Agostinho da Silva, o sociólogo luso brasileiro e grande defensor de uma comunidade igualitária afro-luso-brasileira, revelou, a Fernando Dacosta, confidências de Fernando Pessoa.
Excerto:
"A meio do trajecto inclina-se para o motorista: «Por favor, em vez de levar-nos ao Príncipe Real deixe-nos no Café Martinho da Arcada». Recosta-se e comenta-me: «Vamos jantar com o Pessoa».
A sua mesa estava vaga. Dá-me o lugar que fora do poeta e senta-se de frente: «Era aqui que eu ficava».
Raramente Agostinho da Silva referia a sua relação com o autor de A Mensagem. Chegou até, incomodado com o afã das suas (de Pessoa) fanáticas universitárias, a negar que o tivesse conhecido. Num encontro ardilado por algumas, invectiveis do mesmo: «Deixem-se de coscuvilhices sobre a sua vida e estudem a sério a sua obra. Se ele entrasse aqui neste momento a pedir-lhes dinheiro para um bagaço, vocês corriam-no, nem sequer o reconheceriam.
Pedimos bacalhau com natas, água sem gás e café.
«Encontrámo-nos aqui em Dezembro de 1934. Eu tinha chegado há pouco a Lisboa, dava explicações a particulares, e entrei. Era um fim de tarde frio, chuvoso. Vi-o neste recanto, sozinho, papéis na mesa, um ovo estrelado, um copo de aguardente. Olhámo-nos. Eu lera artigos seus, ele coisas minhas. Fez sinal para o acompanhar. Quase não falou. Nem eu. Perguntou-me se queria um sol frito, era assim que chamava aos ovos estrelados. Passámos a estar juntos, discutíamos literatura, filosofia, política... Quis traçar a minha carta astrológica, mas recusei. Tinha feito a sua, iria morrer, asseverou, dentro de oito meses. Faleceu um pouco mais tarde, a 30 de Novembro de 1935».
«Nas últimas vezes que nos encontrámos, Pessoa estava invulgarmente acabrunhado. “Sinto-me muito arrependido”, disse-me, “pelas cartas de amor que escrevi a Ofélia”. Fizera-o movido pela sua irremediável fantasia heteronímica. Enfastiado, resolvera criar (interpretar) o papel de um vulgar empregado de escritório da Baixa de Lisboa, que se enamora, o que era frequente suceder, por uma vulgar colega. Para o papel desta foi buscar Ofélia, sem reparar que se tratava de uma mulher real, crédula, apaixonada. Divertiu-se durante bastante tempo (interrompeu e recomeçou o jogo do compromisso) com a escrita de ridículas cartas de amor a uma ridícula dactilógrafa carente de afecto e atenção. Quando percebeu a monstruosidade criada, caiu em si e, cerce, cortou o equívoco. A missiva onde o fazia, a última, num estilo completamente alheio ao das anteriores, é significativa disso».
Nela, escreve: «O meu destino pertence a outra lei, de cuja existência a Ofelinha nem sabe, e está subordinada cada vez mais a Mestres que não permitem nem perdoam».
Curiosamente «ninguém, até hoje, entre tantos especialistas, teses, congressos, ensaios, livros sobre ele, percebeu o drama que o dilacerou», exclama já no fresco do Terreiro do Paço, Agostinho da Silva.
Encarando-me, comenta: «Você devia escrever, no estilo de O Viúvo, um romance sobre o heterónimo em que ele se transformou no dia em que desapareceu, porque ele não morreu».
in Fernando DaCosta, Os Mal Amados, págs. 357-9, Casa Das Letras.
(extraído de dialogos_lusofonos@yahoogrupos.com.br)
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11 comentários:
Isso é uma grande fantasia do Dacosta. O Agostinho da Silva nunca conheceu pessoalmente o Pessoa...
Tens a certeza?
O Agostinho não escreveu isso isso em lado nenhum, que se conheça. Nem o "revelou" a mais ninguém, que se saiba. Logo...
Conquanto o "fingimento" - que é, no limite, coisa que finge que é o que finge (jogo de espelhos infindo, ou de máscaras)-, seja o mar íntimo pessoano (bela forma de vida!), dantes estas coisas eram resolvidas com a palavra de honra, e estava o assunto resolvido. Agora...
Agora, até os epígonos são epígonos de si mesmos - o que dá um resultado relativamente, digamos, fingidamente desajeitado.
Bem, Renato, sendo assim, se não tens a certeza, há que apurar melhor o verdadeiro sentido das palavras do Dacosta. Sabemos que o Agostinho era bem capaz de uma omissão do tipo... e de muito mais. Decerto, voltaremos ao assunto.
Segundo Fernando Dacosta tudo o que escreveu é bem real. Ora, Dacosta não é homem para mentiras. Vejamos o que diz no Blogue "Um Fernando Pessoa":
"A princípio desconfiámos da passagem porque num contacto anterior com a Associação Agostinho da Silva nos tinham dito que Agostinho nunca tinha encontrado Pessoa. Por isso procurámos falar com Fernando DaCosta, o que conseguimos ontem. DaCosta foi de uma grande simpatia e confirmou-nos que tudo o que escreveu é real e lhe foi comunicado directamente por Agostinho. Reforçou que Agostinho dizia não conhecer Pessoa para que não o incomodassem com as tais "coscuvilhices", mas que de facto o tinha conhecido em Dezembro de 34 e que Pessoa até lhe queria desenhar a carta astrológica, tendo Agostinho recusado por ser ainda muito racional (DaCosta disse que Agostinho só depois da ida para o Brasil passaria a ser "um pouco menos racional"). Seja como for, esse ano de convívio com Pessoa terá dado a Agostinho o extraordinário insight que depois ele converteu nessa obra Pessoana de excepção (que usamos para o nome do nosso blog) que é "Um Fernando Pessoa".
Claro que, partindo do princípio que Agostinho realmente conheceu e conviveu com Pessoa, resta saber como Agostinho interpretou o que ouviu do poeta. Seria este arrependimento, um arrependimento de arte (e com medo da memória futura), ou um verdadeiro arrependimento de ter fingido completamente? Isso, provavelmente, ficará sempre sem resposta, mas abre novas janelas de interpretação das cartas de amor e de um novo heterónimo: "Fernando" apaixonado.
A questão de fundo, aqui, parece-me ser a de saber se seria possível a Pessoa, e se o será a todos nós, furtarmo-nos ao fingimento.
Tenho para mim que não.
Como se sabe, a palavra vem dum étimo que nos fala de moldar, fazer algo com os dedos, etc.
Isso é o modus como fazemos e temos de fazer todas as coisas: fingindo, isto é, moldando, modelando o sentido nos sentidos, o sentir nos sentimentos, o pensar nos pensamentos, vontade pelas vontades, de acordo com os sinais mediante os quais a "realidade" (que é sempre uma construção, tal como pesquisas recentes relativas ao funcionamento do cérebro mais comprovam) se nos vai a-presentando.
Logo, a nossa re-lação, o laço que em cada momento estabelecemos com o mundo dos outros, das coisas ou da sua ausência é sempre construído com base nesses "materiais" díspares.
Esta questão remete-nos para outra: Será relevante para algo ser real o ser autêntico, isto é, o ser legitimado (por si mesmo ou por algo outro)?
Num certo sentido, é absolutamente indiferente.
Por outro lado, poderemos sempre perguntar-nos: o que era o real, o "verdadeiro", para Pessoa?
Era "fingir" algo de maior, de acordo com a pertença "a outra lei" e a "Mestres que não permitem nem perdoam", ou "ser tudo de todas as maneiras"?
Ou seria o seu dia-a-dia profissional rotineiro e pardacento?
Eu creio que o fingimento e a realidade são indissolúveis, em ambos os casos: a "realidade" ingénua é, porventura, o fingimento que não sabe que finge; o "fingimento" (como o do poeta) é a realidade que aceita o "fingir" como o construir do próprio real, que aceita no fundo o "fingir" como o próprio do "real".
Nesse sentido, o que quer que se tenha passado, no que Dacosta escreve, isso é totalmente indiferente.
Só não o é ao nível puramente historicista, do puro "o que realmente se passou".
Mas, disso, não falaram nem escreveram Pessoa nem Agostinho: o real deles é tudo menos o "real" já feito, dado, construído...
Caro Lapdrey, o conhecimento do passado é importante para melhor compreendermos a nossa identidade. Quem somos, como chegámos aqui, porque nos organizamos de determinada maneira, como podemos moldar o futuro...
O encontro até agora (quase) desconhecido entre Agostinho da Silva e Fernando Pessoa, duas enormíssimas figuras da cultura portuguesa, neste sentido, pode revelar pequenos pormenores que terão certa importância (grande ou pequena,agora não interessa) na nossa herança cultural.
Só o gozo que dá poder imaginar que o Agostinho se encontrava e conversava com o Pessoa ali no Martinho da Arcada!
Abraço, pois então.
No fundo, meu caro Luis Santos, o que se verifica é que (sendo fantasiosa o não) vale mais, ainda esta vez, a frase por Dacosta atribuída alegadamente - até que saibamos, se venhamos algum dia a confirmá-lo - a Agostinho da Silva, que poderia, convenhamos, perfeitamente tê-la dito.
Agora dirigi-la-ia ele a nós mesmos:
"Deixem-se de coscuvilhices sobre [minha] vida e estudem a sério a [minha] obra".
Concluindo:
A História é sempre, queiramos ou não, interpretação dos indícios que dos registos dos factos do passado cheguem nós, em cada sucessiva geração.
Chegam-nos os que nos chegam e com esses, e não mais, interpretamos a História e reescrevemo-la.
“Só” isso!
Abraço!
A História tal e qual como nós - interpretação dos indícios. Boa conclusão. Obrigado pelas suas palavras.
Entre 1933 e 1935 Agostinho da Silva estava a leccionar em Aveiro aos miúdos do liceu.
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