É uma figura omnipresente, adapta-se a qualquer ambiente, sabe-se inexistente, e por isso crê na sua impunidade. É a face mais excelsa do divino, porque assume-se como o rosto absoluto. O rosto que se entre-expressa em espelho, límpido, inocente, porque os que o incarnam, os que o tornam o íntimo da sua carne, não já opaca, mas vibrátil e pura, sem mácula, impecável, são os verdadeiramente inocentes, embora estejam muito longe de serem inofensivos. Atacam sem vacilações ou qualquer sombra de hesitação. São amorais, crêem-se para lá de todas as regras e buscam a todo o custo a supremacia, a atenção, a primazia.
São o que há de mais próximo da santidade, embora sejam incapazes de santificação, mas podem, involuntariamente, servir de veículo para que se atinja a meta suprema que, ao fim de contas, é a ausência da necessidade de uma meta. Vivam, pois, os que conseguem da sua inutilidade fazer a maravilha da maquinação e da excelência.
E, por vezes, são o nosso melhor conselheiro, porque conseguem ver quais são os nossos pontos mais fracos e é aí que desferem os seus ataques mais incisivos. Riem-se connosco no antegozo das lágrimas que brotarão do mais inclemente dos nossos pontos “fracos”. Mas é aí que residem as nossas forças mais consistentes. Por isso, bem-aventurados os maledicentes, os intriguistas, os matreiros, os que nos odeiam com todos os requintes duma arte suprema. São os nossos melhores mestres. Os que nunca nos deixarão senhores de nós. Porque saberão sempre dizer a palavra certa, fazer a insinuação mais capaz de nos elevar à condição de inquietos. E da inquietação nasce a perdição. A possibilidade de se vir a ser tudo o que não se é. A sem-razão entranhada no mais profundo do viver. Mas há um limiar que é franqueado, de forma definitiva, ao sermos conscientes da diabolia que ameaça as pontes entre as consistências e as inconsistências, nossas, sempre nossas, porque a inconsistência é uma propriedade intrínseca da conceptualização, enquanto que as consistências são o que de nós não pode ganhar sentido ou realidade. Ao ameaçar as possibilidades de simbolização, a diabolia, ao impossibilitar essas pontes, torna a vida unidimensional. A planura, o isolamento, a mesmidade. O fechamento na auto-referencialidade.
Neste sentido os avatares do mafarrico em pouco se distinguem dos bem intencionados que ao longo da história fizeram aos homens o favor de os salvar, matando-os, torturando-os. Sem ironia, o que é que pode ser capaz de nos salvar de nós? O que é que nos pode fazer acordar da evidência de sermos um isto? Nem mesmo a simbólica burilada em anamorfose e afasia protossémica da psicanálise. Mesmo que nos consigamos entrever como um isso, a despersonalização paga-se caro. Há terapeutas que se fazem pagar bem, por isso os nossos melhores agenciadores de inquietação exercem a sua função de forma grácil. Não pedem dízimos e não esperam uma retribuição. Por isso há que tratá-los com uma deferência contida. Não vão mudar de alvo. Nesse caso ficaríamos indefesos. Impotentes. Incapazes de nos livrarmos de nós, ou de nos libertarmos de tudo o que nos impede de sermos em verdade.
Quem consegue descomplexificar-se?
Quem conseguir ver-se a um espelho que não minta, mesmo que seja a dissimulação a dar-lhe as suas propriedades reflexivas. Não é a Razão a dissimulação elevada à máxima potência (ao infinito ou, o que talvez seja o mesmo, a zero)? Na verdade não há engano, porque o gesto que funda a verdade exclui dela o erro, tornando-a incompleta, imperfeita. Não é a perfeição um fechamento à possibilidade de deixar de ser, de perder a forma, de se dissolver na penumbra alética do que não pode ser apropriado por alguma forma de mestria (Episteme)?.
O saber ocidental funda-se, desde a deriva jónica, na axiomatização da indesejabilidade do esquecimento. A memória tornou-se assim na parede intransponível dum cárcere. Mas o mal funda-se na impossibilidade do esquecimento. O mal radical nasce da necessidade de saber como forma de exorcismo do esquecimento e da possibilidade de fruição da mente na sua fluidez atética. A mente que se posiciona e toma o posicionar-se como fundante, a mente que recusa a possibilidade dum sentido ante-predicativo, ,ou seja, a mente judicativa, é o que torna possível a dissimulação e a erradicação da possibilidade, ética, da perdição radical.
Há muito de diabolia consciente de si na ironia socrática. Sócrates via o mal no conformismo e na impossibilidade de esquecer o que carece de justificação – os homens conformados com a vida sem inquietações condutoras à perdição bastam-se, vivem contentes com o que são. O que custa a perceber é como é que, no texto da alegoria da caverna, Platão nos representa uma caverna artificial e, ao mesmo tempo, artificiosa. Pode a dissimulação e a unidimensionalidade do pensamento auto-suficiente dar origem a um sentido que seja, paradoxalmente, emancipador?
Por isso é preferível o inferno de antes da invenção do purgatório. A pena sem fim torna-se num direito inquestionável e numa necessidade ontológica. Qualquer possibilidade de excepção ou de fuga à sua legalidade absoluta só pode ser vista como um mal. E neste sentido, o gozo ininterrompido é auto-contraditório. O céu, mesmo o de depois da invenção do purgatório, só poderia ser mantido por um deus perverso, um deus impotente, obrigado à permanente actualização da bem-aventurança, um deus prisioneiro da sua bondade. Deus nos livre dos amigos verdadeiros. Um amigo a sério é o que nos pode trair porque não se furta às derivas e à perdição. Não se quer perfeito, nem melhor ou pior do que nós. E são esses amigos que estão sempre lá. Onde quer que nos leve a perdição.
2 comentários:
GRANDE PAULO! Que texto sabio, profundo e honesto, coisa que tem faltado e muito por aqui.
Muitissimo obrigada.
Muito bem! Aplauso sincero. Lamento não comentar o texto, porque estou a correr para mil e uma coisas e nos próximos dias estarei longe da net.
Abraço.
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