Nightwish: Dark Chest of Wonders (live)
[...]
— O que se deve entender por arte portuguesa? Concorda com este termo? Há arte verdadeiramente portuguesa?
— Por arte portuguesa deve entender-se uma arte de Portugal que nada tenha de português, por nem sequer imitar o estrangeiro. Ser português, no sentido decente da palavra, é ser europeu sem a má-criação de nacionalidade. Arte portuguesa será aquela em que a Europa — entendendo por Europa principalmente a Grécia antiga e o universo inteiro — se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações — a Grécia passada e Portugal futuro — receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras. Chamo a sua atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa e Atenas estão quase na mesma latitude.
— O regionalismo na literatura e na pintura?
— O regionalismo é uma degeneração gordurosa do nacionalismo, e o nacionalismo também. E como o nacionalismo é antiportuguês (sendo bom, cá no Sul, só para os povos latinos e ibéricos), o regionalismo em Portugal é uma doença do que não há. Amar a nossa terra não é gostar do nosso quintal. E isto de quintal também tem interpretações. O meu quintal em Lisboa está ao mesmo tempo em Lisboa, em Portugal e na Europa. O bom regionalismo é amá-lo por ele estar na Europa. Mas quando chego a este regionalismo, sou já português, e já não penso no meu quintal. (O facto de o meu quintal ser inteiramente metafórico não diminui a verdade de tudo isto: Deus, e o próprio universo, são metáforas também.)
— Teriam existido em toda a nossa história literária períodos de criação?
— O nosso único período de criação foi dedicado a criar um mundo. Não tivemos tempo para pensar nisso. O próprio Camões não foi mais que o que esqueceu fazer. Os Lusíadas é grande, mas nunca se escreveu a valer. Literariamente, o passado de Portugal está no futuro. O Infante, Albuquerque e os outros semideuses da nossa glória esperam ainda o seu cantor. Este poderá não falar deles; basta que os valha em seu canto, e falará deles. Camões estava muito perto para poder sonhá-los. Nas faldas do Himalaia o Himalaia é só as faldas do Himalaia. É na distância, ou na memória, ou na imaginação que o Himalaia é da sua altura, ou talvez um pouco mais alto. Há só um período de criação na nossa história literária: não chegou ainda.
— Continuará sendo o lirismo a nossa feição literária predominante?
— Há duas feições literárias — a épica e a dramática. O lirismo é a incapacidade comovida de ter qualquer delas. O que é ser lírico? É cantar as emoções que se têm. Ora cantar as emoções que se têm faz-se até sem cantar. O que custa é cantar as emoções que se não têm. Sentir profundamente o que se não sente é a flâmula de almirante da inspiração. O poeta dramático faz isto directamente; o poeta épico fá-lo indirectamente, sentindo o conjunto da obra mais que as partes dela, isto é, sentindo exactamente aquele elemento da obra de que não pode haver emoção nenhuma pessoal, porque é abstracto e por isso impessoal. Fomos esboçadamente épicos. Seremos inviolavelmente dramáticos. Fomos líricos quando não fomos nada. O lirismo só continuará sendo a nossa feição predominante se não formos capazes de ter feição predominante.
— O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?
— O Quinto Império. O futuro de Portugal — que não calculo mas sei — está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamo. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeismo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.
13-10-1923
Fernando Pessoa
In Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, Fernando Pessoa, recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão, introdução e organização de Joel Serrão, Lisboa: Ática, 1980, p. 3.
Primeira publicação na Revista Portuguesa, nº 23-24, Lisboa: 13-10-1923.
— O que se deve entender por arte portuguesa? Concorda com este termo? Há arte verdadeiramente portuguesa?
— Por arte portuguesa deve entender-se uma arte de Portugal que nada tenha de português, por nem sequer imitar o estrangeiro. Ser português, no sentido decente da palavra, é ser europeu sem a má-criação de nacionalidade. Arte portuguesa será aquela em que a Europa — entendendo por Europa principalmente a Grécia antiga e o universo inteiro — se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações — a Grécia passada e Portugal futuro — receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras. Chamo a sua atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa e Atenas estão quase na mesma latitude.
— O regionalismo na literatura e na pintura?
— O regionalismo é uma degeneração gordurosa do nacionalismo, e o nacionalismo também. E como o nacionalismo é antiportuguês (sendo bom, cá no Sul, só para os povos latinos e ibéricos), o regionalismo em Portugal é uma doença do que não há. Amar a nossa terra não é gostar do nosso quintal. E isto de quintal também tem interpretações. O meu quintal em Lisboa está ao mesmo tempo em Lisboa, em Portugal e na Europa. O bom regionalismo é amá-lo por ele estar na Europa. Mas quando chego a este regionalismo, sou já português, e já não penso no meu quintal. (O facto de o meu quintal ser inteiramente metafórico não diminui a verdade de tudo isto: Deus, e o próprio universo, são metáforas também.)
— Teriam existido em toda a nossa história literária períodos de criação?
— O nosso único período de criação foi dedicado a criar um mundo. Não tivemos tempo para pensar nisso. O próprio Camões não foi mais que o que esqueceu fazer. Os Lusíadas é grande, mas nunca se escreveu a valer. Literariamente, o passado de Portugal está no futuro. O Infante, Albuquerque e os outros semideuses da nossa glória esperam ainda o seu cantor. Este poderá não falar deles; basta que os valha em seu canto, e falará deles. Camões estava muito perto para poder sonhá-los. Nas faldas do Himalaia o Himalaia é só as faldas do Himalaia. É na distância, ou na memória, ou na imaginação que o Himalaia é da sua altura, ou talvez um pouco mais alto. Há só um período de criação na nossa história literária: não chegou ainda.
— Continuará sendo o lirismo a nossa feição literária predominante?
— Há duas feições literárias — a épica e a dramática. O lirismo é a incapacidade comovida de ter qualquer delas. O que é ser lírico? É cantar as emoções que se têm. Ora cantar as emoções que se têm faz-se até sem cantar. O que custa é cantar as emoções que se não têm. Sentir profundamente o que se não sente é a flâmula de almirante da inspiração. O poeta dramático faz isto directamente; o poeta épico fá-lo indirectamente, sentindo o conjunto da obra mais que as partes dela, isto é, sentindo exactamente aquele elemento da obra de que não pode haver emoção nenhuma pessoal, porque é abstracto e por isso impessoal. Fomos esboçadamente épicos. Seremos inviolavelmente dramáticos. Fomos líricos quando não fomos nada. O lirismo só continuará sendo a nossa feição predominante se não formos capazes de ter feição predominante.
— O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?
— O Quinto Império. O futuro de Portugal — que não calculo mas sei — está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamo. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeismo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.
13-10-1923
Fernando Pessoa
In Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, Fernando Pessoa, recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão, introdução e organização de Joel Serrão, Lisboa: Ática, 1980, p. 3.
Primeira publicação na Revista Portuguesa, nº 23-24, Lisboa: 13-10-1923.
22 comentários:
Olhem! O que é isto? Ah, uma caixa de comentários...
Por uma vez estamos de acordo...
Quando é se percebe de vez que ser português não é ser apenas nem sobretudo português mas ser tudo e que essa é a mensagem fundamental de Pessoa e Agostinho da Silva?
A verdadeira lusofonia deve beber do melhor de todas as fontes do planeta e do Universo: seja na Noruega, no Butão, no Ruanda, nas Ilhas Faroe ou em Marte!
Dispam-se de provincianismo bacoco, ó pseudo-patriotas!
Portugal não é o salazarento Portugal dos Pequeninos!
Poupe-me.
Não me envolva nas suas alucinações preconceituosas das centenas de pessoas, diversas, que estão no MIL, e de boa vontade. Aqui não há nacionalismo, excepto na sua cabeça.
Apenas me referia ao comentário injusto de que, a meu ver, foi alvo por ter feito um post com uma banda nórdica. Agora se prefere ser preconceituosa, tudo bem. Neste blogue só há, desde início, os que estão contra e a favor, os nossos e os outros. Infantilidades.
Pelo que vejo, não está à altura do que citou em Pessoa.
Vou passar a ignorá-lo, há mais portugalidade num gato, e mais tino.
Mais verdade, menos manipulação e menos "jogo de cintura" também, tudo o que é ágil dispensa a baixa retórica e os seus artifícios.
... E a Emilie Autumn não é nórdica é norte-americana, e ainda tem sangue latino.
No fundo você nem se refere a nada apenas denuncia, de um modo claramente pulsional, o desejo de denegrir este espaço e o MIL. Mas todos nós quando aderimos lêmos uma Declaração de Princípios e um Manifesto, com os quais nos continuamos a identificar, o que não é o seu caso, por isso saiu. Não digo mais, está tudo dito.
Na verdade confundi-a com a Mariazinha e com o comentário injusto que lhe foi feito, ao qual pensei que estava a reagir com este post.
Quanto ao resto, eu já a ignoro e à mentalidade medíocre que mina este blogue e insulta a memória dos que supostamente o inspiram. Nunca Portugal esteve tão mal servido como por este patrioteirismo bacoco.
Este espaço é da "Nova Águia", que deixou de ter qualquer relação com o MIL. A sujidade é que continua.
O meu video também foi atacado, o que já é habitual, acontece a quem está inscrito no Bar do Ossian e estamos habituadas, até nos diverte... Eu não me sinto suja, e estou bem acompanhada.
Good cop/bad cop.
"Este espaço é da "Nova Águia", que deixou de ter qualquer relação com o MIL. A sujidade é que continua."
Talvez, e por imposição da sua direção (algo que não discuto porque não faço parte da mesma)
Mas as pessoas do MIL têm o mesmo direito de sempre a expressarem-se aqui - nessa qualidade ou noutra - desde que se mantenham nos limites da civilidade mais básica.
Coisa que infelizmente nem sempre tem acontecido como é o caso destes exemplos:
"provincianismo bacoco, ó pseudo-patriotas!"
"Infantilidades"
"não está à altura do que citou em Pessoa."
estes argumentos não enriquecem a discussão, são ad hominem, não contribuem para o esclarecimento de nenhuma posição e pelo seu teor diminuem a imagem pública de uma das pessoas mais cultas que conheço e conhecerei.
Temos opiniões diversas, decerto.
mas não é necessário caminhar sempre na via do insulto e da agressão, parece-me a mim...
De qualquer modo, o MIL não é regionalista, mas municipalista:
"V – Regenerar a democracia em Portugal, reformando o estado segundo modelos que fomentem a ampla participação política da sociedade civil. Recuperar a tradição municipalista portuguesa, promover uma regionalização e descentralização administrativa equilibradas, assegurando mecanismos de prevenção e controlo dos caciquismos locais."
http://movimentolusofono.wordpress.com/declaracao-de-principios-e-objectivos/
Clavis, há um princípio fundamental que é adequarmo-nos ao tipo de pessoas com quem lidamos. Já tentei outras vias. Agora assumo que luto com as mesmas armas e falo a única linguagem que certa gente aqui entende.
E no fundo sou budista e filósofo, mas sempre punk-rocker... Nada a fazer.
Não o ofendi! Ganhe juízo.
O tipo de pessoas? De onde me conhece? Você não passa de um menino...
Porque enfia tão facilmente o barrete? Acha que falava especificamente de si? Desvantagens do egocentrismo.
Enfio o barrete? Você não é só malcriado, tem um ego do tamanho de uma abóbora, podre. Mas realmente não fala para ninguém porque não sai do seu monólogo. Divirta-se, acho que estas caixas suportam 300 comentários...
E eu dispenso futuros comentários seus, já que não fala para mim. Seja coerente.
Caixa fechada. Tenho mais que fazer do que ser insultada e perder tempo com intrigas de blogues.
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