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Donde vimos, para onde vamos...

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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Heidegger: Arte, Obra, Origem, Mistério e Enigma

I.

Partimos do texto Der Ursprung des Kunstwerkes, escrito por Heidegger em 1935/1936 no intuito de pensar, com o autor, a complexa problemática que gira em derredor da Arte, da obra, da origem e do enigma, ou por outras palavras, quisemos reflectir sobre a origem da obra de arte e o enigma que a arte é em si mesma.
Se Heidegger é o filósofo por nós eleito para apresentar e quiçá ilustrar estes pontos fundamentais de toda a compreensão onto-artística contemporânea, Van Gogh e as suas múltiplas versões do tema «Um Pares de Sapatos», a que Heidegger indiscriminadamente se refere sem a precisão adequada – o comentário do filósofo dos caminhos que enigmaticamente não conduzem a parte alguma, é tão generalista que se pode aplicar a qualquer uma das obras realizadas pelo artista, sobre este tema, em períodos diferentes – é o pintor escolhido, esse autor consagrado da “Grande Arte”, como meio de mostração do “pôr-em-obra da verdade”.
É esta a tese central do pensamento heideggeriano que coloca a verdade como categoria estética fundamental, ao destruir, por um lado, o império fugaz do Belo inteligível, universal, pelo qual se todas as coisas são belas são-no apenas porque nele participam, ou então, porque este é uma propriedade do objecto, ou porque reside no sujeito que põe por si mesmo a beleza na coisa contemplada; e, por outro, ao destronar o reinado da emoção, da experiência-vivida (Erlebnis) como características fundamentais da criação e da contemplação estética.
A Arte e a obra no seu dar-se primordial mantém-se sempre envolvida no enigmático mistério que é próprio do dar-se do Ser no espaço vazio da tela na partitura sem notas do compositor musical, na pedra informe do escultor ou no papel em branco do poeta.
Movendo interiormente o texto em estudo e a reflexão heideggeriana sobre a arte, está a convicção de que uma interpretação metafísica da obra de arte, longe de a esclarecer na sua essência e origem, antes a perverte na sua constitutiva realidade. Correlato da nossa postura filosófica ocidental, este tipo de perspectivação metafísica da arte, que o autor, aliás, sem suficiente problematização, identifica com Estética, procuraria fazer da arte uma manifestação cultural sem mais, sempre reconduzível ao homem, procurando dilucidar-lhe uma criteriologia que afinal mais não é, para Heidegger, do que a aplicação de valores de civilização, de padrões de auto-avaliação importados do saber teórico, que em nada esclarecem a essencial radicação da obra de arte, de todo descurando a sua fundamentação na problemática ontológica, verdadeiro nexo dinâmico da reflexão heideggeriana.
A Estética procura esclarecer as modalidades de patenteação e juízo do Belo, bem como a relação intrínseca e insuperável entre os termos autor – obra de arte – espectador, descentrando, deste modo, a reflexão da própria realidade da obra, e esquecendo a sua ancoração fundamental ao plano de fundo despoletador da existência da mesma. É assim que Heidegger afirma em Einführung in die Metaphysique: «Devemos dar ao termo ‘arte’ e àquilo que ela quer designar um novo conteúdo, em encontrando primeiro uma posição fundamental originária quanto ao Ser» .
O modo de apresentação da nossa investigação poderá sugerir que a tematização heideggeriana, enquanto procura relevar a temática ontológica necessariamente subjacente à questão da obra de arte, é, neste intuito mesmo, uma reflexão sem falhas.
Porém, adiante o veremos, a reflexão do filósofo sobre a essência da arte antes desemboca na impossibilidade de superar a mútua implicação metafísica. Permanecemos com o primado da questão ontológica, enquanto postura interpretativa, sendo a arte um dos horizontes de reflexão em que se repõe inevitavelmente a questão do homem e da sua proventualidade historial, esses dois termos que mais unidamente se imbricam.
Se Heidegger utiliza a sua própria reflexão sobre a arte como momento privilegiado da própria des-construção dos pontos nodais do seu pensar – questão do Ser e da diferença ontológica – parece-nos que tal abordagem não perde por isso a sua pertinência.
Se a questão da arte, e a da obra de arte, ela própria, perdem algo da sua autonomia e não são perspectivadas como absolutos, na sua postura pura e simples, é, por outro lado, patente, a relevância que o filósofo assigna à arte como momento instaurador, e à obra de arte como lugar de presentação dos dilemas insuperáveis da dinâmica do Ser, e como in-stância mostrante, quiçá mais do que qualquer outra, do referente enigmático da questão ontológica.
Mesmo enquanto momento lateral da reflexão de Heidegger sobre o Ser, e apontando justamente para ela, o texto que aqui comentamos não deixa, por isso, de ser extraordinariamente significativo. Se a arte perde, inevitavelmente, horizonte hermenêutico próprio, a sua relevância no pensar heideggeriano não é por isso menor.
Antes relevando a proximidade da questão da origem da arte e do seu carácter enigmático com a fonte originária e indizível do brotar do ser para a patenteação que se dá como a própria obra de arte, ao  do homem, na sua postura a um tempo historial e de Dasein. Trata-se, pois, de relevar que enigma é esse que a arte acolhe.

II.

Se se procura descortinar a origem da obra de arte, a sua proveniência essencial, então o que indubitavelmente se persegue é o modo próprio de desdobramento do ser da obra enquanto ente (Seiend) que é.
Por sua vez, se a tríade obra de arte – artista – arte não torna a inquirição futurível, pois que inevitavelmente se recai em círculo vicioso, e nem a determinação da essência da arte é possível através da contemplação comparativa de distintas obras ou da dedução do que a arte seja a partir de conceitos superiores, inevitável é o procurar deslindar o que a obra de arte é na sua pura realidade.
Trata-se de procurar destilar as propriedades da obra de arte em relação aos outros entes, pois o horizonte em que primariamente a obra nos surge é o das coisas que são, havendo que relevar se a obra é coisa (Ding), se diz outra coisa além da coisa que é ( ), e é então alegoria, ou se, sendo coisa, a ela está reunido, adstrito, algo de outro, caso em que a podemos caracterizar como símbolo.
Relevando agora a dimensão de tudo o que é de algum modo ‘aparente’, e fazendo-o procurando conectar os termos obra-coisa, num percurso que não vamos aqui pormenorizar, cedo a reflexão heideggeriana estabelece que o que na obra de arte se joga não cabe na caracterização tradicional do conceito de coisa em sua tríplice dimensão: enquanto suporte de qualidades marcantes, como unidade de uma multiplicidade sensível, ou, ainda, nessa concepção mais usual de coisa como matéria informada.
Se estas três determinações insultam a coisa mais do que a captam na sua ‘coisidade’, pois que não a apreendem na sua própria incontornabilidade, isto é, no facto de brotar originariamente para a patência a partir do ser, trata-se agora de enveredar por outro caminho e descortinar se o ser-coisa da obra pode apreender-se no ser do utensílio (Zeug), esse ente particularmente mais próximo do homem porquanto advém à patenteação por nossa própria produção.
Porém, a essência do produto, não reside na sua produção, aspecto pelo qual se assemelharia inevitavelmente à obra de arte, mas na sua utilidade, conferida pela sua solidez intrínseca, a sua ‘fiabilidade’ (Verlässlichkeit). O próprio do utensílio é ser fiável, poder contar-se com ele, assumi-lo como o ente à mão que é, disponível para o uso do homem. Transparece, pois, que a essência do utensílio não repousa no ser do mesmo mas na sua reportação à postura existencial do Dasein, enquanto ser-no-mundo.
Se a obra de arte por si própria tem suficiência, segue-se que a sua essência não é determinável a partir do ser do produto, sujeito à usura que lhe confere a submissão da sua essência às finalidades do homem. De facto: «A obra de arte, por esta presença bastando-se a ela-mesma que é o próprio da arte, assemelha-se mais à simples coisa repousando plenamente nesta espécie de gratuitidade que o seu brotar natural lhe confere. Todavia não classificamos as obras entre as simples coisas» .
Para evitar que a perspectivação do que seja a obra de arte, a partir da des-construção do conceito de coisa, constitua um insulto (Ueberfall) à obra, trata se de eliminar tudo o que susceptível de obstar a nossa acessibilidade à própria obra – incluídos os nossos enunciados sobre ela, e, primacialmente, fazer relevar a constitutiva in-stância da obra, abandonando-se à sua presença imediata (unverstelltes Anwesen).
Trata-se de silenciar o homem para deixar falar a obra: «Nada mais fizemos do que colocarmo-nos em presença do quadro de Van Gogh. Foi ele que falou. A proximidade da obra transportou-nos repentinamente para um outro lugar que o aí onde tínhamos o costume de estar» .
Vemos assim que o que pareceria constituir o nexo interpretativo conducente à determinação da origem da obra de arte – a abordagem da realidade ‘coisal’ da obra (das Dinghafte) – é substituído por outra perspectivação tendente a relevar o que está em obra na obra, ou seja, esta deixa de ser questionada na sua espessura ôntica para ser apresentada como  indiciador de outra presença, como in-stância mostrante.
Este salto, significará a eleição de um novo nó problemático que colocará a obra de arte em directa confrontação, não já com o seu estatuto de coisa, mas com a dimensão fundamental da verdade.
Se já aqui se adivinha o abandono de uma “hermenêutica metafísica” e a abertura de outros espaços de perspectivação, conexos com a noção de verdade, mais tarde veremos como o abandono da inquirição pela onticidade da obra e, por consequência, da sua propriedade e id-entidade, levantará, no seio da perspectivação heideggeriana a algumas dificuldades.
A resolução destas implicará, entre outros aspectos, a cessação da autonomia do sujeito e do processo de criação artísticos enquanto objectos de investigação, com o intento de pensar um novo conceito de arte que, livre de funções miméticas como expressivistas, e, por conseguinte, não mais adstrita ao real já dado como à “experiência-vivida” do sujeito (Erlebnis), se afirme antes como momento verdadeiramente instaurador e poético.
Mas o que é que se faz obra na obra? A verdade de todo o ente que é, coisa ou produto. O ser do que é chega pela obra e sobretudo por ela ao seu parecer: «A essência da arte seria pois: o pôr-se em obra da verdade do ente (Sich-ins-Werk-setzen des Wahreit des Seienden)» .
Esta assumpção da mostração da verdade pela obra de arte, surge na tematização heideggeriana segundo dois modelos interpretativos que podemos consignar nas duas díades: Mundo/Terra, clareira/retraimento. É, a um tempo, no enlaço e no hiato destes dois modelos que a concepção heideggeriana da arte ganha, na nossa perspectiva, a sua mais fecunda peculiaridade.
O que na obra se consigna e apresenta segundo a dicotomia Mundo/Terra está ainda na dimensão não-veladora da verdade heideggeriana. Em rigor, trata-se de perspectivar o que, estando em obra na obra tem relação ao humano, à sua estada na Terra e ao seu desbravar de um mundo, prerrogativa exclusiva do modo de ek-sistência do Dasein: «A Terra é o afluxo infatigável e incansável daquilo que está aí para nada. Sobre a Terra e nela, o homem historial funda a sua estada no mundo. Instalando um mundo a obra faz vir a Terra (Indem das Werk eine welt aufstellt, stellt es die Erde her)» .
Mas, o que é a Terra? Heidegger naturalmente a reporta ao termo grego , essa força que eclode e brota, qual seio de que a um tempo tudo se abre à presença.  é a Terra protectora, o solo natal (Grund) que tudo mantém e alberga em si. E o Mundo? «Um mundo ordena-se em Mundo (Welt weltet)» .
O Mundo é o que na Terra o homem instala e propria, privilégio da estada humana no aberto do ente. São estas duas modalidades de tudo o que é que a obra acolhe em si na sua in-stância (Dastehen), no seu stare, no seu ter-se aí, instalada. Instalar uma obra significa depô-la, erigi-la, oferecê-la ao espaço já constituído, enquanto instância que ordena a amplitude da estada do homem no seio da Terra. A obra é in-stância irradiante e provoca o abrir-se à luz (lichtet sich) de tudo o que em si consigna: ela erige um Mundo (Aufstellen einer Welt) e revela a Terra (Herstellen das Erde).
Poderíamos inquirir-nos, agora, pelo responsável de tal instalação da obra. Porém, o ‘sujeito’ instalador cedo se esvanece na tematização heideggeriana. A obra é sempre reportada à dimensão da mais pura impessoalidade, primando iniludivelmente o seu ser-obra e o que nela se patenteia enquanto presença mostrante: «Como pode a obra requerer uma tal instalação? Porque é ela mesma instalante no seu ser-obra. Que instala a obra enquanto obra? Quando a obra de arte em si mesma se põe, então abre-se um mundo, de que ela mantém para sempre o reino» .
Esse repouso que é a deposição, a oferenda da obra ao espaço já aberto da , não é um repouso sem máculas: no interior da obra, na medida em que erige um Mundo e faz vir a Terra, suscita-se um combate (Streit) entre estas duas instâncias: é na efectividade deste conflito que reside o ser-obra da obra.
É que, se o Mundo aspira à dominação, ele não pode contudo afastar-se da Terra, tal como o apolíneo não pode afastar-se do dionisíaco, pois que se funda sobre ela, qual templo deposto sobre a solidez do rochedo. E nem lhe é possível resvalar para esse fundo etónico que é a própria Terra, impenetrabilidade que o não acolhe. Por sua vez, esta, enquanto pujança e força sempre doadora, para brotar e ser autenticamente si-mesma não pode renunciar ao aberto do mundo e sempre colide com este espaço téctico – expressão a um tempo da expansão e fechamento sobre si. Mas: «Como se produz no ser-obra, isto é, agora, na efectividade do combate, o advento da verdade? O que é a verdade» .
É, de facto, nesta interrogação que ganhamos consciência que a tematização heideggeriana não atinge ainda aqui o seu intento fundamental, antes requerendo uma perspectivação que adiante à dicotomia Mundo/Terra outra mais radical, a saber, a que atine à essência da própria verdade como des-velamento (Unverborgenheit).
O combate Mundo/Terra é ainda metafísico, tem realidade no seio de tudo o que é, na abertura do ente, fazendo porém adivinhar um outro per-passante, mais originário e fundante. É certo que, sendo reserva no interior da clareira, a Terra é o que de mais ser há no ‘visível’ – porém, não é o autenticamente ser heideggeriano, antes remetendo para ele. Terra e Mundo são os dois ramos em que se bifurca a dimensão clareante da verdade, instância impessoal, que acolhe em si mesma um suspenso, sob o modo de uma dupla reserva: verdade é clareira e retraimento, luz e obnubilação.
Consignando em si o enlaço combativo destes dois termos, a obra faz advir em si a eclosão (Aufbruch) do ente no seu todo. «Mas como advém a verdade? Resposta: ela advém em alguns, raros, modos essenciais. Um dos modos nos quais a verdade se desdobra, é o ser-obra da obra» . Indicia-se, pois, aqui, uma oposição suscitadora de um conflito ainda mais original do que o que retratámos à pouco.
É numa aproximação à questão fundamental do Ser e da diferença ontológica que a tematização heideggeriana irá conceber a obra de arte como acontecimento originário e a instauração da verdade na obra como momento radicalmente inaugural.

......................(http://isabelrosetefilosofias.blogspot.com)

Publicado por Isabel Rosete em:
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