De vez em quando sucedem milagres, se Deus os consente e neles se empenham os homens. Num país de ensino rotineiro, com mais interesse pela nota e pela autoridade do catedrático do que respeito pela ciência e liberdade de discernimento pessoal, surgiu a Faculdade de Letras do Porto, que era toda ao contrário, inimiga da burocracia e fosse do que fosse que pudesse lembrar Coimbra e seus malefícios de séculos e incitadora de descoberta própria mais do que de aprendizagem servil, bem longe de ser a escola técnica de profissionais de ensino em que se transformaram as outras.Em dois grandes grupos se dividia, liderado um por Teixeira Rego, que poderia ter sido bom matemático e físico – ouvi-o propor a teoria da luz de Broglie antes de Broglie – e ensinava filologia, pois ainda se não tornara ciência ou moda ser pedante em linguística, e o fazia com mais gosto para quem o acompanhava na velha livraria Lelo do que para quem, em obediência ao currículo, se matriculara na cadeira; o outro por Leonardo Coimbra, que podia também ter sido matemático e campeão remador, como Rego de ténis, e ensinava filosofia, ou antes, que isso era o certo, vivia filosofia, com muita agudeza e saber, como mestre, e muita angústia e caminhos torcidos, como homem, dando nota boa a quem se interessava e a quem se não interessava pela matéria – tive distinção na turma destes, pois que era o indo-europeu de Teixeira Rego meu pasto favorito –; tudo no Café Majestic, como o filólogo na Lelo.
Agostinho da Silva
excerto retirado de Cadernos de Teoria e Crítica Literária, Faculdade de Filosofia, Araraquara, São Paulo, 4, 1974 – Impresso à parte para cem Amigos
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