Como vimos (where before?) , a Europa, do ponto de vista da sua civilização, divide-se em três grupos. Vimos que o fenómeno religioso, por ser expressor do que é supremamente real em um povo ou em uma civilização é que determina a formação dos grupos civilizacionais ou, antes, que exprime a formação desses grupos.
A Europa divide-se em três grupos desses. O primeiro é o grupo onde coexistem duas fórmulas religiosas: o cristismo e o paganismo (?) nórdico. Esse grupo abrange a Inglaterra, a Alemanha, e os países escandinavos. Representa-o, adentro do sistema cristista, a forma chamada protestantismo.
O segundo grupo é neolatino, composto da França e da Itália, assim como de algumas nações secundárias qual a Roménia, e algumas pseudo-nações, como a Bélgica e a Suíça (em parte pelo menos). Esse grupo é representado pelo sistema católico tradicional.
O terceiro grupo é o ibérico, composto das três nações reais, e duas políticas, de que a nossa península é formada. Justapõem-se aqui duas religiões, o cristismo e o maometanismo. Não importa que, ao contrário de no caso nórdico, aqui fosse o cristismo o fenómeno primitivo; o facto é que a fusão se deu. Resultou um tipo de fé que, nada tendo com o protestantismo, também não é o catolicismo tradicional. Decaída a civilização árabe, que foi notável, posto que breve, caiu o que tinha de superior, que era o seu espírito científico, pelo qual transmitiu ao mundo moderno parte do objectivismo grego, que Roma nunca aproveitara. De aí, além de na Europa o princípio de um renascimento, na Ibéria, e mormente em Portugal, um traço científico que orientou as Descobertas. Mas, decaído o arabismo, ficou a parte inferior dele — o fanatismo religioso. Esse, que tinha facilidade demais para entrar para o cristianismo, deu uma das formas crististas mais desoladoramente antipáticas que tem havido — este catolicismo de selvagens da nossa península, esta fé que havia de produzir a Inquisição, esses circenses do povo ibérico. Na parte inarabizada da Península, o Norte, o cristismo fanático dos inquisidores nunca pegou.
1917?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Fernando Pessoa, textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa: Ática, 1996, pag. 256.
3 comentários:
Por acaso conhecia este texto, mas não me lembrava de pormenores. É muito curioso, por exemplo, que de facto a Norte de Coimbra a Inquisição apenas tenha procedido a um ou dois autos de fé (e no período da dominação espanhola), e que não se tenha estabelecido em Braga, cidade cujo senhor era o Arcebispo.
Eu diria que hoje, após mais oitenta anos de investigação histórica, se conclui que a "fractura" entre os Portugais do Norte e do Sul é mais intensa do que se pensava (ver um notável trabalho do historiador José Mattoso, "Identificação de um País") e que, talvez contra as expectativas de grande parte dos intelectuais do séc. XIX, a "desarabização" do catolicismo português correu bem.
Também deve ser por as populações de "infiéis" estarem a sul mas deve ser mais... O paganismo permaneceu mais vivo a norte onde não foi "varrido" tanto.
Prisciliano... E ler Moisés Espírito Santo.
sim... um paganismo muito conciliado com o cristianismo católico e o seu culto dos santos, mais o fechar de olhos às "bruxas" ou "meigas" da Galiza.
Mas a Inquisição perseguia (ou inventava) essencialmente judaizantes e sodomitas... são muito poucos (e tardios, séc. XVII bem avançado) os casos de acusação de bruxaria. E em tudo estava subjacente um jogo de poder.
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