Pois o que eu sei é que se o Infinito e o Absoluto e a Inquietação e o Mar têm esse açúcar todo que lhe dão e essa ofegante (ouve-se daqui!) ansiedade por um êxtase adocicado (meu Deus, adocicado!) , então não quero o Infinito e o Absoluto e o Mar. Se as palavras forem tão enredadas como as fazem aqui resta-me rasgá-las. Cortá-las. Moldá-las. Não sei se sei o que na realidade-íntima-do-não-ser-que-se-ilude-em-mim na verdade sou. Querem saber? Não me interessa. Não me interessa mesmo nada (finalmente bem empregue a palavra: Nada). E não me interessam os Arcanos, e o Quatro e o Dois e o Novecentos e Trinta e Cinco e o Pentágono (meu Deus, o Pentágono!) e os gurus e os avatares e a secreta sabedoria e o Quarto Raio da Quinta Raça e o Vaticano e o Templo e todo esse dourado multicolor que vos serve de máscara. Se tudo é Nada, ao menos não façam barulho. Se nada há para dizer, não digam tanto. Não digam tantas vezes a mesma coisa.
Sou filho da aspereza e da pedra e das árvores do monte e do Douro e do mar. Sim, da minha língua vê-se o Mar, vê-se com olhos de marinheiro. Sabem, os meus antepassados foram marinheiros, pescadores, arrais de navios, grumetes, capitães. Sabiam do Mar. Nasceram e morreram à sua vista, quando o Mar não os guardou. E nunca precisaram de falas mansas, de artifícios dourados, de travessões-em-palavras. Nasceram, trabalharam, amaram, lutaram, morreram (tantas vezes os matou o Mar). Os marinheiros não falam muito, sabem? Aprenderam a não falar muito. Não falam muito os pastores, não falam muito os reis. Sempre deixámos aos padres a tagarelice e as orações pela chuva e pelo perdão, sempre deixámos aos padres a culpa e a proibição e o temor e a ameaça e a sedução dos reinos do Tudo e do Nada. E sim: se me falarem de pastores e de reis e de marinheiros entendo-vos, se me falarem da terra entendo-vos, se me falarem do horizonte e das marés e das colheitas e dos cordeiros e dos lobos entendo-vos. E se me falarem do amor eu digo-vos, é a dança simples dos corpos. Cada coisa no seu lugar.
Sou filho das coisas que passam, das coisas ténues e frágeis que passam: uma criança que morre, um pássaro que grita, um poema que um dia ninguém lerá. Falem-me da fome e da sede e da injustiça e da escravidão e entendo-vos. Mas falem-me delas com a voz das coisas. Falem-me com a voz da terra que sabe do Mar. As coisas sabem. Passam? Passam sim, e por isso sabem. Falam, e falam na minha língua que é aquela em que posso dizer a minha morte e o canto dos anjos e o sangue e a mágoa dos meus irmãos e a fidelidade dos guerreiros e a derrota. É essa a lingua em que posso ficar calado. E essa a língua em que hei-de morrer.
A minha Pátria não é o Infinito nem o Absoluto nem a Insensível Perfeição, e por isso Pátria lhe chamo e Pátria me é. Os barcos dos meus antepassados cruzaram o mar. Venceram o mar. Sem fim será o mar do Pessoa que coitado se calhar nem sabia nadar. Que sabeis do que andais a dizer? Que sabeis da terra áspera dos meus pais, da terra madrasta de gerações e gerações que foram antes de mim, da terra de escravos e reis, feita da pedra e do sal e pelas mãos dos homens tornada livre, erguida livre, sagrada livre? Que sabeis do mar? Dizei, e dizei-o na minha língua. Sim. Terra e fogo e água e ar, onde estiverdes eu respiro e onde respiro sou o suficiente nesta insuficiência que os deuses me concederam, que os deuses me confiaram. Nesta maravilhosa insuficiência e fragilidade e imperfeição e descontentamento e penumbra e nesta certeza da morte e da transgressão da morte. Terra da Cruz e dos metais, forjada e erguida e lavrada e traçada na pena e na espada, nas penas e na espada.
Esta e não outra é a minha liberdade: a terra onde durmo será livre, a terra onde morro será livre, livres os homens na terra que a vida e o Mistério fizeram minha. E este e não outro é o dom que por minha vez ofereço aos deuses vagos: sejam!
Mensageiros do Último Sentido, arautos do Absoluto, libertadores do que de humano há nos homens: a pedra ignora-vos. O trigo ignora-vos. Ignoram-vos o lobo e o falcão. Eu não quero o Absoluto e não quero a Absolvição. Quero ser esta coisa incompleta e áspera e imperfeita e grande e conjtraditória e mortal que sou, e quero sê-la até ao fim, até ao fim. Finisterra, dizeis? Pois eu digo, exactamente aí acaba o Mar, exactamente aí cessa o seu poder, quebrado no primeiro rochedo céltico. E eu sou - tão frágil - a terra firme dos mundos, a barca livre dos mundos. Devo-o aos que antes de mim o foram, e por isso são eles e serei eu um dia Pátria.
Maio. Pelo fogo de Beltane vos saúdo, pela noite de Beltane. E a nossa terra será.
32 comentários:
Não poderias ter começado melhor, Maio...
Excelente texto, Casimiro.
Importa-se que o traduza para Ingles e substitua as alusoes ao esoterismo por supostas tentativas de "moralizacao" e "civilizacao" de povos barbaros e os mande para uns colegas WASP e susburbanos la nos "States"?
;-)
"E se me falarem do amor eu digo-vos, é a dança simples dos corpos. Cada coisa no seu lugar."
Muito bem dito. O "casal" contemporaneo e todas as expectativas fusionais a volta dele tornou-se uma nova religiao, quase tao perniciosa quanto o consumismo.
Ha que recuperar o que ha de mais saudavel e vigoroso no espirito campestre, tao corrompido pela cultura "pimba" ...
"Forgive me, Grandfather, as I learned nothing more than how to put images and words together." Fernando Birri (realizador Argentino), "Elegia Friulana"
Desculpe, Casimiro, mas o que traz é talento literário sem pensamento consistente, movido pelo apego ao terrunho. Acompanho-o na denúncia do palavreado esotérico e místico e dos êxtases adocicados, mas interrogo-me porque separa a terra, o trigo e o falcão do incondicionado que neles há...
O que mais gostei foi ainda ter recordado que hoje é o dia das fogueiras de Beltane.
Isso dito por si, cujo "pensamento consistente" é apenas delírio místico, tem até graça.
Consistente ou não, outros julgarão o que penso ou em mim se pensa. Do seu só conheço o cínico e sarcástico veneno.
Não é veneno é pensar diferente, sem lhe prestar vassalagem.
É isto que opõe ao nada? é que, por mais que procure, o que encontro
é ...nada!
E, de português, apenas a característica de alguns que pouco têm a ver com os marinheiros, reis e pastores de que fala - um anticlericalismo muito políticamente correcto ... tão moderno!
Talento não lhe falta, mas é difícil não sentir a impressão que, em vez de cantar o seu país se canta a si mesmo...
Ah, Ana Margarida, não me importo nada, embora não consiga ver o que daí sairá...
De resto, o 'casal contemporâneo' é um subproduto de outras coisas mais fundas. A libertação passa crucialmente por aí, claro.
O campestre - ou o 'bárbaro' ou o 'pagão' ou o 'primitivo' - se não estivermos condicionados pelo politicamente corercto dos moderninhos. Sim, entre a 'cultutra pimba', a incultura urbana e a anti-cultura de uma certa 'neo-espiritualidade' também ela fusionista... Faz-nos falta o palpável, na sua simplicidade que nada tem de 'bucólica'.
Paulo, não sei se desta vez a 'inconsistência', no seu pensamento, indica virtude ou defeito...
Registo com prazer a parte em que me acompanha - que bem vistas as coisas, e no quadro actual dos estados de espírito manifestados neste blog, não é coisa pequena -
e já somos então dois a travesasr Beltane. É bom.
'Terrunho' fez-me lembrar o sofisticado Jacinto de 'A Cidade e as Serras'... Não. É mesmo a 'Pátria Amada' do Camões.
Mas o mais importante, ou o mais intrigante, é a 'separação' que refere. As coisas falam de coisas, e por isso todas elas são símbolo. O 'incondicionado' faz-me lembrar aquele valente astrónomo de Napoleão, quando perguntado pelo papel de Deus na sua astronomia: "Sire, je n'avais pas besoin de cette hypothèse-là".
O senhor escreve com grande humanismo, e admiro a sua bondade, porque só pode ser bondade ter educação com gente reles.
Maria, de facto não cantei o meu país mas a ligação que com ele tenho, o que dele se faz e refaz em mim. Nessa medida, a mim me cantei, se alguma coisa canto mesmo que em 'agreste avena ou frauta ruda'. O meu país, ai de mim! Já nem lobos tem.
A Maria é clericalista? Fazia falta aqui no blog alguém assim.
A estupidez não é um canto, é mais um esgar. Arrepia.
Neste blogue há gente tão fanática e malcriada que até dá vontade de ir apanhar ar para a praia mais próxima.
Casimiro, isto só prova que não há uma pátria, mas tantas quantas as mentes e sensibilidades. A sua é a terra, a mimha é o mar e o céu sem fim que se abre do finis-terra, exterior e interior. Por isso creio ser um grave equívoco pensar o MIL como um movimento patriótico.
Francamente, acha que o trigo. o lobo e o falcão ignoram menos essa pátria que imagina do que o Casimiro ignora o absoluto?
Aprecio o seu paganismo, mas sinceramente não creio que alguma vez um pagão autêntico, que como tal não se via, visse as coisas separadas do infinito. Isso é uma invenção quase pós-moderna do Caeiro e do António Mora, que bem mal fazem aos que os lêem sem a ironia que neles havia.
Dito isto, o seu texto é óptimo, como exercício de estilo literário e como rasgo de indignação. Que bom! Assim este blogue é menos aquela coisa morta que se insiste em ver como a vanguarda da redenção da pátria...
Felizmente isto é objectivo: Portugal é uma terra cheia de praias. Para todos os gostos.
Paulo, espero mesmo que deixe de ser (o blog) esta coisa morta...
De resto, o elogio literário é imerecido. A outras coisas queria responder, porque são importantes. Permitir-me-á que o venha a fazer em 'post'. Se calhar já não hoje, que é tarde...
Cordiais cumprimentos,
Casimiro
O mar é de todos, mesmo com tanto "capitão de praia" que quer enfiar areia pelos olhos dos outros dentro.
Tenho acompanhado as questões e "guerras" que pontualmente agitam este blogue e regozijo-me que ainda haja quem não separe a discussão de questões como a pátria, a sociedade e o mundo de um debate sobre a questão mais funda de todas: o que é a realidade?
Deixo uma sugestão: entre a pátria-terra do Casimiro e a pátria-infinito do Paulo não haverá lugar para um entendimento nessa orla, a "Ora Marítima" de que falou Rufus Fasto Avieno, nesse "limes" que é o lugar de todas as partidas e chegadas? E não haverá no infinito terra e na terra infinito?
Porque não organizam sessões onde estas coisas possam ser debatidas mais ponderada, esclarecida e fraternamente?
De facto há coisas demasiado sérias para serem discutidas num blogue, seja ele qual for... Isto é o que resta das tertúlias filosóficas tão sabiamente preservadas pela tradição da "filosofia portuguesa"... Enfim, é o preço de se querer chegar a tudo e todos. O problema é pelo caminho perder-se a qualidade e perverter-se o sentido da mensagem. Estou de acordo que esta actividade mais pública devia ser fundada em algo mais privado, cuja natureza seleccionasse só por si os participantes, sem cair no secretismo. São poucos os que se interessam pela verdade profunda e estão dispostos a sacrificar preconceitos e pragmatismos para a ela aceder.
Saúdo a sua vinda, Oestrímnia, nome da nossa matriz arcaica.
A alma pode mesmo ser uma doença grave.
"A Maria é clericalista? Fazia falta aqui no blog alguém assim."
Passando por cima da troça aqui implícita - e por falar em lobos - respondo-lhe citando S. Francisco de Assis, cuja influência esteve presente na História de Portugal desde Santo António e acompanhou os portugueses por esse mundo fora:
"E o Senhor me deu e ainda me dá tanta fé nos sacerdotes que vivem segundo a forma da santa Igreja Romana, por causa de suas ordens, que, mesmo que me perseguissem , quero recorrer a eles”.
“ Bem-aventurado o servo de Deus que põe sua confiança nos clérigos que na verdade vivem segundo a forma da santa Igreja Romana (julgo que isto exclui Boff e c.ia). Mas ai daqueles que os desprezam: Pois nem que eles sejam pecadores,ninguém os deve julgar porque o Senhor mesmo reservou para si o direito de julgá-los. Porquanto na medida que excede a tudo a administração que eles exercem sobre a santíssimo corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que eles recebem e só eles podem ministrar aos outros, em idêntica medida é maior o pecado daqueles que cometem falta contra eles do que o pecado cometido contra qualquer outro homem deste mundo” .
"Se me acontecesse […] encontrar ao mesmo tempo um santo vindo do céu e um sacerdote pobrezinho, saudaria primeiro o sacerdote, correria a beijar-lhe as mãos e diria: “Um momento, por favor, São Lourenço, porque as mãos deste tocam o Verbo da Vida e possuem um poder sobre-humano”.
Julgo que o tom trocista se aplica também ao blogue, que num post atrás disse parecer de rilhafoles. De facto, tanta gente a tentar tanto pensar Portugal, ignorando a importância que o Cristianismo teve na sua fundação, na vida dos portugueses durante tantos séculos, naquilo que tantos deles - os melhores - pensou ser a sua missão - inclina-me a dar-lhe razão!
Cara Maria, não sendo cristão, pelo menos formal e institucionalmente, reitero que a acompanho na sua indignação perante o escárnio do espírito cristão que por vezes aqui surge, sobretudo quando vem de pessoas que nunca tentaram compreender o que é realmente o cristianismo. Dito isto, venero a infinita humildade de São Francisco de Assis, que é para mim como para a cultura portuguesa uma referência fundamental, mas não consigo sentir o mesmo perante os clérigos, sobretudo quando nestes falta a mesma humildade. Claro que isto é um juízo, falaz como todo o juízo.
Paulo Borges, com S. Francisco lhe digo - não os julguemos, nem mesmo pelo orgulho, que isso é seguir a lição de humildade do santo de Assis...
Boff?
"Boff?"
"...clérigos que na verdade vivem segundo a forma da santa Igreja Romana (julgo que isto exclui Boff e c.ia)..."
a esses já podemos julgar? e o dom afonso já lhes pode cortar a cabeça? conte mais, isso é fascinante.
O Boff, em vez de sair da Igreja, da qual discorda, tenta por todos os meios subvertê-la e/ou embaraçá-la - Lutero, ao menos, jogou limpo! denuncio o posicionamento, tento não julgar o homem.
Continua fascinado?
Sim, as fixações fascinam-me sempre.
O uso do plural quando se fala de um é sempre uma generalização preconceituosa. Assim têm crescido as tiranias morais, e as outras.
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