Ler torna-se quase um acto espontâneo para o letrado, de imediato as letras se tornam palavras, os signos passam a símbolos e desenham na alma do leitor um mapa semântico de abissal subjectividade. O que eu leio nunca é exactamente o que o outro lê. Estas fracturas no chão textual do entendimento são tanto maiores quanto mais complexa é a polissemia. Um texto religioso aumenta essa divergência; uma notícia do jornal «A Bola», se a gera, é por motivos bem mais prosaicos; numa obra científica, se há controvérsia, não é acerca do seu lógica e necessariamente claro conteúdo. A controvérsia tem mais do que um sustento. Raramente se prende com a verdade. O pergaminho do mundo não é monopólio dos sábios.
O texto é sempre um acto de fala que procura um interlocutor universal, em última instância: Deus. Ao outrar-se à transcendência exerce a sua tirania. É esta ambição da escrita em rivalizar com o eterno, perpetuando-se para além do efémero da palavra dita, da mortalidade da conversa, querendo erguer-se a primado legislativo das civilizações, que nos leva facilmente a desconfiar dos paradoxos, paixões e estratagemas do autor. Não é que a humanidade não aceite um Deus que minta em nome de paixões ou a aflija cruelmente com a verdade, a razão é essa, que somente o aceita de Deus e não de um simulacro com pés de barro.
1 comentário:
Para inicio de conversa, o meu agradecimento pela limpidez de raciocínio, caro Marcantonio Bragadin.
Estou genericamente de acordo, ainda assim, oferecesse-me dizer o mesmo que já disse algures neste blogue, mas indo um pouco mais fundo: são as constantes simplificações e descontextualizações em que alguns são peritos (Saramago é o melhor exemplo e causa desta reflexão), que os fazem errar no que respeita à interpretação da Bíblia, ou seja: a leitura de um texto, deve sempre ser feita no contexto da sua cultura porque, esta é a única maneira de podermos compreender a mensagem, qualquer mensagem. O texto, qualquer texto, mas neste caso particular em que Jesus não escreveu nenhum livro e, o que temos, são interpretações, e interpretações de interpretações de parâmetros particularmente dilatados, necessita de ser interpretado no contexto da sua cultura, pois, uma vez que foi composto há muitos anos e foi transmitido de uma forma mais ou menos fixa, contém agora muita coisa que à primeira vista é obscura, irrelevante ou desconcertante. Isto significa que, os leitores têm tendência para abordar o texto com as pressuposições e preocupações do nosso tempo, e podem incorrer no erro de procurar adaptar o significado do texto de acordo com ele.
Ora, se ao comum dos mortais e por razões várias, é admissível que não o julgue assim e não reflicta sobre isso, a um Nobel é indesculpável e simplesmente ridículo, mais, numa sociedade ocidental moderna é, mais ou menos axiomático que as crenças religiosas dos outros povos (embora, claro está, nem todos os comportamentos religiosamente motivados) devem ser toleradas e até, talvez, respeitadas.
Na realidade, devia ser considerado como falta de educação e provincianismo referir as opiniões religiosas dos outros como falsas e as nossas como verdadeiras; para aqueles que foram inteiramente educados na cultura elitista da sociedade ocidental, a própria noção de verdade absoluta em matéria de religião, soa já como coisa do passado.
Abraço.
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