ABREU, Pio J. L., Como tornar-se doente mental, Publicações D. Quixote, 2007.
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Sem querer entrar no tema labiríntico da afirmação da psiquiatria como ciência normativa respeitante ao comportamento humano, com a reacção, de dentro das filosofias da suspeita, da anti-psiquiatria, este livro dá-nos o pretexto para enfrentarmos o paradoxo de, em termos mentais, a sanidade e a insanidade parecerem indissociáveis e especulares, duas faces da apropriação de si que se distinguiriam pelo grau de exuberância dos sintomas. O que é encarado com toda a normalidade quando ocorre de forma episódica e natural, torna-se patológico quando reiterado e repetido sem necessidade. O patológico é imotivado dentro dos quadros da racionalidade e da causalidade física e mental que garantem a solidez da personalidade e a coerência da identidade pessoal que lhe serve de esteio.
A mente não será sã nem demente. Estar num ou noutro estado pode ser o resultado duma prática, um constructo da psique, enredada nas malhas dos seus desejos e das suas frustrações, atraída pela deliquescência dos quadros de referência pelo apelo irresistível da deriva metafórica inerente à apercepção diferenciadora. Cair no poço sem fundo da racionalidade judicativa e, aí, no âmago do pensável e do representável, ser atraído pelo vórtice da imotivação, da desrazão, no caos em relação ao qual a Razão se quer pura, ver que os dados da percepção sensível nos jogam e nesse jogo nos tornamos capazes de crença e de problematização, essa, também, um sintoma punjente, se for alimentada por uma curiosidade insaciável, que a si própria se alimenta…
A Filosofia como Loucura que a si própria se aprisiona em jaulas de espanto, como nos jardins dos loucos que surgiram um pouco por toda a Europa iluminista. O inumano que desponta de dentro da vida que se racionaliza, se explica e, explicando-se, se expele do pulsar imotivado que, no fundo, é o que anima todo o vivente, ser sem razão, sem razão de ser, sem razão para ser, ser em comunicação nevrálgica com o magma inapropriável a que a metafísica ocidental chamou Natureza, esse regime ante-paradisíaco que dispensava o agatismo e a normatividade.
Loucos em potência ou impotentes para o assumirmos? Que diafragma nos preserva da imersão nas águas plúmbeas da intimidade largada de si, transbordante, precipitada nos abismos cavernosos do esquecimento palpitante do animal que somos? Como os insectos que surgem das nossas tendências larvares não se tornam num enxame capaz de deglutir de vez o mundo, suspenso e sempre em risco de rasura, que nos habita, tentacularmente, película fantasmática e húmida, os recantos mais plissados do cérebro?
Uma pancada no crânio, um acidente de percurso no aparente continuum da vida auto-consciente, e a o fantasma que habita a máquina pode desfigurar-se, ou mesmo evadir-se para nunca mais voltar. Mais interessante é a hipótese do processo poder ocorrer sem traumatismo, de forma voluntária, em resultado dum treino. Talvez seja isso que a sociedade faz ao criar dispositivos de conformação social como a escola. Para não falar doutras instituições mais óbvias de policiamento da mente e de normalização dos costumes.
Talvez seja verdade que os alunos mais problemáticos sejam os que tentam sair da bolha de auto-comiseração e de servilismo em que se transformou a vida humana, a vida falável e arregimentável, a vida saneável e aprovável, com papéis passados e tudo, garantias de conformidade e de excelência, sem excedência em muitos casos. A alma humana, toda feita em papéis, impressa, carimbada, selada, matriculada, pagadora de propinas e de promessas, tributável e arquivável, digitaliza-se, alcança a imaterialidade que outrora pareceu ser uma prerrogativa que lhe garantiria a imortalidade e que hoje a torna sujeita ao apagão, à corrupção das superfícies magnetizáveis, à futura obsolência dos dispositivos de registo.
Ter a biografia anichada no micro-chip dum cartão de plástico, daqui a nada implantado sob a pele, poder ser localizável em todas as circunstâncias, atingir a visibilidade absoluta, a mesma que garantirá o anonimato e a futilidade da diferenciação existencial, se daí se soltarem raízes que se entrelacem exuberantemente na rede neural do sistema nervoso, isso será a impossibilitação da loucura auto-imposta, conquistada com o afinco dos obsessivos e dos mais tenazes.
Mas talvez seja melhor aproveitar enquanto a porta para o espaço incivilizado do manicómio está aberta. Este livro é um bom guia. Basta que foi escrito por um psiquiatra.
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