Por causa do AAG News, mas para todos.
Nada tem de estranho o gótico português - porque são hispânicos os portugueses e foram os hispânicos que deram ao gótico europeu os passos para a sua forma primeira. Nesta fotografia trago-vos o túmulo português de Gabriel Ponce de Leon de Alvarez y Toledo Fernandez de Aragon de Lancastre y Cardenas Manrique, duque de Aveiro em Portugal e marquês de Arcos em Espanha, em sua vida primo de reis e dos grandes da terra, em sua morte igual a eles e a nós: ashes to ashes, dust to dust. Se olharem com atenção verão uma caveira coroada no centro do túmulo; ao fundo, sob as armas de Portugal em pleno assentes em outras duas caveiras que nos olham sem sabermos se vêem, podemos distinguir uma foice e uma espada - e nesta, dependurada, uma discreta ampulheta por quem a areia e o tempo não passarão nunca mais. É um túmulo português, e nele e por ele fala a vida, pela forma serena da pedra: a todos os mortos, paz.
Não teve filhos este Gabriel de Lancastre; o ducado de Aveiro foi herdado por um primo afastado que talvez tenha recordado a inconstância do mundo e o silencioso aviso desta tumba no momento em que subiu ao cadafalso às mãos do Marquês de Pombal, que com góticos nada quis e por isso tem hoje estátua grande em Lisboa. Mas isso são histórias dos homens, e dessas histórias nada agora trarei aqui.
Disse que o Gótico nasceu na Hispânia. Sim, foi aqui que pela primeira vez um rei - era Filipe II, o ausente de Alcácer-Quibir - assinou uma carta com as palavras "Yo, la Muerte"; foi aqui que a corte austera de Carlos V, seu pai, levou às últimas consequências o majestoso negro integral das vestes de luto e revolta do duque Filipe da Borgonha "o Bom", o marido de Isabel-a-portuguesa, filha de dom João I o de Aljubarrota. Mas foi principalmente aqui que a meditação cristã sobre o mistério da morte do Justo levou os homens a não olhar apenas para o Homem, mas para a Morte que o acompanha.
Olhar a Morte, queria dizer desde há muito tempo meditar sobre a inutilidade e fragilidade da vida-de-todos diante dos mistérios da morte. Não terão sido os hispânicos os primeiros a fazê-lo, nem sequer os cristãos. Mas do cristianianismo veio, pela primeira vez, a ideia de que a morte podia ser injusta. Essa ideia não ocorreu a nenhum romano, a nenhum grego, a nenhum pagão. "Este homem estava inocente": que outros, que não os cristãos e os seus avós judeus, poderiam ter feito uma frase assim? E ao mesmo tempo que La Santa Inquisición velava pela consciência dos vivos, nasceu nas Espanhas uma quase-heresia que foi passando despercebida, porque era quase silenciosa: não olhes para a vida-de-aquém nem para a além-vida, olha de frente a Morte e aguarda.
A meditação sobre a morte era, claro, para os cristãos, uma ocasião para a meditação que verdadeiramente lhes interessava: a meditação sobre a além-vida, sobre os "caminhos da salvação", era mesmo às vezes a astuciosa e inútil tentativa de negociar a tempo com Deus uma vida eterna que não fosse igual para todos. A morte em si era às vezes só um pretexto. Mas não podemos (Blessed be, oh Death!) meditar junto à Morte e aos seus filhos como se ela fosse apenas uma passagem. Ela é o rosto magnífico da Noite, e a Noite também a sabiam os bardos.
As razões para as coisas se transformarem noutras coisas são sempre difíceis de seguir, e resumi-las é impossível. Direi só que na história da arte europeia, algures entre 1550 e 1700, a Morte passou a ser uma coisa para onde se olhava, em vez de ser só uma coisa por causa da qual se olhava. Nessa época, devagarinho, a alta poesia descobriu a Noite (procurem a Noite em Camões, e não a encontrarão ainda. Melancolia e ribeiros e enamoramentos e solidão, sim - mas para a Noite era ainda cedo, cedo demais).
Saberemos um dia dizer porquê? Coisas que tinham nascido na Hispânia condensam-se depois (Blessed be, oh Labyrinth!) em Inglaterra, antes de qualquer outro lugar. Talvez porque aí, com as guerras religiosas e a vitória de Cromwell-o-Puro, as grandes abadias e mosteiros católicos foram abandonados e se tornaram ruínas. Talvez os descendentes dos celtas tenham sentido confusamente que as ruínas católicas eram afinal irmãs das mais antigas pedras sagradas. Talvez porque a língua inglesa parece especialmente feita, misteriosamente feita, para a linguagem mágica do poder (Blessed be, oh Mask!). Que sabemos nós, quem nos dirá.
Escutem:
"Ha! while I gaze, pale Cynthia fades,
The bursting earth unveils the shades!
All slow, and wan, and wrapp'd with shrouds
They rise in visionary crowds,
And all with sober accent cry,
"Think, mortal, what it is to die."
Now from yon black and fun'ral yew,
That bathes the charnel-house with dew,
Methinks I hear a voice begin;
(Ye ravens, cease your croaking din;
Ye tolling clocks, no time resound
O'er the long lake and midnight ground)
It sends a peal of hollow groans,
Thus speaking from among the bones."
(Thomas Parnell, excerto de A Night-Piece on Death, cerca de 1722, e com isto o gótico foi concebido. Amor dos homens pela amante Morte: Blessed by thy womb, without which we would not be.)
O resto da história é muito simples. A noite inglesa levou à fascinação das ruínas, e a um especial gosto pelas coisas "bárbaras" ("gothickes", diziam na altura os que gostavam mais de Versalhes e dos seus espelhinhos dourados). Em Inglaterra a Idade Média não tinha, como em Itália e, por causa da Itália, como na França (e até certo ponto em Espanha e Portugal) acabado desprezada e insultada em nome da Antiguidade grega e romana e em nome dos cépticos-filósofos que nos deram as delícias de 1789. E talvez por isso, a partir de 1764 (publicação do "Castle of Otranto", de Horace Walpole), surgem as "gothick tales", que eram essencialmente histórias passadas numa confusa época bárbara, onde os fantasmas e os demónios podiam livremente ter voz.
A linha das "gothick tales" deu-nos a nós a palavra "gótico", mas não passa por aí a sua genealogia nocturna. Os heróis das "gothick tales" não são o fantasma, mas o inimigo do fantasma. Como o Orfeu dos Gregos: descer ao Inferno para voltar à luz.
Só mais tarde é que aconteceu a fusão das duas tradições, a da Noite, que se expressava em poemas, e a da estranheza, que se expressava em prosa. Chamamos Romantismo ao momento em que elas se juntaram (ou passaram a poder juntar-se), mas isso é já uma outra história.
Para os góticos o essencial manteve-se na poesia. É Bocage, e não o Almeida Garrett ou o Júlio Dinis, o seu primeiro antepassado português:
Já sobre o coche de ébano estrelado
Deu meio giro a noite escura e feia;
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!
Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
O Tejo adormeceu na lisa areia;
Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, às trevas costumado:
Só eu velo, só eu, pedindo à sorte
Que o fio, com que está minh'alma presa
À vil matéria lânguida, me corte:
Consola-me este horror, esta tristeza;
Porque a meus olhos se afigura a morte
No silêncio total da Natureza.
"Consola-me este horror". Que mais é preciso dizer? Sim, tomba a capa do viajante e desfaz-se só em pó e cinzas. Ashes to ashes, dust to dust. Anda o gótico sozinho, e sozinho descobre que anda ainda inteiro: sob as quinas e as paixões, a foice.
5 comentários:
Um dos posts mais interessantes e didácticos dos últimos tempos.
Abraço.
*
interessante e didáctico
Excelente!
(à espera da segunda parte...)
Beijo*
É preciso ser culto. Não vão perceber.
Beijinhos.
:)
Tive o prazer de republicar, sem as alterações, este texto ha pouco tempo. Ha muito tempo espero pela segunda parte.
Abraço.
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