“Um mal nunca vem só! Mais vale só que mal acompanhado”! A sabedoria popular se é desprovida de esperança não deixa de ser certeira. Não que a frequência das companhias andasse mal classificada na tabela periódica dos elementos criativos, mas… Fosse pelo excesso de trabalho e solicitações, fosse pelo infortúnio das maleitas oportunistas, o espírito criativo do escriba andou arredio, ausente e alheado como notas da carteira em tempo de crise. “O homem é um animal de hábitos”. Não querendo entrar em discussões estéreis ou classificações Darwinistas, não vesti o hábito do monge, mas fiz-me à estrada em busca da escrita perdida, na companhia do apoio e do carinho do público e, como alguém disse: Se penso, logo insisto, à força de muito pensar e mais insistir, lá consegui esmiuçar a neurologia do neurónio parasita e arrebanhar umas quantas palavras e trazê-las para o curral do texto…Foi logo a seguir ao último cruzamento entre a História e a Civilização, já os dinossauros tinham recolhido aos compêndios de ciências naturais, que José Gonçalves, à força de muitas flexões do estômago à hora da refeição, abraçara as teorias Marxistas. Levando atrasos de comboio regional para juntar duas letras da dimensão duma junta de bois, achava, contudo, que a justiça só punha palas na manta verde e retalhada de aridez endémica no terreno sinuoso de Castelo Branco e, apesar das intermitências com que dedilhava o alfabeto, a ideia de justiça, igualdade, pão e trabalho para todos, fora cultura que germinara, sem esforço, no terreno ávido e fértil do seu cérebro. Após o despedimento pelo capataz depois do episódio do almoço condimentado a pedradas, não arranjara outro sustento melhor que uns vagos e dispersos biscates pastoreando umas cabras e limpando mato. Nas suas longas passeatas pelos pinhais fora recrutado por um finalista universitário para lhe guardar e distribuir panfletos subversivos de apelo à luta armada contra a ditadura. A princípio, atraído pelos símbolos do trabalho, a foice e o martelo e, mais tarde, pela conversa do estudante, acabara por se empenhar na guarda e distribuição dos panfletos. Ao certo, não sabia o que continham, mas sabia aferir da sua importância…Três dedos, assim alcunhado desde que, na festa em honra de Santo André das Tojeiras apanhara um foguete perdido e o mesmo lhe rebentara entre os joelhos, acabando com a serventia das partes pudibundas e destroçando-lhe dois dedos da mão direita, aliara a frustração ao desempenho activo e alarvemente zeloso da função de agente da P.I.D.E. Perseguia sem dó, ré, piedade ou outra inscrição de pauta, os “inimigos” do estado. Célebres tinham sido as suas investidas, com ajuda dos militares da GNR, na caça a perigosos subversivos vermelhos que tinham posto em cheque a segurança da Pátria. Certa ocasião, Sebastião Béu Béu, onomatopaico por baptismo e borracho pelas vicissitudes da vida, alegara ter visto o Armando do Lagar a caminhar sobre as águas do rio Ocresa…” Milagre”!! A notícia rastilhara célere e chegara aos ouvidos enfarinhados em serume do agente. “Que não! Não podia ser… Milagres só em Fátima com a bênção de sua excelência o Presidente do Conselho” (fazendo uma vénia reverencial), “se o povo começa a ver milagres fora da órbita do regime, ao invés de termos todos a ver para o mesmo lado, temos uma zarolhice subsversiva que põe em causa a argamassa sustentadora do regime: Deus Pátria e Família… Se não respeitam a família é como o outro... Estes burros só sabem pedir forragem na manjedoura, mas confrontar o milagre oficial sancionado pela Pátria... Isso é que não!” Sebastião andava sempre borracho e a visão fôra atribuída ao seu estado de embriaguês permanente, mas perante a insistência nas visões, Três dedos, num dia em que ele andava a regar umas leiras de terra num povoado distante, empurrara-o para dentro do poço… A explicação oficial dita em tom irónico era que “Deus escrevera por linhas tortas: o homem que andava sempre borracho acabara por morrer afogado… em água… “Deus estendera-lhe a mão e ajudara-o a lavar os pecados nas mesmas águas puras que batizaram São João Baptista…” Abriam-se-lhe as portas do céu para uma vida imaculada que não soubera levar em terra”… A explicação não convencera ninguém, muito menos o José Gonçalves... Três dedos, apenas por curiosidade mórbida, ainda se deslocara ao local indicado tendo, com a ajuda de uma vara, detectado um caminho de pedras bem no meio do rio… Milagre não era, decididamente! Quanto muito, algum comunista que ali plantara os seixos para escapulir à polícia ou para mangar com a fé cristã…
José Gonçalves tinha alguns animais de criação e uma cavalo tingido comprado nos ciganos chamado Russo, o bicho era má rês, arisco, agitado, não tolerava arreios ou cangote. Escouceava tudo e todos, bastas eram as vezes em que tinha que consertar o estábulo, não servia para trabalhar mas afeiçoara-se ao bicho e, entre eles, estabelecera-se uma cumplicidade de estado de espírito, ambos queriam ser livres. Limitava-se a dar-lhe comida, guarida no palheiro e a passeá-lo pelos matos. Tinham grandes diálogos, o cavalo já ouvira os postulados de Marx, Trotsky e outros teóricos, José Gonçalves discorrera sobre o paraíso na terra lá para as bandas de leste numa sociedade onde os homens não eram explorados pelos homens ou qualquer outro tipo de besta.
Três dedos, pressionado pelo chefe de brigada, queria encontrar, a todo o custo, os panfletos do partido comunista, não pela mensagem, pois aquela gente não sabia ler, mas porque lhe custava andarem a mangar com o estado e porque contava passar, ele próprio, a chefe de brigada se apanhasem o tipógrafo. Não fôra preciso muito para desembocar no encalço do José Gonçalves. Numa noite, acompanhado de dois cabos da guarda, batera-lhe à porta. À força de bastonadas vasculharam tudo em busca dos panfletos e de um tal Marx…”Que não o acobertassem porque era pior!” Perante o choro e a resposta atabalhoada da mulher de José Gonçalves, a ignorância, que aliada à maldade e ao poder constituem uma trilogia perigosa e violenta, só se saciou com a senhora prostrada no chão jurando por Deus e todos os cromos da santíssima trindade que o tal Marx pernoitara ali mas abalara há meia hora atrás…Não querendo aparecer de mãos a abanar, até porque não tinha dedos suficientes para contar até dez, levou-o para o posto da guarda onde deu continuidade à sessão de sevícias e tortura… O chefe de brigada, homem arguto e enfadado com ridicularias menores, decidira mandar soltar josé Gonçalves: “solto ele indica mais facilmente onde estão os panfletos, quiçá a tipografia, quiçá o tipógrafo...”José Gonçalves regressara a pé levando uma eternidade de via sacra, lenta e dolorosa, a chegar a casa, mas o tempo suficiente para arquitectar a resposta à altura da baixeza do infame três dedos…Alguns dias depois andava a guarda, esbaforida, revolvendo céus e terra em busca do Três dedos. O agente não mais fora visto desde a noite do interrogatório ao José Gonçalves, ninguém lhe pusera a vista ou outro órgão em cima…decidiram ir a casa do José...Nada… Ninguém… Silêncio absoluto, apenas o escoucear e relinchar do Russo… Arrombaram a porta, nem vivalma, nem sinais, verrugas ou cheiro do josé Gonçalves e da mulher... “Ai o madraço que preparou alguma! Vai ter muito que contar no Torel! Vasculharam tudo deixando para o fim o palheiro, ninguém se atrevia a chegar perto do Russo. O cabo decidu ir buscar a carabina ao carro...À mesma hora, José Gonçalves, ainda combalido, seguia com a mulher no carocha preto e discreto do tipógrafo rumo a Espanha, com um sorriso nos lábios...Bang! Bang! - Dois tiros para o ar e o Russo, assustado, rebentou com o que restava da porta e deitou a correr em direcção à liberdade do pinhal… De lanterna na mão, os polícias entraram, a medo, dentro do palheiro… A uma canto, completamente ensaguentado e marcado pelas ferraduras do Russo, jazia inanimado, o agente da P.I.D.E. junto a uma prensa artesanal, no meio de centenas de panfletos subversivos esvoaçando pela força da corrente de ar…
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