A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

Albufeira, Alcáçovas, Alcochete, Alcoutim, Alhos Vedros, Aljezur, Aljustrel, Allariz (Galiza), Almada, Almodôvar, Alverca, Amadora, Amarante, Angra do Heroísmo, Arraiolos, Assomada (Cabo Verde), Aveiro, Azeitão, Baía (Brasil), Bairro Português de Malaca (Malásia), Barcelos, Batalha, Beja, Belmonte, Belo Horizonte (Brasil), Bissau (Guiné), Bombarral, Braga, Bragança, Brasília (Brasil), Cacém, Caldas da Rainha, Caneças, Campinas (Brasil), Carnide, Cascais, Castro Marim, Castro Verde, Chaves, Cidade Velha (Cabo Verde), Coimbra, Coruche, Díli (Timor), Elvas, Ericeira, Espinho, Estremoz, Évora, Faial, Famalicão, Faro, Felgueiras, Figueira da Foz, Freixo de Espada à Cinta, Fortaleza (Brasil), Guarda, Guimarães, Idanha-a-Nova, João Pessoa (Brasil), Juiz de Fora (Brasil), Lagoa, Lagos, Leiria, Lisboa, Loulé, Loures, Luanda (Angola), Mafra, Mangualde, Marco de Canavezes, Mem Martins, Messines, Mindelo (Cabo Verde), Mira, Mirandela, Montargil, Montijo, Murtosa, Nazaré, Nova Iorque (EUA), Odivelas, Oeiras, Olhão, Ourense (Galiza), Ovar, Pangim (Goa), Pinhel, Pisa (Itália), Ponte de Sor, Pontevedra (Galiza), Portalegre, Portimão, Porto, Praia (Cabo Verde), Queluz, Recife (Brasil), Redondo, Régua, Rio de Janeiro (Brasil), Rio Maior, Sabugal, Sacavém, Sagres, Santarém, Santiago de Compostela (Galiza), São Brás de Alportel, São João da Madeira, São João d’El Rei (Brasil), São Paulo (Brasil), Seixal, Sesimbra, Setúbal, Silves, Sintra, Tavira, Teresina (Brasil), Tomar, Torres Novas, Torres Vedras, Trofa, Turim (Itália), Viana do Castelo, Vigo (Galiza), Vila do Bispo, Vila Meã, Vila Nova de Cerveira, Vila Nova de Foz Côa, Vila Nova de São Bento, Vila Real, Vila Real de Santo António e Vila Viçosa.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Da cultura como ilusão à cultura do Despertar de todas as ilusões

Publico o início do texto para o próximo número da "Nova Águia", numa versão ainda provisória:

Da cultura como ilusão à cultura do despertar de todas as ilusões

Procurando pensar a natureza da cultura, iniciamos a reflexão com um notável parágrafo d’A Origem da Tragédia, transcrito para comodidade do leitor:

“É um fenómeno eterno: sempre a Vontade insaciável, pela ilusão que derrama sobre as coisas, encontra um meio de ligar as suas criaturas à existência e de as forçar a continuar a viver. Este deixa-se fascinar pelo prazer socrático do conhecimento e pela ilusão de poder sanar com ele a eterna chaga da existência; aquele sente-se fascinado pelo véu sedutor da beleza que a arte deixa flutuar diante dos seus olhos; outro deixa-se, por sua vez, seduzir pela consolação metafísica de que, sob o turbilhão das aparências, a vida eterna prossegue o seu curso indestrutível: para não falar das ilusões mais comuns e mais fortes ainda que a vontade é capaz de suscitar a todo o instante. Estes três graus de ilusão são, de resto, reservados às naturezas mais nobres, nas quais o peso e a miséria da existência suscitam um desgosto mais profundo, mas que podem fugir a tal desgosto escolhendo estimulantes adequados. Com tais estimulantes se constituiu tudo o que designamos por civilização: de acordo com o seu doseamento obteremos, preferencialmente, ou uma cultura socrática, ou artística ou trágica, ou melhor, se formos buscar exemplos à história, teremos então ou uma cultura alexandrina, ou helénica ou budista” [1].

Sem avaliar o rigor e justeza desta identificação histórica das formas de cultura, que nos parece problemática, em particular no que concerne a “budista”, interessa-nos fundamentalmente a ideia de que a morfogénese de todos os tipos de cultura (Kultur) obedece a “estimulantes” (Reizmitteln) que permitem iludir o desgosto (Unlust) perante “o peso e a miséria” da “eterna chaga” (ewige Wunde) de uma “existência” (Daseins) à qual os sujeitos são eterna e renovadamente ligados pela “ilusão” (Illusion) que a “Vontade insaciável” (gierige Wille) “derrama sobre as coisas” (Dinge) [2]. Os vários aspectos da cultura, dos mais elaborados e eruditos – filosofia, ciência, arte e religião – aos mais comuns que constituem toda a civilização humana, correspondem assim a vários “graus de ilusão” (Illusionsstufen) onde os homens procuram enganar-se a respeito da sua condição ou ocultá-la a si mesmos, camuflar e esquecer a ferida trágica que os constitui na cisão, na dor e na mortalidade (o verbo hinwegzutäuschen, traduzido aqui como “fugir a”, tem o sentido de enganar alguém a respeito de alguma coisa ou de ocultar alguma coisa a alguém). A cultura e a civilização surgem assim como produtos dessa “ilusão” que a insaciável vontade de viver lança continuamente sobre “as coisas” e como anestésicos desse “desgosto”, ausência de gozo ou desejo (Un-lust) que constitui a natureza paradoxal e autocontraditória da própria vontade de viver. A cultura e a civilização, em todas as suas manifestações, revelam-se assim como um sistema de estímulos, a bem dizer estupefacientes, de cuja ilusão ficam dependentes os sujeitos que neles buscam evadir-se da dor inerente a essa inconsciente e ávida vontade de viver que continuamente os propulsa na ex-istência. Uma embrionária toxicodependência mental/emocional desvela-se assim a natureza íntima da cultura e da civilização que, em busca de se evadir do “mal-estar” que a habita, pois inerente à “vida”, naturalmente segrega múltiplos paliativos, dos mais subtis e internos aos mais grosseiros e externos, socialmente aceites ou não. A droga e a embriaguez seriam inerentes ao processo cultural e civilizacional [3]. Como escreveu Freud: “A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. […] Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável” [4].
Se a influência de Schopenhauer é evidente na Origem da Tragédia, a maturação em Nietzsche de um pensamento próprio mantém-no fiel à ideia de que “vivemos num mundo de ilusão”, inerente às meras “perspectivas” interdependentes a que se reduz toda a suposta objectividade das categorias conceptuais que fizeram fortuna na tradição filosófica ocidental: número, tempo, espaço, alma, substância, indivíduos, morte, vida, sujeito, objecto, activo, passivo, causa, efeito, meio, fim. Vivemos assim “graças ao erro” [5], mas “naufragar-se-ia se se quisesse sair do mundo das perspectivas”: “abolir as grandes ilusões já completamente assimiladas destruiria a humanidade” [6]. Segundo o pensador, a “vontade de saber” filosófica e científica volta-se contra essa mesma ilusão vital que é a condição de possibilidade de todo o conhecimento, cujo “grau ínfimo” exigiu o nascimento de “um mundo irreal e erróneo: seres que acreditassem no durável, em indivíduos, etc.”. É apenas sobre o ilusório “fundamento” de um “mundo imaginário”, contrário ao “eterno escoamento”, que se pode construir qualquer “conhecimento” que seja, o qual pode discernir “o erro fundamental sobre o qual tudo repousa”, mas não o pode dissipar senão arrastando nisso a “vida”, pois “a verdade última que é a do fluxo eterno de todas as coisas não suporta ser-nos incorporada; os nossos órgãos (que servem a vida) está feitos com vista ao erro”. “Querer conhecer e querer errar são o fluxo e o refluxo” e “o homem perece” se um deles domina absolutamente. Daí o programa de “amar e favorecer a vida, por amor do conhecimento, amar e favorecer o erro e a ilusão, por amor da vida”. A “arte” deve ser posta “ao serviço da ilusão” [7] vital. Pese a reinterpretação da vontade de viver como vontade de potência, a afirmar e não negar, permanece a recriação schopenhauriana do indiano “véu de Maya” como esse engano originário inerente à vontade e a todas as suas criações [8].
A cultura nasce assim sob o signo da melancolia, como notou Aristóteles a respeito dos “homens de excepção” na filosofia, política, poesia e artes [9], o que nos reenvia ainda para Nietzsche que, como vimos, considera estarem os “graus de ilusão” mais elevados – filosofia, ciência, arte e religião – “reservados às naturezas mais nobres”, mais profundamente desgostosas com “o peso e a miséria da existência”, dos quais se buscam evadir mediante os “estimulantes” mais sofisticados [10]. Como diz Walter Benjamin, “a meditação profunda (Tiefsinn) é sobretudo própria de quem é triste” [11] e a Melancolia apresenta-se, num poema por si citado, como “mãe de sangue denso (schweren Bluts), fardo podre (faule Last) da Terra” [12], cujos termos são muito próximos da descrição nietzschiana do “peso e miséria da existência (Last und Schwere des Daseins)” [13]. O ser-aí, o ex-istir, o ser algo ou alguém numa dada situação no mundo, é melancólico – quer na exaltação, quer na depressão - e a melancólica condição de toda a cultura, que diríamos oscilar na dialéctica maníaco-depressiva entre a ânsia de levitar de todas as condições e o afundamento nessa gravidade íntima ao ex-ist-ente.
(texto em elaboração)

[1] Friedrich Nietzsche, A Origem da Tragédia, 18, tradução, apresentação e comentário de Luís Lourenço, Lisboa, Lisboa Editora, 2004, p.152.
[2] Friedrich Nietzsche, Die Gebürt der Tragödie, 18, Werke, I, edição de Karl Schlechta, München, Carl Hanser Verlag, 1966, p.99.
[3] Cf. Ernst Jünger, Drogas, Embriaguez e Outros Temas, tradução de Margarida Homem de Sousa, revisão de Rafael Gomes Filipe e Roberto de Moraes, Lisboa, Relógio d’Água, 2001.
[4] Sigmund Freud, Das Unbehagen in der Kultur, 1930; O mal-estar na civilização, tradução de José Octávio de Aguiar Abreu, Rio de Janeiro, Imago, 2002, p.22.
[5] Cf. Friedrich Nietzsche, La volonté de puissance, texto estabelecido por Friedrich Würzbach e traduzido do alemão por Geneviève Bianquis, tomo II, Livro III, 584, pp.216-217.
[6] Cf. Ibid., 594, p.220.
[7] Cf. Ibid., III, 582, p.216.
[8] Cf. Id., A Origem da Tragédia, 1, pp.66-67.
[9] Cf. Aristóteles, L’Homme de génie et la Mélancolie. Problème XXX, 1, edição bilingue, tradução, apresentação e notas de J. Pigeaud, Paris, Éditions Rivages, 1988, p.83.
[10] Cf. Friedrich Nietzsche, A Origem da Tragédia, 18, p.152.
[11] Cf. Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão, edição, apresentação e tradução de João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p.147.
[12] Tscherning, “Melancholey Redet selber”, in Ibid., pp.155-156.
[13] Cf. Friedrich Nietzsche, Die Gebürt der Tragödie, 18, Werke, I, p.99.

Sem comentários: