Portugal projecta-se como um espaço de convivialidade cultural (inter-entre-pan/cultural) a partir do qual a experiência da identidade pode assumir-se como uma via de consumação do Universal na individuação espiritual, ou seja, na abertura ao abissal da com-vivência, no qual o que se descobre limitado procura a completude e a superação da cisão, existencial, territorial, grupal, etc.
A individuação espiritual, apesar de paralela ao egotismo, ao nacionalismo, ao internacionalismo totalitário, não se confunde com estas formas de deturpação do sentido e da finalidade da vida espiritual. Seria sempre terrível vivermos a limitação como o próprio do Espírito, quando Este se oferece na liberdade irrestrita, sempre como absolução do relativo, como sublimação da concretude solidamente fechada em si, como, enfim, emancipação através da qual os simples gestos da existência assumem um significado plenificante.
Se nos descobrimos como seres com múltiplas limitações físicas, psíquicas, noéticas, práxicas… é porque estamos a tomar consciência das nossas ferramentas agápicas (e eróticas, Eros absolutiza-se em Agapê), do nosso manancial de recursos inerente à nossa condição de seres capazes de amar, de seres que no Amor encontram a sua mais viável e sólida capacitação.
Assim, tanto os dons como os bens que possuímos ao nível da existência material, são inerentes à nossa condição de conviventes, de seres de expressão e conversão, de conversação. Há uma filologia vital que nasce da descoberta do Espírito como o que rasga o hábito (a rotina) e a descrença na vida sem limitações extrínsecas. Isto é válido também para os povos: as fronteiras são pontes, são instâncias de abertura.
O Outro só existe como o que se opõe ao Mesmo se não acedermos ao que é próprio: o que é próprio é que cada ser é único e na sua irrecusável liberdade não tem que ser conforme a nada de exterior ao seu fluxo vital, ao seu sopro insubstante, à sua realeza sobre este mundo.
Não há estrangeiro, nem nacional. No mundo do Espírito não há máquinas totalitárias de criação de espaços de contenção da convivialidade fraterna. Por isso as Línguas são a manifestação mais pura do fogo do Espírito. Uma Língua não é uma entidade fechada, não é um dispositivo de sujeição espiritual, antes um território utópico que está continuamente, enquanto for viva, animada por um influxo de transubstanciação, de transmutação, de abdicação de si numa projecção para a universal entre-expressão que, se alguma vez atingida, tornará as Línguas e os seus falantes capazes de tudo dizer e de tudo entender, com ou sem palavras, pelo Amor.
Uma Língua não é uma mercadoria, nem deve servir para criar ‘mercados’ de desumanidade. Porque aos não falantes duma Língua não lhes falta nada, em nada são menos ou mais que os outros. E só haverá Paz no mundo através da vida do Espírito. Isto quer dizer que tudo o que servir para discriminar os seres uns em relação aos outros, enquanto existir, será um obstáculo à Paz.
Nada existe que não seja resultante da co-presença de tudo em tudo.
Daqui resulta que a nossa apropriação do mundo deve ser ética. Antes de tudo o mais o que importa é a nossa abertura compassiva em relação ao que de nós poderá ser requisitado pela patência do Amor. É no ser-com que o nosso ser assume a sua verdade existencial.
A Cultura irrompe deste espaço de disponibilidade grácil, desta exuberância radical de que tudo nasce e que permite a criatividade como o que brota da mente, vindo de além e indo para além dela. Aquilo a que comummente se chama “cultura” surge quase sempre sem nascer, não ‘brota’ do sem fundo, é produzido, surge no mundo investido daquela dispersividade egolátrica que gera a inveja, a arrogância, a consciência alienada para a qual o mundo só pode ser um concurso de aves canoras sem a possibilidade de consonância. É a concorrência das máquinas cadavéricas que adiaram sine die o seu Encontro com a vida para, na certeza da morte, erigirem o seu mausoléu, recheado com tudo o que em si mataram de belo e de bom, em nome da ‘fama’, da ‘posteridade’, da ‘notoriedade’.
A Cultura, no seu sentido autêntico, é a convivência dos criadores na liberdade sem limites do Espírito. Criadores são todos os que se descobrem em ruptura com o viver domesticado, tornado mercadoria, esventrado de todas as entranhas de onde a insubmissão pode ganhar forças e voz. Criadores são os que assumem a patência do Infinito no finito. Podem ser pintores, escritores, sem-abrigo, crianças a brincar na rua, idosos a jogar às cartas no jardim, mulheres, homens, pássaros, cães, cientistas, malabaristas, inventores… Entre uns e outros venha o diabo e escolha. A escolha diabólica nunca é criativa, a criatividade é simbólica, por isso os seus frutos (o termo ‘obra’ está demasiado contaminado pela sujidade da Razão Pura) são sempre maduros, ou seja, nunca estão acabados porque abrem sempre para o que deles poderá nascer, resultado de germinação ou contaminação.
Não faz sentido preterirmos este ou aquele indivíduo em nome do que quer que seja que nos permita compreender o incompreensível. Embora tenhamos que nos manter inamovíveis na imensidade. Não significa isto, portanto, que tudo é aceitável. Há um combate radical a empreender em qualquer via espiritual, um combate afirmativo, de fidelidade à verdade da vida uni-multímoda. Cada acto de criação instaura uma fonte de sentido que pode elevar quem dela beba ao estatuto de criador. Criar nunca é um acto isolado, é uma ferida na pele coriácea do mundo da oferta e da procura. A doação e a aceitação em (com) reconhecimento, isso deveria ser a base da divina economia do mundo, da eudemonia política.
Possam os dons da Cultura ser gráceis. E que o sermos em sociedade possa expandir-se no Reconhecimento e na aspiração à disponibilidade para o Imprevisto.
Publicado por Paulo Feitais em>:
arevistaentre.blogspot.com
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