Quinze anos após a morte de Agostinho da Silva, há, decerto, muitos legados, pelo menos tantos quantos aqueles que, ainda hoje, se reconhecem no pensamento e na acção de Agostinho.Para mais, Agostinho teve um percurso muito sinuoso – começou, na sua juventude, por ser “integralista”; depois, assumiu, quase na íntegra, o ideário “seareiro”; só enfim, já no Brasil, se tornou, dir-se-ia, “agostiniano”. Como já escrevemos a esse respeito: «Se, inquestionavelmente, Agostinho da Silva passou por um “fase integralista”, entre 1925 e 1927 – particularmente assumida numa entrevista a Bento Caldas (“O Pensamento Académico: o que diz Agostinho da Silva, estudante da Universidade do Porto e director do Porto Académico”, in A Voz, Lisboa, 24 de Maio de 1927) –, e depois, a partir de 1928, por uma “fase europeísta” – de que o texto “Da Imitação da França” (in Seara Nova, Lisboa, nº 197, 23 de Janeiro de 1930) será, porventura, o mais representativo –, de franca adesão ao ideário sergiano e da Seara Nova em geral, no Brasil começa um nova fase, já não assente na preocupação de difundir uma “cultura geral”, de que são expressão os seus Cadernos dos anos 30 e 40. A partir daqui e até ao final da sua vida, será a “cultura portuguesa” – mais exactamente, a “cultura lusófona” –, no seu alcance mais universal, o horizonte primacial do seu questionamento. A nosso ver, a obra Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa (1957) é a primeira grande expressão desse questionamento: sobre a cultura lusófona, sobre o seu sentido histórico.»[1]
Mesmo, de resto, na última fase do seu sinuoso percurso, Agostinho reuniu pessoas das mais diversas proveniências filosóficas, políticas e religiosas – como igualmente já escrevemos a esse respeito: «Das várias perplexidades que a pessoa e o pensamento de Agostinho da Silva nos causam, uma das maiores, senão a maior, é o facto de ele atrair pessoas das mais diversas proveniências filosóficas, políticas e religiosas. Dirão alguns que isso só acontece por engano, por ilusão, de algumas dessas pessoas. Mas, justamente, nós julgamos que não é isso o que acontece. Todas elas, ao reconhecerem-se em Agostinho da Silva, estão relativamente certas. E isso é que é extraordinário. O pensamento agostiniano é de tal modo caleidoscópico que é possível nele se reconhecerem as mais diversas perspectivas, sem se negarem por isso. E por isso vemos tanto idealistas quanto materialistas, tanto pessoas de direita quanto pessoas de esquerda, tanto crentes como ateus, defenderem, apaixonadamente, como se fosse “seu”, o pensamento de Agostinho da Silva. Ele é, como nunca conhecemos ninguém, alguém que em si reúne todas as “tribos”.»[2]
Daí, de facto, a dificuldade de definirmos um legado, “o legado”. Para mais, Agostinho gerou, e por vezes com alguma “culpa”, alguns (grandes) equívocos, junto da opinião pública e publicada – como nós próprios já denunciámos no nosso estudo Perspectivas sobre Agostinho da Silva na imprensa portuguesa[3]. Ainda hoje, vamos encontrando pessoas que apenas conheceram Agostinho através das suas “Conversas Vadias” – o programa da RTP que o celebrizou junto do grande público[4]. E que, por isso, repetem, sem qualquer sentido crítico, alguns lugares-comuns: nomeadamente, que Agostinho era “contra o trabalho”, defendendo uma vida, para todos, de “pura ociosidade”. Basta olhar para a vida do próprio Agostinho para verificarmos o quão equívoca é essa perspectiva. Para a sua própria vida e para os seus textos – nestes, é manifesto que Agostinho não se satisfaz com uma posição meramente anti-capitalista; antes assume, diríamos, uma posição “pós-capitalista”, reconhecendo o fundamental papel histórico que o capitalismo teve no nosso desenvolvimento tecnológico, desenvolvimento tecnológico esse que Agostinho, ao contrário de muitos outros filósofos seus contemporâneos, valorizou. E não de forma ingénua – Agostinho, aliás, também ao contrário do que em geral se pensa, era bem pouco ingénuo, como se pode comprovar, por exemplo, por estas suas palavras (escritas, saliente-se, há mais de cinquenta anos), de uma lucidez inultrapassável: “Que vão fazer os homens bem alimentados, bem vestidos e bem alojados e bem transportados que a técnica nos poderia apresentar desde já? Nenhuma experiência foi jamais feita em grande escala e, portanto, nada se pode afirmar de um modo que seja mais ou menos científico; mas há todas as razões para temer, pelo exemplo de certos países em que se atingiu já um nível de vida razoavelmente elevado, que a Humanidade caísse na mais deplorável das decadências (…).”[5].
Quanto muito, terá talvez sido algo ingénuo nalgumas das suas teses pedagógicas. Mas, a esse respeito, importa salientar que Agostinho as enunciou num determinado contexto (o de uma sociedade particularmente autoritária e conservadora); no contexto de hoje, as soluções pedagógicas terão que ser, provavelmente, diversas…
O mesmo já não acontece, a nosso ver, com o caminho que Agostinho apontou para Portugal: de cada vez maior assunção da nossa dimensão lusófona. Cada vez mais, na nossa perspectiva, Portugal só faz sentido no quadro do espaço lusófono – tendo tanto mais futuro quanto mais se assumir nesse espaço, no seio dessa crescente comunidade de falantes de língua portuguesa – actualmente, mais de 240 milhões…
Daí, em suma, a importância dada à língua e à cultura – como já igualmente escrevemos, a propósito da receptividade que tiveram as Comemorações do Centenário do Nascimento de Agostinho da Silva, que decorreram que em 2006: «…na nossa perspectiva, a adesão de tanta gente a estas Comemorações, não só em Portugal como por esse mundo fora, em particular no espaço lusófono, é uma reacção ao cada vez maior vazio cultural existente nos mais diversos planos, desde logo, no plano político. Cada vez mais, com efeito, a política parece reduzir-se a uma mera gestão económica, sem qualquer Horizonte. Não que essa gestão económica não seja importante. Simplesmente, não é isso o que faz de um conjunto de pessoas uma real comunidade. Para que isso aconteça, o elo não pode ser apenas económico – tem que ser, sobretudo, cultural. Só esse elo, esse Horizonte, pode dar um sentido maior à vida de todos nós – individual e colectivamente considerada. Ora, mais do que ninguém, foi esse Horizonte que Agostinho da Silva nos apontou.»[6].
Eis, a nosso ver, o seu maior legado.
P.S.: Escusado será dizer que, para nós, este projecto – o da NOVA ÁGUIA e do MIL: MOVIMENTO INTERNACIONAL LUSÓFONO –, não resulta senão da assunção, plena, desse “maior legado”.
[1] In As três fases do pensamento de Agostinho da Silva, projecto de dissertação de pós-doutoramento (em curso).
[2] In “Introdução” a Agostinho da Silva, pensador do mundo a haver: Actas do Congresso Internacional do Centenário de Nascimento de Agostinho da Silva, Lisboa, Zéfiro, 2007, p. 11.
[3] Zéfiro, 2008.
[4] Entretanto reeditadas em DVD, numa parceria entre a Associação Agostinho da Silva, a Alfândega Filmes, a RTP e o jornal Público (2006).
[5] In “Reflexão à margem da história da literatura portuguesa”, Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira, Lisboa, Âncora, 2000, vol. I, p. 84. Daí ainda, nesta esteira, estas suas palavras: “…donde a fome se tiver ausentado, o tédio virá com o seu desespero não menos terrível. E à pergunta hoje quotidiana para milhões e milhões de ‘como viver?’ se substituirá a pergunta de ‘para que viver?’. A qual, mesmo pelo pouco que hoje podemos observar, não é menos terrível na sua mortalidade.” [ibid., p. 85].
[6] In “Introdução” a Perspectivas sobre Agostinho da Silva na imprensa portuguesa, ed. cit., p. 16. Havíamos já desenvolvido esta perspectiva na obra Visões de Agostinho da Silva (Zéfiro, 2006).
Sem comentários:
Enviar um comentário