Rui Martins*
"Se fosse (Tom Sawyer) um grande e sábio filósofo, como o autor deste livro, teria compreendido então que o trabalho consiste em tudo o que se é obrigado a fazer, e o prazer consiste naquilo que se não é obrigado a fazer."
Tom Sawyer, Mark Twain
O esgotamento iminente de um conjunto essencial de matérias-primas, desde o ferro ao carvão, passando pelos combustíveis fósseis, indica que se aproxima um momento de viragem para a forma de vida que o Homem tem seguido nas suas organizações, vida comunitária e sistemas económicos. O esgotamento das matérias-primas e das formas convencionais de produção energética indicam que a Economia tem que alterar os seus paradigmas essenciais e que passam pela extração bruta de matérias-primas, o seu transporte e armazenamento, transformação e distribuição até ao consumidor final. A escassez que inevitavelmente cairá sobre todos nós – cedo ou tarde – vai forçar a Economia a mudar de objetivos desde a fabricação de "coisas" até uma nova geração de paradigmas em que a produção de serviços, de bens imateriais e virtuais será cada vez mais importante, até se tornar – finalmente – dominante sobre as formas convencionais de produção económica, "coisificadas", tão ao sabor do dogma do "crescimento contínuo", imposto pelos teóricos da maior parte das escolas de pensamento económico, de Adam Smith a Keynes, passando por David Ricardo e Malthus.
Como dizia Agostinho da Silva, "antes de poder filosofar, há que encher a barriga". Sejamos assim claros: uma economia de novo tipo, centrada na produção multiforme e pluritária de bens culturais, só poderá florescer num ambiente em que as condições de sobrevivência mínima estejam plenamente cumpridas. Se na antiga Grécia houve florescimento da Filosofia, tal foi apenas possível devido à existência de uma camada social de abastados proprietários de terras que gozavam os seus lucros enquanto os escravos trabalhavam... Estes escravos hoje são – ou deviam ser – as máquinas. São estas que pela via da automação, da hidropónica e da cibernética deviam assumir a tarefa de nutrir e vestir o Homem, para que este possa Pensar e dedicar-se à verdadeira missão que é a de criar Pensamento, Cultura e Inovação. Deixemos ao Homem a Criatividade e às máquinas as tarefas maquinais, repetitivas, mecânicas e desumanas que hoje dominam ainda o essencial da produção industrial e agrícola. Dir-nos-ão que é Utopia, e eu direi que é Meta. Não temos que chegar a uma sociedade destas num único supetão, nem que estabelecer uma qualquer "ditadura do proletariado" (em que os Fins valem mais que os Meios) para acelerarmos a vinda desse mundo novo, como acreditam os totalitaristas de todas as cores. Deixemos as coisas surgirem de per si, de forma suave e gradual... Plantemos as nossas sementes, formemos comunidades de amigos e familiares no seio das nossas cidades, empresas e escolas que se regem segundo estes novos princípios e depois – pela virtude do extraordinário poder do exemplo – deixemos que a contaminação percorra toda a sociedade.
As sociedades do futuro que assim antevimos serão extremamente frugais e espartanas do ponto de vista material. As sociedades da abundância que existiram depois da Segunda Grande Guerra e até à atualidade no Ocidente encontrarão o seu ocaso inevitável quando os recursos de cujo crescente devoramento dependem chegarem ao fim. E não falamos apenas dos combustíveis sólidos, mas também do carvão e do ferro, que estarão esgotados em pouco mais de 50 anos. Sem recursos naturais para transformar, perante a evidência da impossibilidade da reciclagem e reutilização total das matérias-primas, o modelo de desenvolvimento económico que depende do crescimento eterno do Produto irá esgotar-se. Novos padrões de desenvolvimento, social e humano terão que se impor, inevitavelmente. Se o Desenvolvimento não puder ser medido pelo consumo bruto de bens, então terá que ser medido pelo consumo de serviços culturais e pelo desenvolvimento individual da pessoa humana, que será dotada pela primeira vez na História de meios para realizar plenamente a capacidade criativa, que séculos de Pedagogia castradora – para a Ordem e Disciplina – se esforçaram por reprimir.
Só pelo consumo de bens culturais é que o Homem se poderá realizar e cumprir a sua missão no planeta: Criar. Ter esse prodígio natural chamado cérebro e utilizá-lo apenas para tarefas repetitivas, mecânicas ou animalescas é insultar essa dádiva que a Natureza nos concedeu. Tornemo-nos assim todos – cada qual à sua maneira – em criadores. Sejam obras de marcenaria, esculturas de mármore, contos e poesia ou até ensaios filosóficos ou invenções mecânicas, deixemos a nossa marca no mundo. Passar pela vida sem nunca a marcar é viver de forma passageira e transitiva. Busquemos a eternidade nas nossas realizações e não nas fugidias promessas de "vida para além da Morte" de todas as religiões... Se na economia atual da cidade de Nova Iorque (uma das cidades mais prósperas do mundo) mais de metade da riqueza já é gerada pela Cultura, se em Portugal se estima que a Cultura e a Língua valham já um terço do PIB nacional, então fica demonstrada a viabilidade de um modelo de Economia onde os bens culturais sejam privilegiados em relação aos materiais, mas fazendo sempre a devida ressalva à necessária satisfação das necessidades básicas de qualquer ser humano.
Utilizemos as novas tecnologias a nosso favor. Não para que nos desumanizemos e transformemos em autómatos pós-industriais ou em escravos da máquina, mas para cumprirmos a nossa plena humanidade e utilizando as suas virtualidades que – pela via eletrónica – permitem que um número inédito de criadores, ensaístas, filósofos, poetas e ficcionistas cheguem a custo zero a milhões de leitores, permitindo a instauração da "economia gratuita" de Agostinho da Silva, de uma forma que ele já não pôde antecipar. Nunca – como hoje – houve tantos criadores sendo conhecidos por tantos leitores. Haverá certamente um preço de falta de qualidade a cobrar nesta democratização da Cultura, e tal fenómeno incomoda sobremaneira os meios académicos que ao longo dos séculos se habituaram às suas confortáveis cátedras altaneiras e cobertas de privilégios e "Autoridade". Se a Cultura cair "na rua", se as populações saírem do papel que a "Cultura Académica" reservou para elas, de consumidores passivos e acríticos, então os lugares exclusivistas, transmitidos de geração em geração, por autenticas dinastias de académicos e de outros "proprietários" da Cultura, então essas elites deixarão de gozar da importância a que hoje se arrogam.
Esse é o caminho de um futuro que o presente já deixa antever: um mundo do porvir em que todos terão a sua profissão, e que nos seus tempos "livres" serão consumidores e produtores de bens culturais, gratuitos porque não dependerão, democráticos por produção e origem e de qualidade, porque quando submetidos à opinião dos leitores, estes, através de sistemas de votação como os atualmente existentes em sítios na Internet como o Chuza.org ou Digg.com, aplicariam o seu crivo a estas produções culturais, repelindo aquelas que fossem de má qualidade.
Em Portugal, em 2050, haverá 215 idosos para cada 100 jovens. Estas pessoas, não poderão ter vidas passivas e culturalmente estéreis, se quiserem manter algum tipo de qualidade de vida. Com a massificação de ferramentas de produção cultural pela Internet (redes sociais, blogs, correio eletrónico, etc.), estas pessoas, reformadas e logo com tempo livre, poderão contribuir para uma multiplicação da produção cultural no país.
Se queremos manter esta Terra – a única que temos à nossa disposição até terraformarmos Marte ou a Lua – habitável, temos que a preservar. E para o fazer não temos que ser luditas, nem de repelir toda a tecnologia. Guardemos toda a tecnologia "verde", de reduzir o impacto no meio ambiente e no clima, reduzamos ainda mais essa pegada ecológica e simultaneamente procuremos formas engenhosas e acessíveis de levar o Homem até ao Espaço, a "fronteira final" da Ficção Científica, que é afinal o destino último da humanidade, assim ela saiba compatibilizar a sua existência com o planeta que a viu nascer... Algo que só pode suceder se ultrapassarmos o dogma industrial produtor-consumidor de Bens e assumirmos o paradigma pós-industrial de consumo mínimo de materiais e de produção e consumo máximo de bens culturais.
* Membro do Conselho Editorial da NOVA ÁGUIA e da Comissão Executiva do MIL: MOVIMENTO INTERNACIONAL LUSÓFONO.