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Na imprensa do fim-de-semana que passou, destaca-se uma entrevista do Público a Tariq Ramadan, publicada na edição de ontem, 24/05/09, de que destaco aqui o seguinte excerto:
Público - Portugal quer diminuir as quotas da imigração. Resulta da ideia de que desglobalizar é responder à crise?
T.R.: Estamos a enfrentar uma crise global, mas antes já tínhamos uma política de imigração toda baseada na segurança. Estive em 40 a 50 conferências europeias e sempre que falamos de imigração falamos de segurança. As pessoas defendem um mercado livre quando se trata de dinheiro e um mercado de segurança quando em estão em causa seres humanos.
Mas parece haver um endurecimento quase generalizado nas políticas de combate à imigração ilegal. A Itália criminaliza e expulsa, Espanha quer repatriar.
Sim, a crise global ajuda alguns governos a assumir um certo discurso. Sabem que terão apoio porque as pessoas estão assustadas. E isso está a acontecer com todos, à direita, à esquerda. Mas na União Europeia, dizem-nos os números, nos próximos 20 anos vamos precisar de 15 a 20 milhões de trabalhadores ou a economia não sobreviverá. Temos uma necessidade económica e uma resistência cultural. Tratamo-los de uma forma que não é aceitável, mas sabemos que vamos precisar deles. Temos campos em Itália, França, Espanha. As pessoas estão a ser tratadas de forma inaceitável, como animais, lamento dizê-lo. E depois falamos de direitos humanos, de respeito pelas pessoas, do Estado de direito. Temos de ser consistentes com o que dizemos.
Público - O exemplo italiano, de grande endurecimento nas polícias de imigrantes, vai cruzar fronteiras?
T.R.: É representativo do que está a acontecer no resto da Europa, que não resulta da subida dos partidos de extrema-direita, mas da normalização do seu discurso. Está por todo o lado. Geert Wilders, na Holanda, deixou o Partido Liberal dizendo que não eram suficientemente duros nas políticas de imigração e agora está a tornar-se no mais votado. Berlusconi juntou-se aos ex-fascistas que se estão a tornar mainstream. E vemos as mudanças de Zapatero, que era um exemplo. A forma como ele se aproxima das políticas de Sarkozy, que foi eleito por adoptar algumas declarações da extrema-direita. Está a acontecer em todo o lado. E eu digo aos europeus, aos meus concidadãos, não pensem que isto é uma ameaça para muçulmanos e africanos. É uma ameaça para os europeus. Vamos pagar o preço, porque quando é tudo sobre segurança, trata-se da nossa própria liberdade. Agora, que temos esta resistência transnacional e transpartidária à imigração, gostaria que tivéssemos o movimento oposto, que pessoas de diferentes contextos se juntassem para contrariar esse discurso. É a isso que eu chamo o novo "nós", pessoas dispostas a trabalhar juntas, independentemente de partidos, religiões e origens.
Público - E os muçulmanos europeus estão a participar nesse movimento de reconstrução do paradigma?
T.R.: Não o suficiente, mas começam. A [última] sondagem da Gallup mostra que a maioria dos muçulmanos se sente mais europeia, até mais do que os britânicos ou alemães não muçulmanos. Estão a tornar-se mais leais aos seus países, mas sentem que a percepção geral é que "somos nós contra eles", como eu senti aqui. A percepção que os muçulmanos têm na Europa é de que não são bem-vindos, não são vistos como europeus. O que digo é que o islão é uma religião europeia e que precisamos de cidadãos mais envolvidos. Eu próprio fico surpreendido com a ressonância generalizada das coisas que digo há 20 anos. A todo lado que vou vejo muçulmanos, em especial mulheres, a dizer: "Estamos aqui para mudar, para fazer coisas." Vai ser difícil, mas está a acontecer. É um ciclo vicioso. Muitos jovens dizem-me: "Você é europeu há 20 anos e veja como o tratam, o discurso duplo, sem confiança." Peço-lhes paciência. Eu falo de uma revolução silenciosa, vejo que as coisas mudam a nível local, no meu trabalho. Mas até que a presença dos muçulmanos seja normalizada serão precisos 40 anos.
E o que devem os muçulmanos fazer?
É preciso apostar numa educação mais inclusiva, sobre a nossa história comum, a nossa memória conjunta. E quero ver-me livre da mentalidade de vítima, por isto estou sempre a dizer aos muçulmanos que estão entre os três L e os sete C. Têm de lidar com a língua do país, a lei do país e a lealdade. Língua, lei e lealdade. Isto é imperativo, mas têm sete C à sua disposição: confiança, têm de ser confiantes; em segundo lugar, consistentes com os seus valores; precisam de comunicar com os outros; contribuir, que é já para lá da integração, é preciso dar algo à sociedade; o quinto C é usar a criatividade; o sexto é contestação, devem ser leais mas críticos, às vezes a lealdade é contestar decisões; e o último é compaixão, empatia intelectual, para perceber de onde é que o outro vem, porque é que diz o que diz. Na verdade, todos precisamos destes princípios, são comuns à cidadania.
Com a aproximação da abertura oficial da campanha eleitoral para o Parlamento Europeu, é imperioso que coloquemos as mãos nas feridas desta Europa da qual fazemos parte, tanto como cidadãos, mas, também, como cúmplices.
O monstro do extremismo avança por todo o lado. Há uma normalização dos discursos racistas, xenófobos, securitários. Tudo em nome do combate ao terrorismo. Mas o que se esquece é que, para verdadeiramente combatermos o terrorismo, temos que combater o terror. Sem o terror o terrorismo perde “eficácia”, porque lhe falta a principal caixa de ressonância: o medo, instalado dentro da mente de cada cidadão, alimentado pelo ódio. Combatendo o ódio, fomentando a paz, estaremos a esvaziar o terrorismo da sua principal fonte energética: a nossa ignorância, a nossa inacção, o nosso conformismo perante a propaganda anti-humanitarista.
Quem acredita que os principais decisores, no campo da economia e da política, borraram as calças, por assim dizer, por causa do fundamentalismo islâmico? E são eles quem instiga ao ódio ao mais alto nível. Não é verdade que a fortuna de Ussama Bin-Laden aumentou por causa dos ataques de 11 de Setembro? E o mesmo não aconteceu com os fundos de investimento, precisamente os mesmos que deram origem ao descalabro financeiro a que temos vindo a assistir, resultantes do cruzamento dos interesses especulativos, alimentados também por fundos oriundos dos tráficos ilícitos, principalmente de armas e de droga, com os interesses da indústria petrolífera? A bolha especulativa em torno do petróleo beneficiou que interesses?
Em primeiro lugar há que desmontar o constructo mediático em torno do inimigo islâmico, ao mesmo tempo interno e externo. O sucessor do inimigo comunista do imaginário macCarthiano que se disseminou ao longo da guerra fria.
Montada no monstro da intolerância, a Europa caminha a passos largos para a instauração dum estado de terror dentro das suas muralhas, cada vez mais intransponíveis a quem venha de fora. E os que estão do lado de dentro não se dão conta que vivem num gigantesco presídio, em que cada pormenor da sua vida, por mais ínfimo, é regulado, vigiado, submetido a uma meticulosa monitorização. Cada impulso que os seus cérebros recebem, vindo da “realidade” é mediatizado, não “mediado”, é submetido a um sistemático processo fomentador da dissuasão: não saio à rua por medo de ser assaltado; não me misturo com pessoas que estão fora dos padrões filogenéticos da minha linhagem saloia; fujo de quem tosse; não mexo uma palha porque o mundo está formatado assim, e pronto.
Por isso há que discutir, de viva voz, o mundo em que vivemos. Especialmente agora em tempo de eleições europeias. Em vez da demissão, a intervenção cívica, o chamar a atenção para a necessidade de aprofundarmos a democracia e a multiculturalidade.
Em termos genéticos está afirmada a unicidade da espécie humana, há apenas uma raça humana, não há diferenças biológicas que permitam distinguir os homens e agrupá-los de acordo com uma escala zoológica de todo desajustada às exigências da vida do Espírito que, como é sabido, se manifesta através da Cultura (que engloba toda a praxis humana, não só determinadas formas de mediação intelectual). É que as culturas são vias de transcensão do imediato e do enclausuramento antropológico. Devem ser assumidas como o património comum da Humanidade, a sua maior riqueza, sem que, com isto, queiramos afirmar qualquer tipo de etnocentrismo. Neste sentido a cultura portuguesa em nada é superior às outras e não deve ser encarada como uma unidade biológica dotada dum sistema imunitário. Isto porque a Cultura é sempre “nossa” e deve ser encarada como um conjunto de vias de inclusão. Tudo isto se aplica, também, às religiões. O Islão é uma religião portuguesa, lusófona, europeia, americana… Tal como a religião judaica ou a cristã, para só falar destas. Todas têm a mesma dignidade. E todas elas, é preciso frisar bem este ponto, podem ser deturpadas e usadas como instrumentos de dominação das sociedades e de fanatização dos indivíduos.
As ideologias, no século XIX, ocuparam um nicho em termos de dinamicidade histórica até então ocupado pelas religiões. Hoje com a aparente evanescência das ideologias, as religiões, nas suas franjas alienadas e alienantes, buscam cumprir o papel das ideologias, tornando-se estruturas de condicionamento político. Não se trata só da confusão entre a esfera religiosa e a esfera política, trata-se da dissolução desta última sob o influxo da irracionalidade e da submissão das consciências a regimes de funcionamento que tendem a destruir a liberdade individual.
Neste sentido o fundamentalismo islâmico é frontal, apesar de parte da sua intencionalidade política permanecer oculta. Os outros fundamentalismos são mais dissimulados, uma vez que no Ocidente a má-fé e a má-consciência (Sartre), mesmo sob o aspecto do fantasma e da denegação, são incontornáveis.
E aqui a lusofonia pode tornar-se exemplar. O espaço lusófono deve mostrar ao mundo que não faz sentido ressuscitar o espírito de cruzada. Tanto que na época das cruzadas o ápice civilizacional estava do lado “infiel” da contenda. Haveria cartesianismo (que eu tento combater), ciência moderna, idas á Lua, informática e aldeia global, sem a autêntica Renascença operada pelos filósofos do mundo islâmico que introduziram no universo cristão a física e a metafísica de Aristóteles, bem como o paradigma de mundificação aristotélico-ptolomaico? É preciso notar que, para o mundo islâmico não houve “idade média”, nem “período das trevas”, sem bem que a historiografia ocidental já se tenha libertado dessas categorias. Mas ao nível do imaginário histórico ainda pesam. Trata-se dum espaço civilizacional que nunca viveu marcado pela nostalgia do império romano. E quem disse que o mundo islâmico não é herdeiro do judaico-cristianismo e do mundo Grego-romano? Quem decide da legitimidade das heranças civilizacionais?
E é claro que há que distinguir o Islão dos fundamentalismos cuja génese está na forma como o Ocidente tem tratado as nações árabes, em primeiro lugar, e, por consequência, os países de matriz islâmica.
A multiculturalidade é ,em termos axiológicos, um avanço civilizacional. E o diálogo entre as religiões é, mais do que uma necessidade, a própria essência do fenómeno religioso.
1 comentário:
Também li a entrevista. Merecido destaque...
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