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MENSAGEM 1
Escrevo agora, 14 de Novembro de 1934. Chamo-me Rui Humberto Sampaio Braga, tenho 46 anos e conheço Fernando Pessoa. Moro numa casa modesta, tenho família, mulher e três filhos, e conheço Fernando Pessoa porque trabalhámos no mesmo local. Eu sabia que Fernando Pessoa escrevia, já tinha até lido alguns dos seus textos, mas nunca tive opinião formada sobre a sua escrita. Fernando Pessoa é aquele indivíduo bastante reservado, sempre amarrado a si, não partilhava muitas palavras, tão pouco gostava que falássemos para ele, só o essencial para a sua função. Sempre no seu lugar, alheio a todos nós, distante e afastado na sua proximidade física. Era intrigante este Fernando Pessoa. Como é evidente, a vida dele não me interessava, tinha demasiadas preocupações pessoais para adquirir a custo zero uma preocupação impessoal. Porém, o acaso, às vezes, dá-nos inquietações grátis e nós não as podemos recusar. O que eu vi é algo que me poderia ter atormentado.
Desde há uns anos atrás, não sei precisar quando, ando passando súbitas alternâncias de humor e caio, amiúde, em estados de impotência anímica. É como se a alma me abandonasse e eu ficasse órfão de alegria, sem “anima” nem ânimo. Um dia, pedi para sair mais cedo do meu trabalho e fui vagueando pela minha cidade, procurando um lugar feio e escuro, mal-cheiroso e desagradável onde pudesse cair prostrado. Vi uma rua suja, com água fétida estagnando em pequenos pântanos e muito lixo, caixotes, papéis, cartões, tudo amontoado. Encostei-me a uma parede, deixei-me cair, pernas esticadas, braços inertes, encoberto por uma série de entulho que quase me tapava por completo. Foi assim posto, com um semblante pesado e inexpressivo, que comecei a ouvir passos que ecoavam quase imperceptivelmente perto de mim e movido pela curiosidade espreito a ver se via quem procuraria um mesmo espaço que eu. Apercebo-me, então, sem ser notado, daquele ridículo bigodinho, daqueles óculos de faz de conta, daquele chapéu que nunca largava. Era o meu colega, Fernando Pessoa, quem se aproximava e parecia procurar um local reservado. Vejo algo completamente inacreditável! Ele começa a rodopiar sobre si vertiginosamente, em vórtice acelerado, e, quando pára, aparece-me transfigurado. Usa agora um fato justo ao corpo, não tem óculos, desapareceu-lhe o chapéu que deixa ver um cabelo repleto de brilhantina e penteado para trás. À frente do seu peito, neste invulgar fato que veste como por magia, vislumbro as letras “SC” que iam mudando, a espaços de tempo, para “SS”. Nas costas, pende-lhe uma capa que notei ser a bandeira de Portugal. Como foi isto possível? Fernando Pessoa eleva-se no ar, voa como as aves, e deixa-se ficar suspenso. Vai e vem, não saindo da rua deserta nem suspeitando que o observo. E, então, estanca no ar e começa a falar com um super-vozeirão, acho até que essa voz alcançaria todo o país, e disse: “ Povo de Portugal, ó gente concebida pelos descendentes dos nossos valorosos antepassados! Em vós corre o sangue de conquistadores, de valentes guerreiros, em vós vive a alma da vitória! Sois filhos da dor e da tormenta, mas, também, filhos daqueles que ascenderam a deuses. É a hora de voltarmos a ser grandes. Arrancai de dentro de vós esse pedaço de passado que vos habita e, guiados por ele, elevai-vos a soldados da sabedoria e da ciência e sede os reis da união das vontades da grandeza espiritual!” ( confesso que ele não disse bem isto, mas é-me impossível relembrar com exactidão todas as suas palavras). Desce lentamente e poisa, suavemente, os pés no chão. Fica parado, olha o céu fixamente durante um par de minutos e, depois, pontapeia, com uma certa raiva, uma enorme pedra que se vai desfazer e desfaz a parede do velho armazém abandonado e em ruínas que estava em frente. Foi embora. É desnecessário revelar o meu estado de estupefacção, pois devem estar a senti-lo como eu o senti. Ao longo dos anos presenciei esta situação várias vezes, num vocabulário diferente, mas mantendo sempre a mesma ideia, servida pelo mesmo ímpeto e frenesim interior. Que palavras incríveis, que fala louca, que transmutação impossível! Talvez devido ao meu estado de intermitente bancarrota emocional, não me arrepiava nem me comovia. Ele ia-se sempre embora pouco depois de chegar e de tudo se passar como contei e eu deixava-me ficar, como que me arrastando para dentro da funda cova que se abria em mim e me aparecia tão inespectacularmente súbita e rápida como espectacularmente se transformava Fernando Pessoa em “SC” intervalado com “SS”. No trabalho nunca lhe falei do que vi nem nunca ouvi alguém comentar que tivesse ouvido uma voz ecoando no ar com as palavras que ele dizia. Contudo, nas duas últimas vezes que o vi, o seu discurso alterou-se de forma absurdamente radical. Nestas duas últimas vezes, ele elevou-se no ar, cabelo desgrenhado e completamente desalinhado, olhos rodeados por contornos escuros como o breu e a bandeira de Portugal da sua capa tinha fundo negro. Elevou-se no ar e disse com voz forte e trémula de choro: “ Ó povo ignaro e triste, que alma é a vossa que se não desprende do vosso corpo imóvel e estagnado? Que pântano vos habita? Em que areias movediças vos mantendes à superfície? Onde está o rei do sonho em que vos não fizestes? Se não há luz, está na hora de serdes sombra para sempre! Deixai-vos engolir por vós mesmos e sepultai-vos de vez!” E dava socos no ar até que cansado, vagarosamente, ficou de joelhos no chão, esmurrando-o com moderada força. E mais baixinho, mas perceptível para mim:” Já nem consigo fazer de conta que acredito…”. Como eu adorei aquelas palavras, que luz para a minha escuridão. Quase me apeteceu abraçá-lo de contentamento. Ele rasgou do seu fato moderno o rectângulo que tanto tinha “SC” como “SS” e mudou-se nesse fantástico turbilhão de instantes, indo-se embora.
Hoje, passou já muito tempo desde essa última vez que o vi. Eu, infelizmente, continuo, com alguma frequência, a ir a essa rua que continua sempre deserta, mas Fernando Pessoa não tem aparecido. Nunca lhe falei, nunca contei a ninguém, ademais nunca acreditei nem me senti tocado pelas suas primeiras palavras.
Adenda
Hoje é 18 de Agosto de 1935. Soube, há pouco tempo, que Fernando Pessoa ficara em segundo lugar num concurso de poesia com uma obra intitulada “Mensagem”. Por curiosidade evidente, comprei o livro e li-o. Depois de terminar a sua leitura, à noite, levantei-me da cama e fui depositá-lo no caixote do lixo, depois de ter pintado de negro todas as suas páginas. Voltei para a cama e, imóvel, esperei que Morfeu me viesse buscar.
Paulo César Pereira
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