A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

A SITUAÇÃO CULTURAL ACTUAL E OS DIREITOS HUMANOS

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1. Uma Noção de Cultura

Tomando como referência a multiplicidade de concepções do mundo e da vida, o conceito de cultura está em permanente evolução, recriando-se permanentemente, não sendo um conjunto imobilizado de valores e práticas. Afastada, para muitos, qualquer veleidade de definição, convém, todavia, por razões de ordem prática, proceder a uma tentativa de delimitação do seu significado, tarefa difícil e eventualmente inglória. Caracteriza-se, desde logo, por tudo o que é humano e pode ser transmitido, tudo o que tem valor espiritual e, ao mesmo tempo, adquire relevância colectiva, tudo o que está relacionado com obras de criação humana, em oposição à natureza, englobando todas as coisas ou operações que a natura não produz e que lhe são adicionadas pelo espírito. Num sentido mais restrito, é uma realidade artística, intelectual e erudita de feição humanista, correspondente ao universo das artes e das letras, uma cultura superior, de espíritos de eleição, mais rica de conteúdo e de forma, cujas expressões, quanto mais criativas e vanguardistas no momento, mais se aproximam do mundo ideal e se afastam do que é tido como norma da ordem real. Numa acepção mais ampla, é uma realidade complexa, conjugando elementos de natureza antropológica, filosófica, histórica, sociológica, que implicam a aceitação de uma noção aberta e múltipla de cultura, integrando a respectiva criação, consumo ou fruição, actuando no domínio da vida quotidiana, a vários níveis, desde a superior à popular. Exemplificam-na a arte, a ciência, o desporto, o luxo, a religião, a tecnologia. Tão grande transformação leva a que se defenda uma mudança de paradigma. “A nova imagem da cultura não é apenas a cultura erudita de recorte humanista (as artes e as letras), nem a cultura de tipo antropológico (tudo o que não é natureza é cultura), nem a cultura de massas no sentido tradicional do termo. É algo que a atravessa, acolhe, mas designa já outra coisa. A cultura é hoje uma dimensão dominante em que está em jogo o que o sujeito faz de si mesmo e a partir de si mesmo, sem que se definam intermediários conscientes e explícitos que tutelem o sujeito. (…) No nosso tempo existe uma emergência das questões culturais: em primeiro lugar, o problema da identidade, depois os novos movimentos sociais, o multiculturalismo, as relações com a transcendência, os problemas do corpo, e por aí fora.” Apesar de, para muitos, o sentido mais extenso de cultura coincidir com o de civilização , por oposição a quem defende que uma civilização reúne várias culturas, representando o mais largo e abrangente nível de identidade cultural ; dúvidas não restam que a acepção mais ampla é a mais relevante do ponto de vista deste nosso tema, no âmbito dos Direitos Humanos. Decorre de tal acolhimento a necessidade de considerar uma tripla dimensão dos fenómenos culturais, a saber: tradição, inovação e pluralismo, rumo a uma noção aberta de cultura, numa sociedade aberta, em que as pessoas têm de deixar cair as identidades rígidas se quiserem ser parte de sociedades diversificadas e defender valores cosmopolitas de respeito pelos direitos humanos. Liberdade cultural, por sua vez, é a capacidade que as pessoas têm de viver e ser o que escolheram, pelo que a identidade cultural deve ser aceite e reconhecida pelo Estado. Sendo a identidade cultural de todo o indivíduo dinâmica e a diversidade cultural o principal património cultural da humanidade, essa liberdade e a cultura devem ser vistas em termos de Direitos Culturais, parte integrante dos Direitos Humanos. Nesta sequência, o art.º 27.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece o direito à cultura, prevendo tanto os direitos de criação e de fruição cultural, como os de autor. Por sua vez, o art.º 27.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos consagra direitos culturais destinados a garantir a identidade colectiva de minorias étnicas, religiosas ou linguísticas. O que não significa que a liberdade cultural e o multiculturalismo exijam a defesa e submissão cega à tradição, uma vez que os que reclamam a adaptação cultural têm de se sujeitar aos princípios e objectivos da liberdade humana e dos direitos humanos.

2. Origem dos Direitos Humanos

A questão de saber que direitos devem ser tidos como Direitos Humanos, não é apenas uma questão jurídica, mas também uma questão filosófica e normativa, sendo sabido que são hoje um dos assuntos principais em matérias tão específicas como a Bioética, Biologia Humana, Antropologia Biológica, Medicina, Direito, Filosofia, Psicologia, Sociologia, entre outras. Devolver a todo o Ser Humano a sua verdadeira dignidade, equivale a dar-lhe uma posição de centralidade tida como o pólo central de toda a realidade interactiva e como o motor de toda a dinâmica social, por isso merecedor de especial atenção e protecção. Esta formulação é visível numa primeira tentativa de enunciação do próprio objecto: “Os Direitos Humanos são, (…), os bens essencialmente humanos, ou seja, aqueles bens que, constituindo a verdadeira propriedade do homem, lhe correspondem exactamente enquanto homem. Por conseguinte, os Direitos Humanos são direitos universais, situados acima de todo o Estado. São direitos prévios, que toda a constituição política tem de respeitar. Com a Revolução Francesa e com a Revolução Americana, os Direitos Humanos tornaram-se direitos naturais irrenunciáveis.” Importa questionar a sua origem, incluindo a sua legitimidade cultural. Dirão uns que os Direitos Humanos são uma ambição de sempre, tão ancestral como o próprio Ser Humano. Outros dirão que são uma aspiração recente, o resultado da colaboração entre múltiplas culturas. Outros reivindicarão para a sua cultura o pioneirismo de tais direitos. A percepção dominante é a da sua génese ocidental. À semelhança da civilização em que se integram, os direitos ocidentais baseiam a sua especificidade na assimilação dos legados da Grécia e da Roma clássicas, do Cristianismo e da Igreja de inspiração judaico-cristã, do legado Renascentista e Iluminista, das revoluções liberais e dos progressos da ciência e da técnica, sendo a conjugação destas influências que explica que tenhamos um Direito laico, tecnicista e consagrado à protecção da pessoa humana. Para muitos perdeu a “alma”, tornou-se passível de ser manipulado, uma simples técnica descarnada, mesmo que rigorosa. Contra esta tendência têm-se manifestado os autores jusnaturalistas, cujas preocupações foram confirmadas pelo Holocausto e demais formas de tirania a coberto da mais escorreita legalidade. Reagiam para que o Direito não ficasse na disponibilidade do Estado e dele se servisse como mero instrumento de poder. Que os valores jurídicos não deixassem de ser relevantes sob o império das normas. Que o lugar reservado à pessoa humana não fosse cada vez mais diminuto dentro do sistema e seus normativos. Assim, embora continue a ser essencialmente positivista e tecnicista a prática do Direito quando falamos de direitos ocidentais, isso não exclui um total abandono do Direito Natural, tido como uma ideia ou referência recorrente sempre presente, um ideal superlativo. Realização desse ideal é a exigência do respeito pela dignidade da pessoa humana, ser único e singular, titular de direitos naturais não alienáveis, centro absoluto de todo e qualquer sistema jurídico – “Cremos não errar, pois todo o nosso horizonte humano e cultural o confirma, cremos mesmo que é uma simples evidência e de evidência justamente neste ponto se deve tratar, se afirmarmos que no vértice da actual compreensão autêntica da existência humana depararmos com a pessoa: a compreensão e a assunção de nós próprios como pessoas. O homem-pessoa e a sua dignidade é o pressuposto decisivo, o valor fundamental e o fim último que preenche a inteligibilidade do mundo humano do nosso tempo.” É o indivíduo, a pessoa humana, o princípio e o fim de todo o Direito, sua fonte e fundamentação. Se afinal não é o Ser Humano que existe para o Direito, antes é o Direito que existe e deve estar ao serviço do Ser Humano, este surge como pressuposto natural do Direito, autor e fonte primária da sua origem, que o Direito se limita a reconhecer. Não surpreende, nesta perspectiva, o reconhecimento universal jurídico da semelhança intrínseca em sede de direitos de todo e qualquer ser humano, do direito comum e universal a uma vida digna, independentemente da nossa origem, condição, religião, raça, sexo, cor, género, instrução, língua ou ideologia. Mesmo que os teorizadores jusnaturalistas entendam que esta é uma exigência intemporal, não podemos ignorar, em termos históricos, que só há pouco tempo ela ganhou expressão efectiva no plano jurídico.

3. Características dos Direitos Humanos

O “novo ser humano” deixou de ser um membro de uma classe ou grupo social, para se afirmar como indivíduo, passando os direitos naturais a ser direitos individuais, dado a sua referência deixar de ser o ser humano socialmente integrado, para ser a pessoa como indivíduo emancipado, passando a ter carácter universal, tornando-se absolutos, imprescritíveis, inalienáveis e irrenunciáveis. Se tais direitos são, na sua dimensão natural, absolutos, imutáveis e intemporais, inerentes à qualidade humana dos seus titulares, sendo um núcleo restrito que se impõe a qualquer ordem jurídica, isso quer dizer que o facto de alguém ser cidadão deste ou daquele Estado é irrelevante para efeitos de atribuição ou reconhecimento da sua titularidade.
Daqui deriva que os Direitos Humanos têm como destinatários todos os povos e seres humanos, resultam da própria natureza ou condição humana e, nessa qualidade, são reconhecidos pelo Direito Internacional. Sejam eles descobertos ou fundados por via do direito natural, por um conjunto de princípios jurídicos fundamentais, sejam criados por Deus, pela razão humana (por exemplo, o jusnaturalismo convertido em jusracionalismo) ou de algum modo objectivados pela consciência jurídica comunitária ou, inclusive, nas normas e princípios de Direito Internacional, são sempre, em todo o caso, direitos de toda a pessoa humana, quer sejam reconhecidos por normas costumeiras, tratados ou princípios de Direito Internacional em vigor.
Foi-se aceitando a ideia de que a ausência de uma comunidade política mundial não justifica dar prioridade absoluta aos estados-nações e seus concidadãos, começando a questionar-se até que ponto não deveriam os líderes mundiais preocupar-se com certos interesses das pessoas em todo o mundo, mormente após a II guerra mundial e sua desumanização.
Surge, assim, uma tentativa de universalização dos Direitos Humanos, que vieram a ser consagrados na Declaração Universal de 1948 e em duas outras Convenções Internacionais desde 1966: a Convenção sobre os Direitos Políticos e Sociais e a Convenção sobre os Direitos Sociais, Económicos e Culturais. Merece também referência a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu art.º 1.º, estabelece: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e em fraternidade.” Todo o ser humano tem, à partida, igual dignidade. Tendo todo o ser humano, à partida, igual dignidade, os Direitos Humanos são universais porque titulados por todos os seres humanos em virtude da sua condição humana (unidade do género humano). É por referência à existência de uma identidade humana universal, conjugada com a inquestionável dignidade da pessoa humana, que se justificam maioritariamente os Direitos Humanos com a sua característica de universalidade. A universalidade é, por isso, uma condição imprescindível, uma vez que não reconhecer a tais direitos a sua natureza universal significa negá-los, razão pela qual pouco importa, nesta perspectiva, que tenham ou não génese ocidental.
Proclama-se, ao mesmo tempo, uma universalidade trans-patriótica e universalista. Não é o Estado e a Nação individual, em si e por si, que constituem o ponto de partida, mas sim as ideias ou princípios transnacionais e universais, que se antepõem e intrometem no pensamento estadual e nacional. Antes de portugueses e europeus, angolanos, moçambicanos e africanos, brasileiros, latino-sul-americanos (e lusófonos), ingleses, europeus e anglófonos, franceses, europeus e francófonos, chineses, indianos e asiáticos, somos todos, em primeiro lugar, seres humanos. Definindo, simultaneamente, um padrão mínimo de dignidade humana que ninguém deveria violar, são direitos anteriores, pré-políticos e independentes do governo e soberania estadual. Exemplificativo, a tal respeito, como princípio fundamental número um, categórico e imperativo, temos o princípio da dignidade da pessoa humana, no art.º 1.º da nossa Constituição, segundo o qual: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana (…).

4. Que Direitos Humanos?

Quanto à questão de saber “que direitos devem ser tidos como direitos humanos?”, a Declaração Universal enumera um vasto rol. Inclui a primeira geração de direitos pessoais: direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, a não ser escravizado, nem torturado, a ser sujeito de direitos, de protecção contra a discriminação, a um julgamento justo, a constituir família, entre outros.
Enuncia outros direitos individuais, tidos como liberdades públicas e direitos políticos, tais como: o direito ou liberdade de pensamento, de opinião e expressão, de consciência e religiosa, de reunião e de associação. As convulsões originadas com as reivindicações de classe, fizeram surgir um novo tipo de Direitos Humanos, os direitos sociais ou direitos de segunda geração, incluindo, entre eles, o direito ao trabalho, à segurança social, a remuneração igual por trabalho igual, à liberdade sindical e, posteriormente, o direito à saúde, à habitação e educação. Estes últimos (direitos sociais) trouxeram uma mudança de sentido para a noção dos Direitos Humanos, uma vez a sua efectivação passar a estar dependente do Estado, sendo determinados por opções políticas e dependentes dos recursos sociais existentes.
Daí a necessidade de redução, para alguns, do elenco de Direitos Humanos a um núcleo duro e restrito, diferenciando-os dos direitos de cidadania, sendo estes criações políticas, relacionados com a existência de um Estado soberano e variando de uma comunidade política para outra. Os Direitos Humanos, por sua vez, não dependem do Estado, estando associados a ideias humanitárias, dado que “(…) o combate pelo respeito à dignidade humana é anterior à existência do Estado, no sentido de que não desaparece quando o Estado entra em colapso em consequência de insurreição e guerra civil ou calamidade natural. Os direitos humanos aplicam-se a cada membro da humanidade e reconhecem prerrogativas a todos os seres humanos e a todos os Estados.” Assim, muitos daqueles que usualmente designamos como Direitos Humanos serão, nesta óptica, direitos de cidadania disfarçados. Escreve, ainda, a propósito, João Cardoso Rosas: “(…) é necessário distinguir aquilo que devemos aos outros como seres humanos daquilo que devemos aos outros enquanto concidadãos. Não tenho objecções em relação a uma extensa lista de direitos de cidadania, mas já não sou da mesma opinião em relação a uma extensa lista de direitos humanos. Creio que esta última deve ser drasticamente reduzida, talvez de acordo com as linhas de orientação propostas pelo escritor e historiador canadiano Michael Ignatieff: os direitos do homem representam a nossa linguagem comum contra a humilhação e o sofrimento (Ignatieff 2001). Os direitos humanos não devem ser confundidos com os direitos de cidadania. Caso contrário, perderão a sua função essencial como padrão mínimo de dignidade pessoal (…). Para acrescentar: “Uma lista de direitos humanos digna não implica uma ordem global justa e muito menos uma ordem global democrática. Os direitos humanos devem ser respeitados nos Estados liberais democráticos, mas também nos Estados que não são nem justos, nem liberais, nem democráticos (…). Além do mais, os direitos do homem devem manter toda a sua força moral fora do Estado, para os imigrantes, os expatriados e os refugiados.” Desnecessário será dizer que este critério de definição e de defesa de uma lista curta não reúne consenso, tendo ganho maior abrangência o leque de direitos consagrados, não só pela inclusão dos direitos sociais, mas também pelo alargamento de certas liberdades tradicionais.

5. Relativismo, Universalismo, Trans-culturalismo

Os Direitos Humanos nunca foram um assunto pacífico, desde logo no que toca ao seu fundamento e ao seu crescente alargamento, este último, segundo alguns, justificado por razões de ordem política e, como tal, incompatível com a dignidade da pessoa humana. Porém, a sua origem ocidental e subsequentes traços na sua formulação, dão azo a fortes críticas de autores relativistas contra a sua pretensa universalidade. Não são mais que uma retórica específica do Ocidente para homenagear a dignidade do ser humano, traduzindo-se o seu carácter universal numa arrogante expressão pública de suposta superioridade, numa ausência de respeito pela dignidade de muitos homens. “A dignidade humana (…) conhece formas muito diversas de expressão. Tantas quantas as formas de ser Homem. Porque o ser humano não é apenas um bicho a que são próprias uma série de características fisiológicas e um conjunto de necessidades básicas. É também - acima de tudo - um ser situado, um ser que se vê e compreende pelos olhos que lhe são dados pela cultura em que vive.” A prioridade dada ao indivíduo sobre o grupo é um desvio da natureza humana, não fazendo sentido tê-lo como anterior à comunidade e independente dos seus valores: “A diferentes culturas correspondem diferentes formas de conceber a condição humana e de lhe oferecer uma adequada tutela. Não existe um modelo único, nem (…) melhor. Isso significa que os teorizadores dos Direitos Humanos laboraram num erro. Esqueceram a dimensão cultural da dimensão humana, permitindo-se dizê-la universal quando ela é, na verdade, relativa. Esqueceram a dimensão societária da natureza humana, concebendo o homem como um ser isolado, independente e indiferente a qualquer grupo. E depois tiveram a veleidade de pretender impor o modelo ao mundo inteiro. Uma pretensão que - aos olhos dos relativistas - se afigura totalmente insustentável.” Não existe, assim, uma única forma de ser-se ser humano, nem uma forma única de o proteger através do Direito, pelo que sendo os aludidos direitos um produto histórico da civilização ocidental, tornam-se ilegítimas afirmações relativas ao seu carácter universal. O relativismo cultural, levado às últimas consequências, acarreta que, por tolerarmos sempre o diferente, aceitemos a intolerância e o terror, o que colide com os defensores da universalidade dos Direitos Humanos. Com a agravante de que a ideia de que todas as culturas têm igual valor, também é uma criação ocidental. Acabam os universalistas por esclarecer que universalidade não equivale a uniformidade ou rigidez, pelo que os Direitos Humanos são “direitos universais contextualizados”. Eis que surge, neste caminhar, um movimento de conciliação entre a variedade cultural e um todo de valores comuns trans-culturais, em que a diversidade cultural não é total. Neste sentido,
“É de admitir, (…), que, mesmo as culturas mais distintas da nossa, conheçam figuras cujo sentido é a tutela da dignidade da pessoa humana em termos semelhantes aos do Ocidente. Importa, por isso, descortinar nesses outros universos significativos os “equivalentes homeomorfos” dos Direitos Humanos por forma a poder definir um conjunto de valores que sejam partilhados por todas as culturas do mundo; valores que sejam, na terminologia de Alison Dundes Renteln, “cross-cultural universals”. Uma tal tarefa há-de passar, (…), por um diálogo inter-cultural em que se reconheça a inevitável incompletude de todas as culturas e em que sejam ponderados todos os topoi próprios de cada uma delas (…). O resultado será uma concepção multicultural dos Direitos do Homem, uma “mestiçagem””. Traduz-se em ir procurar numa determinada cultura aquilo que nela houver de melhor de aspiração ao bem comum universal de todos os seres humanos.

6. Considerações Finais

É no mundo muçulmano que a tese relativista tem mais apoios. Face às críticas do Ocidente, desvalorizam-nas e têm-nas como ilegítimas, na medida em que as têm fundadas num inadmissível etnocentrismo e numa nova forma de imperialismo, tendo por base valores próprios da civilização ocidental, alheios à tradição islâmica. Existem autores muçulmanos que têm como hipócrita a atitude do Ocidente, explicando a sua defesa dos Direitos Humanos pelo facto de necessitar de uma forma precisa que servisse de solução para os permanentes atentados contra a dignidade da pessoa humana aí ocorridos. Ao contrário, o Islão, humanista e tolerante, nunca necessitou de uma tal Declaração, já que a Sharia se antecipou na consagração dos direitos reivindicados pelo Ocidente, consubstanciando uma ordem normativa e vinculativa. Os seus direitos são manifestações da vontade divina, absolutos e incontestáveis, sendo os Direitos Humanos, no fundo, Direitos de Deus, o que lhes confere uma inequívoca superioridade em relação aos direitos do Ocidente. Os ocidentais, como arautos e criadores dos Direitos Humanos, vêem com descrença o ressurgimento islâmico. Esse reaparecimento envereda por um regresso às origens, ao purismo da lei religiosa, à Sharia, ao restabelecer penas desumanas, discriminar homens e mulheres, como reacção a uma tentativa de europeização dos sistemas islâmicos, tornando incompatível o mundo muçulmano e os direitos humanos. Samuel Huntington, após afirmar que o Ocidente tem muitos inimigos, defende que a maior ameaça vem do mundo muçulmano, já que este rejeita os valores ocidentais e anseia substituí-los pelos seus próprios ideais, moldando à sua medida uma nova ordem mundial. Os Direitos Humanos são, em sua opinião, uma matéria apta à eclosão de um choque de civilizações, por maioria de razão com o Islão. O aparente e desprezível valor da vida e integridade física das pessoas, o estatuto de menoridade conferido às mulheres, a apostasia, entre outros aspectos, chocam a opinião pública ocidental, dando eco à tese de Huntington. Todavia, também há no Islão quem defenda a adaptação dos diplomas internacionais relevantes em sede de Direitos Humanos. Para isso contribui o facto de muitos muçulmanos quererem a democracia e o respeito pelos direitos maioritariamente aceites internacionalmente, corroborado pelo tratamento dado à questão palestiniana, a nível da ONU, como parte integrante de tais direitos. O que não implica uma aceitação e importação cega, uma vez que embora os reformadores não neguem a validade do modelo ocidental, não o têm como referência absoluta, pelo que devem encontrar um modelo partindo do que é particularmente islâmico. Terá de ser uma leitura a partir de dentro e não uma cópia de fora. E mesmo que não se aceitem direitos universais pré-fixados, isso não quer dizer que devamos renunciar a um núcleo mínimo e comum de referentes ético-jurídicos de dimensão transcivilizacional e imprescindíveis para um salutar funcionamento das comunidades, culturas e civilizações, comportando um diálogo intercultural. Direitos Humanos que em conjugação com a situação cultural actual deixaram de ser, para muitos, apenas direitos individuais e sociais, falando-se na emergência de outros direitos, a incluir naqueles, os direitos emergentes ou de terceira geração, como o direito à imagem, à privacidade, de informação, de objecção de consciência, de preservação e protecção ambiental planetária, a uma visão própria do mundo e o direito à felicidade, ampliação que, como já referido, é também contestada, restringindo-os ou seus seguidores a um núcleo restrito de direitos estritamente humanitários.

7. Conclusão

Defenda-se, ou não, uma subjectivação ou privatização da cultura actual e dos Direitos Humanos, complementada, como compensação para a sua crescente individualização, por uma ascendente globalização; defenda-se, ou não, não podermos conhecer o todo sem conhecer as partes e vice-versa, havendo necessidade de um pensamento complexo apoiado num conhecimento transdisciplinar sobre o homem, a sociedade e o conhecimento; defenda-se, ou não, a existência de múltiplas temporalidades simultâneas; defenda-se, ou não, que nenhuma realidade existe em si e por si, dado que nascem, vivem, metamorfoseiam-se e morrem de acordo com as leis da interdependência e impermanência; defenda-se, ou não, que tudo está em tudo; concluimos, sempre, que a situação cultural actual e os Direitos Humanos podem (e devem) contribuir para uma universalização dos pontos comuns entre todas as culturas, jurisdições, povos e civilizações, porque somos humanos, ao mesmo tempo que respeitem a diversidade e construam a unidade na variedade através de laços comuns de humanidade.
O que é exequível com um diálogo intercultural de que poderá nascer um projecto planetário para um futuro mais digno, baseado em referentes comuns de um acordo universal que terá por objecto a resolução de problemas que afectem todos os Humanos, quer se entenda que esses Direitos advêm da própria natureza ou condição humana, sejam criados por Deus, pela razão humana num mundo intramundano, reconhecidos por normas costumeiras, tratados ou princípios jurídicos aceites e validados positivamente pelo Direito Internacional, integrando os direitos de todos os seres humanos, próprios do nosso tempo, em todos os lugares do globo, rumo a uma jurisdição (mais) universal.

JOAQUIM MIGUEL PATRÍCIO