Voltanto para casa, saúdo os amigos desta Águia saudosa.
Não sei por que ingenuamente pusera-me assim, à janela a ver passar, quem já aqui não anda! Mas logo depois me recolhendo aos meus régios aposentos, muito embora humildes, muito embora pobres, mas deveras régios e honrados e por mim unicamente habitados com elevado orgulho, e por ser onde ora estou e me encontro, mas aí de repente deixei de olhar lá fora e passei a olhar para dentro.
Quando mais não for, e não seja dentro a eterna morada, seja pelo menos de algum modo um lugar do qual ninguém guarde lembrança e tenha semelhança em gênero, cor ou credo com algo seu conhecido; e já agora, aconteça o que acontecer, sem medo de aqui andar; portanto, em mim habitado plenamente.
E foi assim que vi ainda há pouco quando à minha janela passava um sem fim de gentes, com gestos largos e palavras graves, mas diziam coisas incompreensíveis; pena a minha janela há muito tempo esteja apenas semi-aberta e ao que veja às vezes já nem exista!
Mas ainda assim não lamento; sei agora, e estou satisfeito por já ter uma janela; e como ela solta no espaço não pode ser edificada nem aberta ou fechada, sei também ter já uma casa; humilde, mas de meus régios aposentos cumpre e sou-lhe muito grato e honrado, por isso. Sim, com todas as premissas vivo ainda, tenho uma casa e até caminho! E quando às vezes valha a pena levantar-me levanto-me de meu trono de pedra...
Já houve um ornado de marfim e outro de cristal, mas nessa época eu ainda nem existia; e é-me então, por isso, falsa a idéia de trono de marfim ou de cristal. Embora eu creia em um único trono, mas falar desse trono é impossível, por ser único.
Como descrevê-lo, pois, se não existe outro para dele se obter um parâmetro, já que todos desejam um trono, pessoal? Por essa razão nem vale a pena disso mais falar, e encerrar o assunto trono é o que urge e rege que se cumpra agora.
Móveis, têm estes meus aposentos já um par de pés e não descalços vão sem eu querer, por não saber se é melhor ou pior ter descalçado ou calçados os meus pés, com os quais nem sempre uso para caminhar, por não serem sempre os meus pés aqueles com os quais caminho equilibrado em duas colunas...
Ah, mas deveras as mãos é que realmente surpreendem! Tanto as metafóricas quanto as de carne com luvas de pelica revestidas ou não, pouco importa até já se importadas essas luvas de pelica da suíça, ou de algum outro porto fiscal sem nome nem identificação; ou vão rudes e calejadas mãos vazias, tais as minhas.
Irrequieto, este meu móvel edifício não cansa de à toa andar por aí, mesmo quando sentado deita a sua cabeça sobre o ombro esquerdo, quase dormindo. Irrequieto e solitário, cada vez mais solitário em razão do já desgastado físico, que operando profundas transformações o desfiguram, tornando-o quase irreconhecível a quem o conheceu na juventude.
Mas como eu vou dentro dele, chego a divertir-me observando as pessoas titubearem ante a dúvida de quem seja aquele que aqui dentro se encontra agora... E quem nunca experimentou semelhante espiada, olhando do lado de dentro, para fora? Quando experimentar surpreender-se-á com as atitudes e comentários das pessoas que passam olhando...
A maneira mais viável e que é possível adotar para se ficar dentro a espiar, é aquela dos pesquisadores de animais, quando se escondem dentro das espias camufladas. É evidente que as pessoas que passam e ficam sobre nossa observação têm atitudes um pouco diferente dos animais, mas, algumas, excluindo a voz, a semelhança aumenta muito; e dependendo de quem se observa é impossível diferenciar e se as confunde mesmo muitos com os animais, carnívoros ou não...
Entretanto, e isto é o que importa, agradabilíssimas surpresas também se têm, com as pessoas gentis; estas pessoas essencialmente boas fazem comentários admiráveis, de grande apreço e respeito humanos, revelando aí também denodado espírito de amor ao próximo. Vale então, só por isso a pena semelhante experiência, porque estas pessoas façam renascer em nós, não se sabe de onde vinda ou renascida, a esperança.
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
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terça-feira, 7 de abril de 2009
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