.
No primeiro Caderno, O PLANETA MARTE, colige, Agostinho da Silva, uma vasta série de dados astronómicos, exaltando, como é típico nesta fase, o progresso da ciência, realçando, nesse progresso, o papel dos gregos: “…os Gregos, inteligentes e curiosos, que observaram também os astros, não porque os adorassem, como deuses, mas porque desejavam esclarecer o mistério do céu, explicar de modo racional o que eram estas estrelas e as razões que as faziam mover-se. Foram estes Gregos, a quem nós devemos tanto da nossa civilização, que deram aos astros que não cintilam e se deslocam por entre as estrelas o nome de planetas, que significa exactamente «errantes»”[1].
No segundo, VIDA DE LESSEPS, reconstitui, Agostinho da Silva, um percurso heróico – o de Lesseps, na sua demanda pela construção do Canal do Suez –, bem expresso nestas palavras: “Para qualquer outro, o golpe em plena carreira teria marcado o fim de tudo; para Lesseps, com a sua energia criadora, com o seu instinto de ataque à vida, ele foi apenas o sinal de passagem para a grande tarefa que o esperava”[2]; “Lesseps não era, porém, nem dos que esperam nem dos que desistem”[3].
No terceiro, POR TRÊS OVOS DE PINGUIM, narra, igualmente, um percurso heróico – mas, neste caso, de um trio, em prol do progresso da ciência, no caso zoológica: “Falavam pouco; cada um concentrava as suas energias para o trabalho indispensável a realizar e para as horas piores que haviam de chegar; nos instantes mais duros, Cherry Garrard murmurava para si, infatigavelmente: «Meteste-te nelas: agora aguenta, aguenta, aguenta, aguenta»; e aguentava mais um segundo, depois outro e outro, até a hora de repousar nos sacos de dormir.”[4]; “O espectáculo dos pinguins chocando os ovos era bem interessante para os três exploradores; viam o que nunca ninguém vira, o que tinham conseguido à força de vontade, de paciência, de sacrifício próprio; novos caminhos se abriam para a ciência e por seu esforço os tinham aberto.”[5]; “Os três ovos foram entregues em 1913 ao Museu de História Natural de Londres por Cherry-Garrard. O Prof. Assheton, encarregado de os estudar, morreu sem ter completado o seu trabalho; foi Cossar Ewart quem chegou, sobre este assunto, a algumas conclusões interessantes; os rudimentos de penas encontrados na região da cauda e das patas do mais velho dos embriões de pinguim contido nos ovos são anteriores aos de escamas que aparecem nas patas; as penas das aves não seriam, portanto, o resultado da transformação das escamas; seriam fundamentalmente diferentes. Nas aves primitivas o revestimento do corpo devia ser composto de escamas e de penas; por motivo desconhecido, o desenvolvimento de escamas teria parado e então as penas teriam recoberto todo o corpo do animal.”[6].
No quarto, A ARTE PRÉ-HISTÓRICA, é toda a Humanidade que se assume como o agente de progresso, ainda que Agostinho não deixe, nesta, de destacar a “iniciativa dos homens de génio”: “…o estudo da pré-história leva-nos à conclusão de que o homem não surgiu na terra logo senhor de todas as técnicas e mais ou menos como o conhecemos hoje; foi uma evolução lenta e custosa, tanto no tipo físico como nas indústrias, que século a século foi desprendendo o homem da animalidade primitiva; foi o trabalho constante, persistente, cada vez mais inteligente do próprio homem que lhe deu, a cada ano que passava, um domínio mais seguro sobre os animais e as coisas; o esforço das multidões somou-se à iniciativa dos homens de génio desconhecidos para que ao fim de centenas ou de milhares de anos a humanidade se encontrasse num plano de relativa civilização; o pouco que somos, a nós próprios o devemos; e nada melhor do que o estudo desse longo e lento tactear que se chama a pré-história nos pode dar confiança no futuro da nossa raça. Não são só as técnicas que se desenvolvem, é a própria capacidade craniana que aumenta de um modo sensível. Os que afirmam que a humanidade não poderá nunca aumentar em inteligência e trazem como argumento a comparação entre os homens de hoje e os homens do Egipto ou de Atenas ou da primeira China cometem um erro grosseiro; porque os 3.000 ou 5.000 anos que nos separam dessas civilizações nada significam à vista das centenas de séculos das indústrias pré-históricas; a duração da história é ínfima em relação à da pré-história.”[7].
No quinto, O BUDISMO, partindo de uma visão geral das religiões enquanto “criações dos fiéis” – sem que isso, contudo, esvazie a sua importância[8] –, Agostinho da Silva desenvolve sobre o budismo uma perspectiva particularmente ambivalente: “…a sua atitude perante a vida é uma atitude de fraqueza e não de força; para nós, em geral, a vida apresenta-se como um conjunto de alegria e de dores que tem de ser compreendido como um todo e que é, talvez, possível modificar, pela acção individual ou colectiva, naquilo em que nos não agrada; o ter como projecto o «querer ser» não é visto como fonte de dor, mas, pelo contrário, como uma fonte de energias e de felicidade; não temos o desejo de nos afastarmos do mundo, mas de nele lutarmos pela sua modificação, porque, se somos pessimistas quanto ao presente, somos optimistas quanto ao futuro e confiantes nas possibilidades do homem; ora o budismo aparece-nos sobretudo como uma religião de pessimistas e de cépticos; é porque nada jamais se poderá conseguir que o nirvana é desejável./ É, no entanto, preciso acentuar que o budismo alguma coisa trouxe de positivo para a humanidade; marcou a distinção, em que numerosos filósofos insistiram, do mundo aparente e do mundo real; deu o valor supremo à experiência individual e ao sentido crítico, proclamando que é cada um o guia de si próprio e que ninguém deve aceitar o que só tem por si a autoridade; põe a bondade e a compreensão como forças poderosas nas relações entre os homens e ensina que se não deve odiar o adversário, mesmo que, acrescentaremos nós, o tenhamos de afastar do nosso caminho; trouxe a primeiro plano o sofrimento dos homens, por que muitos não dão; finalmente proclamou que os verdadeiros movimentos humanos transcendem sempre os limites estreitos das nações e das castas.”[9].
No sexto e último Caderno da segunda série, HISTÓRIA DOS ESTADOS UNIDOS, há a destacar uma visão tendencialmente crítica dos Estados Unidos da América – não só a respeito da sua vocação “expansionista”[10], bem como, sobretudo, da sua matriz “capitalista”, em que Agostinho da Silva antevê (no início dos anos quarenta, assinale-se) “o problema essencial do mundo moderno”: “As duas Presidências de T. Roosevelt e o quadriénio de Taft, se tiveram êxitos na política externa e em melhoramentos materiais, como, por exemplo, a abertura do Canal de Panamá, falharam por completo quanto à solução da questão económica interna. Em 1914, o início da guerra europeia, em que os Estados Unidos intervieram por impulsos económicos e morais, marcou uma trégua que durou até à crise de 1920, embora Wilson tivesse tornado algumas medidas contra os capitalistas, ao mesmo tempo que os auxiliava a dominar o petróleo mexicano. A prosperidade económica, provocada pela afluência de encomendas da Europa, era de tal ordem que dava para alguns aumentos de salários e para uma boa disposição geral a favor do operariado. A crise, porém, reacendeu a questão social e as presidências de Harding, de Coolidge, de Hoover, nada fizeram para a resolver; ficou‑se nos velhos expedientes de partido ou puseram-se em primeiro plano questões relativamente secundárias como a da proibição de bebidas alcoólicas que apenas produziu os bootleggers (contrabandistas) e os gangsters. O New Deal de F. Roosevelt, eleito pela primeira vez em 1933, que consistia numa série de planos de reorganização económica, foi julgado inconstitucional e abandonado, pelo menos nos pontos mais importantes; o grande capitalismo ficou mais uma vez vitorioso e é ele quem, na realidade, governa a nação. Os Estados Unidos que atingiram um nível extraordinário no que diz respeito à qualidade e quantidade dos produtos têm hoje, perante si, o problema essencial do mundo moderno: o da distribuição equitativa desses mesmos produtos pelos homens que os fabricaram.”[11].
[1] O Planeta Marte, Lisboa, Edição do Autor, 1940, p. 4.
[2] A Vida de Lesseps, Lisboa, Edição do Autor, 1940, pp. 5-6.
[3] Ibid., p. 8.
[4] Por Três Ovos de Pinguim, Lisboa, Edição do Autor, 1940, pp. 7-8.
[5] Ibid., pp. 17-18.
[6] Ibid., pp. 24-25.
[7] A Arte Pré-Histórica, Lisboa, Edição do Autor, 1940, pp. 3-4. Veremos que depois, em outros textos seus, esta visão do “progresso da Humanidade” será relativizada. Ainda assim, Agostinho manterá a sua perspectiva positiva em relação à técnica, aqui já bem expressa: “nos homens reside a tendência para o jogo, para a actividade desinteressada, mas que ela se não liberta e se não afirma, como é natural, senão quando o homem consegue organizar as suas técnicas de modo a dar satisfação às necessidades imediatas” (ibid., p. 18).
[8] “A propósito de quase todos os fundadores de religiões se tem posto a questão de se saber se a sua existência é uma realidade ou se, pelo contrário, todos os pormenores acerca da sua vida não passam de uma criação dos fiéis. O problema não tem grande importância porque, em religião como em política, o que vale não é o que de facto sucede, mas aquilo que os homens julgam que sucede; a ideia que a humanidade formou de um acontecimento é a verdadeira força propulsora; numa religião interessa muito mais o corpo da doutrina e o que se supõe ter sido o vulto do seu fundador do que todas as limitações ou negativas que a crítica histórica, com possibilidades bastante pobres e meios bastante falíveis, possa ter levantado no que se refere ao iniciador do movimento. De resto, alguém o devia ter principiado, e as próprias lendas têm a utilidade de nos fornecer elementos para o estudo da impressão que o acontecimento fez no mundo e da forma por que foi apreciado o comportamento do fundador.” (O Budismo, Lisboa, Edição do Autor, 1940, p. 18).
[9] Ibid., pp. 21-22. Veremos que depois, em outros textos seus, Agostinho da Silva, nunca renegando o seu apego ao mundo, expressará uma maior receptividade em relação à tradição budista, bem como a outras tradições orientais, ao mesmo tempo que a sua perspectiva sobre o Ocidente se torna, também ela, mais ambivalente.
[10] “A vitória plena do capitalismo industrial e financeiro marcou-se pela eleição de Mac Kinley em 1897. Como consequência, não só se organizou no interior a defesa contra todos os movimentos populares, pela dura repressão de greves e tumultos e pela manutenção do desemprego para sustentar os salários baixos, como também se entrou numa fase de expansão imperialista; era preciso obter novas fontes de matérias primas, novos mercados para colocação dos produtos manufacturados; felizmente, era possível apresentar o movimento como manifestação do espírito humanitário e «missionário» dos Estados Unidos e assim o tomou a maioria da população; Cuba, Porto Rico, as Filipinas sofriam o governo injusto e retrógrado dos espanhóis; as lutas internas e o acidente da explosão do couraçado «Maine» forneceram o pretexto imediato da intervenção das forças americanas; os espanhóis foram batidos e os novos territórios entraram na posse dos Estados Unidos que educariam os povos para a independência e lha dariam quando os vissem em estado de se governarem por si próprios; é preciso, no entanto, dizer-se que os tumultos de Cuba tinham sido provocados por um imposto de importação sobre o açúcar votado nos Estados Unidos para favorecer os importadores democratas da Luisiânia.” (História dos Estados Unidos, Lisboa, Edição do Autor, 1940, p. 24).
[11] Ibid., pp. 25-26.
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra).
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa).
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286.
Donde vimos, para onde vamos...
Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)
Albufeira, Alcáçovas, Alcochete, Alcoutim, Alhos Vedros, Aljezur, Aljustrel, Allariz (Galiza), Almada, Almodôvar, Alverca, Amadora, Amarante, Angra do Heroísmo, Arraiolos, Assomada (Cabo Verde), Aveiro, Azeitão, Baía (Brasil), Bairro Português de Malaca (Malásia), Barcelos, Batalha, Beja, Belmonte, Belo Horizonte (Brasil), Bissau (Guiné), Bombarral, Braga, Bragança, Brasília (Brasil), Cacém, Caldas da Rainha, Caneças, Campinas (Brasil), Carnide, Cascais, Castro Marim, Castro Verde, Chaves, Cidade Velha (Cabo Verde), Coimbra, Coruche, Díli (Timor), Elvas, Ericeira, Espinho, Estremoz, Évora, Faial, Famalicão, Faro, Felgueiras, Figueira da Foz, Freixo de Espada à Cinta, Fortaleza (Brasil), Guarda, Guimarães, Idanha-a-Nova, João Pessoa (Brasil), Juiz de Fora (Brasil), Lagoa, Lagos, Leiria, Lisboa, Loulé, Loures, Luanda (Angola), Mafra, Mangualde, Marco de Canavezes, Mem Martins, Messines, Mindelo (Cabo Verde), Mira, Mirandela, Montargil, Montijo, Murtosa, Nazaré, Nova Iorque (EUA), Odivelas, Oeiras, Olhão, Ourense (Galiza), Ovar, Pangim (Goa), Pinhel, Pisa (Itália), Ponte de Sor, Pontevedra (Galiza), Portalegre, Portimão, Porto, Praia (Cabo Verde), Queluz, Recife (Brasil), Redondo, Régua, Rio de Janeiro (Brasil), Rio Maior, Sabugal, Sacavém, Sagres, Santarém, Santiago de Compostela (Galiza), São Brás de Alportel, São João da Madeira, São João d’El Rei (Brasil), São Paulo (Brasil), Seixal, Sesimbra, Setúbal, Silves, Sintra, Tavira, Teresina (Brasil), Tomar, Torres Novas, Torres Vedras, Trofa, Turim (Itália), Viana do Castelo, Vigo (Galiza), Vila do Bispo, Vila Meã, Vila Nova de Cerveira, Vila Nova de Foz Côa, Vila Nova de São Bento, Vila Real, Vila Real de Santo António e Vila Viçosa.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Vi esses cadernos na Feira do Livro muito baratos, o do budismo vou comprar, gostei de ler.
Não posso deixar de notar que estas considerações sobre o budismo revelam um conhecimento muito insuficiente, feito de ideias feitas dominantes no século XIX. Agostinho virá mais tarde, no contexto do seu catolicismo ecuménico, a ter uma compreensão mais ampla e valorativa do budismo, que assume como interlocutor fundamental, chegando a declarar-se "meio tibetano".
Por outro lado, pretender compreender o budismo apenas a partir do Pequeno Veículo, sem considerar Mahayana e Vajrayana, é como pretender compreender o cristianismo apenas a partir dos evangelhos considerados canónicos, sem ter em conta os evangelhos gnósticos.
Enviar um comentário