A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
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Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

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Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

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domingo, 4 de outubro de 2009

Às margens da História?

Eu estava a olhar as gaivotas pairando sobre os mastros dos navios... Vi as águas resplandecentes da Guanabara... Era cálida a luz do sol... Olhei firme o horizonte com a ânsia de voltar ao passado da mesma forma que podemos voltar a algum lugar... Mas, o tempo é uma sensação que passa e não volta, apenas fica na memória. E, talvez, a memória seja o melhor lugar para se preservar o tempo.
Seria inesquecível se eu pudesse voltar no tempo e encontrar-me com personagens históricos, conversar com eles e (quem sabe?) participar dos fatos marcantes de nossa História. Isso seria fisicamente impossível, porém, aventurei-me nas páginas da História para reencontrar o marujo negro João Cândido Felisberto. Marujo negro brasileiro forjado guerreiro sob as varas de marmelo da disciplina rígida da Marinha de Guerra do Brasil. Hipócrita Marinha que de marinheiro se olvidou, presa que estava a mentalidades alicerçadas em antigos modelos políticos, econômicos e culturais de séculos de abusos à humanidade do homem. Nas páginas dessa História brasileira, arcaica e preconceituosa, assinalam-se as lonjuras das disparidades sociais e oxalá não mais estejam nos mares de nossa futuridade.
As páginas da História nacional deixaram às margens a Revolta da Chibata e a estória de seu líder João Cândido no anonimato. Contudo, descobri em uma das prateleiras dos fatos históricos, um livro de cor escura com a imagem de dois marinheiros na capa, cujo título era João Cândido do Brasil e a Revolta da Chibata, de César Vieira. Ao folheá-lo, percebi que ali se alinhavava o motim dos marujos que reivindicavam melhores condições de trabalho e o fim dos castigos corporais, tecido em uma linguagem teatral. Logo nas primeiras páginas o livro afirmava que “(...) É inaceitável que o simples estudo dos acontecimentos dessa rebelião na Armada Brasileira seja, quase cem anos depois, motivo de proibição, censura, discriminação, preconceito e ódio.” Cada vez mais entretida, li admirada que “Os negros marujos de 1910 cortaram amarras, levantaram âncoras, içaram bandeiras e com seu exemplo tentaram nos passar bússolas... mas, infelizmente, continuamos sem rumo, à deriva.”
Lia atentamente e, de repente, as páginas começaram a aparecer em branco. Algo estranho estava acontecendo. Fechei o livro surpresa. Abri-o novamente. De súbito, tive a impressão de estar dentro de uma concha do mar, ouvindo o marulhar das ondas indo e vindo. As ondas espumavam, batiam nas pedras... O vento forte a zunir e a trazer a Mensagem salgada do mar, “a Magia que evoca/ O Longe e faz d’ele história./ E por isso a sua glória/ É justa auréola dada/ Por uma luz emprestada.”
Eu cedida ao mar de outrora. Fecharam-me os olhos. Sozinha em ilha indescoberta, meu corpo ficou leve como uma pena no ar. Inexplicavelmente, havia areia quente em mim. Ofuscada pela luminosidade do dia, vi-me deitada em uma praia. Assustada, levantei-me, olhei em volta... Lá estava o mar. O mesmo mar que permeou e delineou eventos fundamentais que constituíram a nação portuguesa ou como bem disse o Pessoa: “Deus ao mar o perigo e o abysmo deu” [mas] “nelle é que espelhou o céu.”. Mais ainda o Mar “É a Magia que evoca/ O Longe e faz d’elle história./ E por isso a sua glória/ É justa auréola dada/ Por uma luz emprestada.”
Viajei ao passado, lá exatamente onde João Cândido protagonizou, junto de muitos companheiros, a Revolta dos Marinheiros. Pude ver ao longe, em um navio, um homem amarrado pelas mãos e pés sendo açoitado nas costas enrubescidas de sangue, gritando, agonizando de dor enquanto toda a tripulação assistia ao repugnante espetáculo. A surra foi tão grande que o homem desmaiou e suas “costas assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”. Era Marcelino Rodrigues Menezes, que depois de levar 250 chibatadas, foi desamarrado, enrolado em um lençol e carregado para o porão. Provavelmente, jogaram iodo nas imensas feridas do homem e o deixaram debater-se convulsivamente no chão. Era o estopim da insurreição.
De novo senti como se estivesse com o ouvido encostado a uma concha. Percorri o tempo. Era noite, o céu estrelado. Estava a bordo do encouraçado Minas Gerais, o navio de Guerra mais moderno do mundo naquela época a tremular nas águas da Guanabara. Barulhos faziam-se ouvir, havia gritos e sinais de combate no convés. Escondi-me. Pude ver, então, João Cândido que encorajava os companheiros à luta.
João Cândido, um afrodescendente, filho de escravos, era um homem de lábios e sobrancelhas grossos, orelhas pequenas, bigode, cabelo curto e encarapinhado, corpo robusto. Aos treze anos tornou-se aprendiz de marinheiro e com pouco mais de vinte anos já era instrutor de aprendizes de marinheiro. Desde criança evidenciava ter um espírito de contestação; espírito este que aflorou ainda mais porque, durante uma viagem que fizera à Inglaterra para buscar navios mais modernos encomendados pelo Governo brasileiro, inteirou-se de uma realidade social na qual os marujos ingleses, mais organizados e politizados do que os brasileiros, conquistaram condições dignas de trabalho.
Depois de contemplar, admirada, o comportamento de João Cândido, detive-me na movimentação dos demais marinheiros. Cada um deles assumiu seu posto e os oficiais já estavam presos em seus camarotes. Cada canhão ficou guarnecido por cinco marujos, com ordem de atirar para matar contra todo aquele que tentasse impedir o levante. Houve algumas mortes. Entretanto, os marinheiros haviam vencido.
De súbito, senti o marulhar das ondas carregando-me tempo a fora. Vi-me em um local escuro, fétido, úmido. Era a masmorra da Ilha das Cobras... Ouvi vozes e passos. Andei um pouco, escondi-me em um vão da parede e coloquei-me a espiar. Vários marinheiros amontoavam-se pelo chão dentro de um cubículo, alimentando-se apenas de migalhas de pão e pouca água. Um barril de madeira servia para depositar os excrementos. Às vezes, os guardas jogavam água com cal a pretexto de desinfetar o ambiente. Identifiquei João Cândido escorado na parede pichada, tentando tranqüilizar os camaradas, alguns deles tão inchados que pareciam sapos; outros, de tanta sede, bebiam a própria urina. Vi estarrecida o corpo de um homem já putrefato a um canto. A todo movimento, nuvens de cal dissipavam-se e adentravam os pulmões dos brasileiros que ali estavam. Tudo isso já eram mostras da violação dos Direitos Humanos.
Aqueles homens apenas pediam o fim dos maus-tratos e da má alimentação na Marinha Brasileira e que depois da rebelião foram anistiados, mas tal direito, também, lhes foi insensivelmente violado. Naquele instante, lembrei-me de uma frase do filósofo Chopenhauer que diz que “o primeiro objetivo do indivíduo é sua própria conservação” e, quando ele sente que tal direito está sendo violado, ele age a fim de manter-se preservado. Foi isso que os marinheiros da Revolta da Chibata fizeram: reivindicavam suas necessidades vitais e, por isso, foram obrigados, de forma desumana, a iniciar uma busca desesperada por sobrevivência, jogados naquela masmorra pútrida. Lágrimas escorreram dos meus olhos e senti uma indignação tremenda pulsar dentro de mim, porém, outra vez, o som do mar carregou-me dali.
Agora eu estava na Praça XV onde ocorriam as descargas dos pesqueiros. Vi um homem com cerca de oitenta anos vendendo peixes. Era João Cândido. Fui até ele e disse-lhe que era um herói popular. Ele olhou-me e com um sorriso humilde, tocou-me levemente o ombro. Disse-me que apenas lutou pelo direito natural à vida. Infelizmente, não é todo ser humano que tem essa estima pela vida. Muitos ainda valorizam mais os bens materiais em detrimento de uma condição mais decente de vida. Mesmo assim, nada pode impedir que consolidemos e zelemos por nossa integridade física e moral, por nossa seguridade pessoal, por nossa liberdade, assim como fez Zumbi dos Palmares na época da escravidão.
Comecei a sentir meu corpo flutuar e, de novo, naveguei pelo tempo... Avistei um mar sereno. A brisa acariciava meus pensamentos. Eu estava no cais da Baía de Guanabara e o Almirante Negro, ao meu lado, segurava firme minha mão direita. Parados, fitávamos a linha na qual o céu parece juntar-se com o mar. Suspeitei que João Cândido pensasse assim: “Um dia o mundo inteiro saberá respeitar os Direitos Humanos. Tentei contribuir lutando em prol deles, resta agora cada um tomar consciência da importância dessa luta. Espero que a efetivação concreta dos Direitos Humanos não continue sendo uma utopia em nossa sociedade.”
Logo não ouvi mais o marulhar das ondas, mas sim a melodia de um samba que fazia palpitar meu coração e ritmar a memória. Uníssonas cantavam que “Há muito tempo nas águas da Guanabara/ O dragão do mar reapareceu/ Na figura de um bravo feiticeiro/ A quem a história não esqueceu/ Conhecido como navegante negro/ Tinha a dignidade de um mestre-sala (...)”. João Cândido foi tocado em versos... Versos censurados pela hipocrisia da Ditadura Militar que a partir de 1964 calou nossas canções e durante os vinte longos anos que fez ruflar os tambores da opressão, como a República Velha, atentou contra os Direitos Humanos.
O tempo passou... Mas o Almirante Negro, transformado em O mestre-sala dos mares, foi enredo de escola de samba, arrastando foliões à avenida para caírem na farra da “Glória às mulatas, aos piratas, às sereias/ Glória à farofa, à cachaça, às baleias”... Enfim, à “Glória a todas as lutas inglórias”... À dignidade inerente a toda pessoa humana e à igualdade entre todos os seres humanos. Como em um desfile carnavalesco no qual o mestre-sala vem à frente do cortejo defendendo o estandarte da escola de samba, João Cândido veio à frente da Revolta da Chibata para defender um estandarte maior: o dos Direitos Humanos. E semelhante ao Rei dos Palmares, é um Zumbi dos tempos modernos.
Ainda embaraçada pelo devaneio, despertei das páginas da História aquele Mestre-Sala dos Mares por tanto tempo adormecido pela Oficialidade de nosso país e até mesmo chamado por Gilberto Amado de “o negro que violentou a história do Brasil”. Decerto, o movimento que João Cândido liderou extinguiu os castigos corporais na Marinha Brasileira, entretanto, ele foi forçosa e desmerecidamente posto à margem de nossa História, vivendo pobre, esquecido, humilhado, apenas tendo “por monumento as pedras pisadas do cais”
Como não é possível encobrir para sempre as veracidades históricas que o tempo guarda porque ele mesmo se encarrega de imortalizar pessoas do feitio de João Cândido, percebo que é imprescindível conhecer nosso passado, perscrutá-lo para entender melhor e bem mais a nossa sociedade atual e poder ter a disponibilidade de tornar nosso futuro o mais decente e digno possível a todo homem indistintamente, pois, como disse Henry Ford, “dias prósperos não nascem por acaso; nascem de muita fadiga e muita persistência”.
Assim, devemos trazer para as páginas de nossa contemporaneidade o estandarte erguido pelo Almirante Negro: o estandarte dos Direitos Humanos. O estandarte da plenitude do homem em toda a sua Humanidade que sobre água brava ou serena seja futura-Idade do Espírito Santo. Afinal, o Quinto Império é a República Democrática e não é utópica. Faz-se tópica, porque é realizável e depende de cada um de nós fazê-la valer.

4 comentários:

Renato Epifânio disse...

Gostei. Abraço!

José Pires F. disse...

Embora seja um texto demasiado extenso para um blogue, vale a pena ler cada linha.

Gostei.

Abraço, MIL.

Lúcia Helena disse...

Ao PiresF,
Ficarei atenta ao tamanho dos próximos textos. Apesar da extensão textual para um blogue,
que bom que gostou.
Paz e Bem Mil

José Pires F. disse...

Gostei mesmo, Lúcia Helena.

Confesso que não me assustam os textos longos. Talvez porque sofra desse “mal” que, combato (ou tento) sempre que escrevo, pois, sei de há muito, o que vários estudos já revelaram: textos superiores a 20 linhas, dificilmente são lidos na blogosfera.

Abraço MIL.