Vede o que estamos sendo! Vede os homens que deitámos! Vede o país que fizemos e a sociedade que constituímos!
Principiamos por desconhecer a nossa missão na humanidade. A família enfraquece por toda a parte. O hospício dos expostos em Lisboa contava no primeiro dia do corrente mês de Outubro 15099 crianças repudiadas por seus pais. A roda dos expostos joga com outra roda na administração do país – a roda da lotaria. A lotaria sustenta a Misericórdia. O jogo protege a prostituição. A tavolagem adopta o bordel. E a mancebia abjecta da batota e do prostíbulo abençoada pelo Estado e acarinhada pelo país.
E nós vivemos nisto, nesta repulsiva podridão, complacentes, descuidados, felizes, dando a todo o mundo moral o espectáculo da maior degradação e da maior baixeza em que poder cair uma sociedade.
Na ciência, na literatura e na arte estamos estacados, imitando servilmente as obras de nossos pais, atestando a ignorância mais flagrante, esterilizados nas nossas faculdades inventivas, narcotizados pelo tabaco de que abusamos como nenhum outro país da Europa, sem uma ideia elevada, sem um pensamento generoso, sem uma voz, sem um grito, sem um gesto que penetre, esclareça e vibre este velho mundo devasso e tonto.
Na política a nossa história actual é a abdicação por inépcia de todos os foros e de todas as franquias de liberdade conquistadas pela geração que nos precedeu. Vede a representação nacional. 0 nosso parlamento tem muitos defeitos, mas todos eles procedem de um vício capital, irremediável, sem cura – a incapacidade intelectual para compreender o maquinismo do mundo moderno, perceber a lei das novas evoluções sociais, e debater com perfeito conhecimento do sistema da universalidade moral que nos governa os altos interesses do tempo a que pertencemos. Com menos eloquência, com menos ardor, com menos fé que em 1836 os actuais deputados da nação vivem ainda a equilibrar as velhas dúvidas pulverulentas e desengonçadas do estabelecimento do sistema parlamentar. No entanto no resto do mundo os acontecimentos científicos, sociais e políticos precipitam-se vertiginosamente , criando transformações que os antigos tempos não viam senão de uma gestação de séculos. Dentro de poucos anos a Itália unifica-se; a coroa de Roma cai da fronte do Papa; os Bourbons são expulsos da Espanha; os Bonapartes fogem da França; constitui-se o império alemão; a América emancipa os seus escravos; a Europa perfura o Monte Cenis e abre o canal de Suez; em Paris estala a revolução social que no primeiro dos seus relâmpagos abre um abismo de sangue; a classe operária agita-se por toda a parte, e o murmúrio, profundo como o do Oceano, que ela está fazendo na sombra, abala a confiança que tinha em si a propriedade e o capital, e obriga as classes médias, em cujo poder jaziam desde a revolução francesa os destinos da civilização, a lembrarem-se de que a realeza, o clero e a aristocracia tiveram sobre o mundo antigo, assim como a burguesia sobre o mundo moderno, o seu tempo de domínio; que uma lei histórica lhes arrancou o poder num momento, e que a hora do presente regime pode soar amanhã, assim como sucessivamente soou, irrevogável e fatal, a de cada um dos domínios que têm senhoreado a humanidade. Isto pondera-se, medita-se, discute-se em todos os parlamentos. Em Portugal sana-se a questão apagando as luzes e fechando à chave a sala das conferências democráticas. Têm os políticos portugueses alguma leve notícia do que se está passando no mundo? Ignoramo-lo. Os partidos avançados o que querem? Novas liberdades em uma Carta reformada e a máxima descentralização nos diferentes ramos da administração pública. Ora enquanto à liberdade está-se provando em cada dia que nem da que possuímos temos aprendido a usar. Enquanto à descentralização a civilização portuguesa pararia no dia em que a votassem. Quereis uma prova? Há distritos em que o número das escolas tem duplicado nos últimos anos; pois bem: o número dos alunos é igual ao do tempo em que as escolas eram de metade!
A verdade é que a civilização, bem como a liberdade, se não decreta. Só há um único meio de a alcançar: é merecê-la.
Há muito tempo que os governos portugueses, todos bem intencionados e honestos, longe de resistências, não encontram senão dedicações no espírito público; e não obstante vão caindo todos sucessiva e rapidamente. Sabeis por que caem? Caem simplesmente pela ignorância. E câmaras e câmaras sucessivas, tiradas de todas as condições e de todas as hierarquias sociais, não dão de si um grupo de homens com a capacidade intelectual precisa para firmar o poder.
Possam os nossos filhos reclamar a felicidade a que seus pais não têm direito, apresentando-se ao futuro com merecimentos que nós não podemos invocar! Suspensão de veemências e de ironias! Trata-se da infância. Não nos dirigimos aos políticos. Conversamos honrada e sinceramente contigo, leitor amigo, e contigo, leitora honesta; descansamos por uns momentos no chão as nossas armas para vos estendermos a mão.
Pesa sobre vós uma responsabilidade tremenda. No estado em que se acha a sociedade portuguesa a família é um duplo refúgio – do coração e do espírito.
A família é dos pouquíssimos meios pelos quais ainda é lícito em Portugal a um homem honrado influir para o bem no destino do seu século.
Querido leitor! o modo mais eficaz de seres útil à tua pátria é educares teu filho. Consagra-te a ele. A educação pública é uma burla atrozmente vergonhosa. Não lhe entregues a criança que o destino te confiou. Educa-o tu. Se não souberes mais, procura pelo menos torná-lo forte, ensina-lhe a ler e a escrever, dá-lhe um ofício e fá-lo um homem de bem; ele de si mesmo se fará um sábio, se tiver de o ser. A ignorância tem isso de bom: que se desfaz aprendendo. A falsa instrução tem esta perfídia: não dá o ensino e inibe de o tomar.
Ramalho Ortigão, in As Farpas, Tomo VIII, 1871
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