A força de cretcheu – a Força do Amor
Ca tem nada na es bida
Mas grande que amor
Se Deus ca tem medida
Amor inda é maior.
Maior que mar, que céu
Mas, entre tudo cretcheu
De meu inda é maior
Cretcheu más sabe,
É quel que é di meu
Ele é que é tchabe
Que abrim nha céu.
Cretcheu más sabe
É quel qui crem
Ai sim perdel
Morte dja bem
Ó força de chetcheu,
Que abrim nha asa em flôr
Dixam bá alcança céu
Pa'n bá odja Nôs Senhor
Pa'n bá pedil semente
De amor cuma ês di meu
Pa'n bem dá tudo djente
Pa tudo bá conché céu
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Tentame de transfusão:
Não há nada nesta vida
Maior que o amor
Se Deus não tem medida
O Amor ainda é maior
Maior que o mar, que o céu.
Mas, entre todos os amores,
O meu ainda é maior.
O amor mais saboroso,
É o meu.
Ele é a chave que me abre o céu.
O amor mais saboroso
É aquele que me quer…
Ai de mim, se o perder
A morte vem aí…
Ó força do amor
Abre as minhas asas em flor!
Deixa-me alcançar o céu
Para que eu vá ver o Nosso Senhor,
Para que eu lhe vá pedir a semente
Dum amor como o meu,
Para o bem de toda a gente,
Para que toda a gente conheça o céu!
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Esta a força da poesia: entranha-se no sangue vibrátil da alma que ainda não estiver morta e floresce além da vida da concretude chã, arboresce num clarão de autenticidade enebriadora e franqueia, aos olhos que ainda se deixam alucinar, os domínios hiperiónicos do Espírito, insubstancial sublimação da força vital em visão aneidética, essa cegueira de quem pode descobrir em si que o Ser não usa máscaras. O caminho para a casa de cada ser amado pode tornar-se numa estrada para Damasco, pelo que até amar a Deus pode acarretar o perigo da mais inclemente perdição.
Pode mascarrar-se com as cinzas das pulsões mais infernais, mas nunca mascarar-se, aquele que ama, aquele que se torna possuído do deus sublimante, o único a quem é dada a contemplação da beleza na sua imanifestação trans-judicativa, está para além de tudo o que é circunscriptível, na condição paradoxal de quem navega sempre na confluência das águas, na desorientação mais radical, na impossibilidade mais desafiadora.
E quando a poesia é semeada aos quatro ventos, como o exemplo desta morna que é um dos hinos mais acarinhados da alma cabo-verdiana, ela floresce num eflúvio de musicalidade que acompanha os homens pelos caminhos da vida e lhes dá uma identidade lancinante, profundamente fraterna e comungante.
Cabo Verde é dos países lusófonos o que mais se entregou à força destinal da poesia. Trata-se dum povo animado pelo vendaval da entrega à transcensão de todos os condicionamentos extrínsecos, um povo que faz da rebeldia a mais perfeita forma de conformismo, um povo que não reza de joelhos, antes se eleva no espaço dançável incendiado pela febre báquica das batucaderas e dali conquista todos os Olimpos que houver. Os pequeninos fautores de providencialismos de desgraça nunca encontraram por ali chão que os acolhesse.
O movimento claridoso põe a claro a solidez axiomática desta verdade antropológica: a força oceânica da poesia anima o coração dos filhos da mitologia hesperitana, dando-lhes uma consciência crónica agudizada pela absolução do espaço insularizado a partir do qual se torna vivenciável a experiência da diáspora enquanto patência do exílio. O coração do natural das Ilhas Afortunadas não se deixa dilacerar por um desejo regressivo a um tempo transcorrido, porque sabe que a espacialidade arquetípica das Ilhas não sofre corrupção temporal, é o tempo que é moldado pelo espaço, a espacialidade subordina aos seus ritmos, a um tempo telúricos e neptunianos, a temporalidade e esta esgota-se a si própria deixando incólume a influência da geografia mítica sobre a história espectral dos quase-mortos que se deixam enredar nas teias da eudemonia materialista que varre o sonho do mundo e se entranha no coração dos que não acreditam na possessão do deus a que nem mesmo o Adamastor pôde resistir.
Esta espacialização do Espírito contraria a redução da mente à temporalidade operada pela filosofia ocidental moderna e dá à Saudade um cunho muito cabo-verdiano, uma vez que a Saudade cabo-verdiana não se enreda no tempo. É trans-temporal e não conhece futuro ou passado, apenas liberdade e servidão. É este binómio que marca a relação do homem com o cosmos, tal como está bem patente nos versos, colhidos da cultura popular, que abrem o romance Chiquinho de Baltazar Lopes:
“Corpo, qu’ê nego, sa ta bái;
Coraçom, qu’ê forro, sa ta fica…
(O corpo, que é escravo, vai;
O coração, que é livre, fica…)”.
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