Por vezes é uma chatice haver mais gente no mundo, principalmente se não concordam connosco ou escapam aos nossos desejos. Podem erguer-se os moralistas e os proclamados santos com que cada sociedade se ilude, podem cantar-nos em belos hinos «abençoadas as carraças do teu irmão», que continuaremos a evitá-las. No fundo, até o mais labrego dos homens guarda uma reserva de bom gosto e asseio, com que muralha o seu instinto de sobrevivência. É disso que se trata: sobrevivência. Quando os outros se nos opõem defendem, de algum modo, a sua sobrevivência e colocam em perigo a nossa, não necessariamente a existência mas decerto o nosso sucesso enquanto seres sociais. Corre-se sempre o risco dos nossos opositores provarem que somos estúpidos, ou destaparem alguma falência ou vício que nos destempere a tão arduamente forjada respeitabilidade. Nenhum homem é sempre inteligente, nem sensato, contudo são os mais insensatos e os mais estúpidos que se preocupam em parecer em todas as circunstâncias inteligentes e sensatos. O mesmo se pode dizer dos maldosos e dos incultos. Como se esforçam em atirarem-nos com a ética e a sabedoria, como se agitam no afã de nos convencer sabe-se lá de que cardápios de bondade universal e de cultura suprema. Poderiam até estar certos, e ironicamente aparecer o mais estouvado e mais néscio dos homens e dizer «olhe, quero que você se lixe». Nem se trata de haver um arremedo de razão, o capricho basta, o enfado, não terem engraçado com a nossa cara ou, pura e simplesmente, terem mais que fazer do que estar a ouvir alguém que acha que pode esclarecer os outros.
A esta contradição entre a inteligência e o real pode-se dar muitas significações, pejorativas e até elogiosas. O mais comum é nomearmos essa contradição com os atributos do livre arbítrio. Mesmo o néscio tem imensos momentos em que quer pensar por si, e ainda que isso lhe seja difícil, pode sempre dizer «não», sem que precise de se justificar na verdade ou num motivo plausível. É irritante, concordam os sábios, sem dúvida, porém é na liberdade sem porquê que todas as criaturas afirmam viver na utopia de serem os únicos tiranos do seu próprio destino.
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