl: “As ciências matemáticas e naturais são, como todas as ciências, imperfeitas (…). Apresentam não obstante um conjunto de conhecimentos certos que não só aumenta como se ramifica de tal sorte que ninguém duvida da ‘verdade objectiva’ de tais conhecimentos” ; “Ao contrário destes conhecimentos, os conhecimentos filosóficos oferecem o espectáculo de tudo neles ser discutível e dos juízos que exprimem dependerem da ‘convicção individual, da escola, de posição’ (…), o contraste só poderá superar-se mediante a orientação que coloque a Filosofia e a Ciência sob o mesmo ideal de rigor” .
Escreveu Joaquim de Carvalho que “ao invés das Ciências, a Filosofia não se constitui de maneira ‘ingénua’” . Não nos parece que ingenuidade seja compatível com a verdade objectiva e o rigor que são atribuídos à ciência, mas deixemos de lado este ponto.
Também diz Joaquim de Carvalho que Husserl abandona “a concepção da filosofia como sistema” . Agora é que nos parece que estamos perante algo que é destruído pela seguinte frase da obra que prefacia: “É claro ainda que a crítica, desde que realmente pretenda ser de valor, é filosófica, implicando no seu sentido a possibilidade ideal de uma filosofia sistemática, qual ciência de rigor”
O ilustre professor coimbrão assevera ainda que “Hegel enfraqueceu a condição do impulso filosófico científico com a sua doutrina da legitimidade relativa de toda e qualquer filosofia para a respectiva época” . Não será mau recordar, em contrário, que nos textos hegelianos publicados por Hoffmeister sobre história da filosofia e inseridos, também, na conhecida edição em vinte volumes da Suhrkamp, se encontra dito: “eu observo apenas que está esclarecido pelo que já foi exposto que o estudo da história da filosofia é o próprio estudo da filosofia, como não pode ser outra coisa. Quem estuda a história da física, da matemática, já conhece a física e a matemática mesmas. Para conhecer a filosofia historicamente surgida na sua forma fenoménica, o seu progresso como desenvolvimento da ideia, deve-se já conhecer a ideia, tal como para julgar as acções humanas tem de se possuir com certeza já a noção do que é justo e conveniente”
Claro que se poderia entrar aqui numa esgrima de passagens do filósofo, mas, pelo menos agora, não é esse o nosso intento. Queremos, apenas, salientar, com todo o respeito por Joaquim de Carvalho, que a relatividade histórica das filosofias em Hegel não pode ser tão dogmaticamente asseverada.
E posto isto, termino por aqui. Unicamente procurei apresentar uma nota introdutória.