Se examinarmos com sinceridade o que é isso a que chamamos “mente”, “alma” ou “espírito”, e que nos habituámos a designar como “eu”, questionando e suspendendo a sua irreflectida e compulsiva identificação com os múltiplos fenómenos mentais e físicos - pensamentos, imagens, emoções, sensações - , poderemos chegar à conclusão de ser inapreensível como algo, no sentido de uma entidade, com características definidas, que a distingam de outras entidades. Nesse sentido escreveu Fernando Pessoa: “O abismo é o muro que tenho. / Ser eu não tem um tamanho”. Ou ainda: “Conhece alguém os limites à sua alma, para poder dizer: eu sou eu?”. A “mente” parece designar assim uma abertura sem contornos, forma ou figura, irredutível a todas as representações, ao mesmo tempo que lhe são inerentes duas qualidades: a consciência, pela qual percepciona claramente todos os fenómenos, externos e internos, e a sensibilidade, pela qual se revela capaz de uma plena empatia com o mundo e os seres, disponibilizando-se para agir em prol das suas necessidades e do seu bem.
Esta natureza profunda e primordial da mente é porventura a mesma em todos os homens e seres, para além das suas transitórias e cambiantes condições psicossomáticas. No que respeita aos homens, ela transcende todas as suas diferenças étnicas, culturais, linguísticas, nacionais e de condição social, dotando-os de um mesmo potencial de conhecimento sensível, amoroso e compassivo, de si e do mundo, que pode, e por isso deve, ser plenamente desenvolvido, coincidindo aliás esse pleno desenvolvimento com a aspiração comum ao que se chama “felicidade”.
A verdadeira cultura, inconfundível com erudição, é a do pleno conhecimento e desenvolvimento de todas as potencialidades da mente, ou seja, a plena realização de si, o que só pode ser realizado por indivíduos e nunca por grupos, colectividades ou nações. É para esse objectivo que se devem orientar a civilização e as nações e é para esse objectivo que se devem mobilizar todos os recursos científicos, tecnológicos, sociais, políticos e económicos. É para esse objectivo que se deve assegurar a satisfação das necessidades elementares de todos os homens, exortando-os a que ponham isso ao serviço do pleno conhecimento e desenvolvimento de si.
O estado actual do mundo expressa a profunda incultura geral dos homens, no sentido de cultura atrás definido, desde os que detêm o poder religioso, cultural, político e económico, até aos que aspiram a detê-lo e à massa global da humanidade. O estado actual do mundo é por isso o de uma crescente insatisfação e infelicidade. A busca de uma alternativa torna-se mais premente. Tornar-se desde já essa alternativa, mediante o conhecimento aprofundado de si e o pôr-se ao serviço da sua promoção em todos, é a tarefa dos homens mais conscientes e sensíveis em cada povo, nação e cultura. São eles que, mesmo sem se conhecerem e sem pensarem nisso, são o germe de um mundo outro. Por gosto do paradoxo, ou seja, por amor à verdade, chamo-lhes aristocracia igualitária, pois são os mais excelentes na mesma medida em que aspiram a que todos o sejam, sem jamais como tal se considerarem. A tudo nivelam, por cima, a tudo elevam, acima de si, sem jamais se acharem especiais.
Disseminados por todas as nações, culturas, religiões, irreligiões, organizações humanitárias, políticas e económicas, importa que se conheçam, unam e delineiem estratégias para que o destino do mundo mude. Eles são as armilas da grande Esfera.
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
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4 comentários:
O "especialismo" tolhe a verdadeira aristocracia.
Tendo como referência o conceito de cultura aqui apresentado, e no qual me revejo, não faz sentido falar em individualismo, na medida em que os indivíduos assim auto-exaltados são capazes da mais autêntica e frutífera comunidade.
E lendo este texto veio-me à mente uma interrogação que me persegue há muito, relativa à razão de ser da preferência que muitos pensadores portugueses, e não só, basta dar como exemplo Antero e Husserl, pelo modelo monadológico de inspiração leibniziana como paradigma de inteligibilidade da relação do homem consigo e com o mundo.
Trata-se, contudo, duma caixilharia conceptual que nos afasta do que há. Há metafísica bastante em querer ir para além da metafísica. O que importa é o que não é ultrapassável, posto que nem um aqui, nem um ali subjugam a superabundância de sermos. :)
Caro Paulo,
e este é o que se pode chamar de caminho único, e por não haver mesmo outro, quem faz e insisite nisto, tratando o homem como rebanho, participa e é efetivamente um dos do contingente de alienadores e falsos profetas de todas as áreas, do conhecimento, mas mais contundentes entre os políticos e religiosos...
Belíssim síntese, atirada diretamente ao alvo, já agora chaga ou gigantesca ferida humana que os oportunistas abriram na alma, amortalhando aí o germe universal de seguir em frente e ganhar com o suor de seu rosto todos os pães da vida.
Pois também eu acredito que este pobre ser humano tenha por herança apenas esse sagrado direito, de ser ele mesmo, mas eles querem salvá-lo, alimentá-lo física e espiritualmente, com porções...
Porções de quê? das miérias e quimeras, ou migalhas pessoais de suas deformações de entendimento universal?
Obrigado Dr. Paulo, obrigado por lançar ao mundo mais uma vez a única verdade capaz de libertar o homem, ao repetir ou fundamentar: "Homem conhece-te a ti mesmo"
Paulo, uso a noção de indivíduo para ser entendido... ou menos desentendido... Temos de usar as palavras comuns para sugerir o incomum.
infelizmente perdi o rasto da autoria de uma frase de que há muitos anos me recordo. Um autor francês que dizia que o problema do nosso tempo (ele escrevia, creio, nos anos 60 ou 70) era descobrir o modo de os 'seigneurs des hommes' se transformarem em 'seigneurs parmi les hommes'
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