Amor do Povo
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"estes amam o povo, mas não desejariam, por interesse do próprio amor, que saísse do passo em que se encontra; deleitam-se com a ingenuidade da arte popular, com o imperfeito pensamento, as superstições e as lendas, vêem-se generosos e sensíveis quando se debruçaram sobre a classe inferior"
Esta frase de Agostinho é uma referência mais ou menos velada aos partidos e organizações políticas ligadas à chamada "Direita". É nesta ala política que encontramos aqueles que julgam seguir a Tradição e o Conservadorismo mantendo a docilidade das massas, lidas aqui como "Povo". Verdadeiramente, não sentem as manifestações de Arte Popular que eram exteriormente e formalmente tão apreciadas pelo regime do Estado Novo. Gostam da expressão de uma inferioridade de pensamento e Cultura que apreciam porque julgam diversas da "sua", urbana e elitista. Para estes - criticados por Agostinho neste passo - o lugar do Povo está bem definido e claramente enclausurado dentro de estreitos limites, subjugado numa estratificação de castas que Dumezil faz recuar tão longe como até ao Neolítico.
"Há também os que adoram o povo e combatem por ele mas pouco mais o julgam do que um meio; a meta a atingir é o domínio do mesmo povo por que parecem sacrificar-se; bate-lhes no peito um coração de altos senhores; se vieram parar a este lado da batalha foi porque os acidentes os repeliram das trincheiras opostas ou aqui viram maneira mais segura de satisfazer o vão desejo de mandar"
Neste outro passo, Agostinho da Silva, critica os radicais de Esquerda... Com este completamento do círculo crítico, o Professor posiciona-se longe da castradora e anacrónica dicotomia Esquerda-Direita. Nas "Conversas Vadias", questionado a dado ponto por um dos seus vários entrevistadores, o professor proclama a dado passo que "os de Direita, me acusam de ser de Esquerda e os de Esquerda, de ser de Direita"... Agostinho não aceitava ser enclausurado nesse tipo de espartilhos mentais. Recusando assinar a declaração que o Estado Novo queria que todos os professores assinassem declarando que "não pertenciam a nenhuma sociedade secreta", o Professor segue as passadas dos iconoclastas de Seiscentos e emigra para o Brasil. Alguns, ligados ao partido comunista, viram neste gesto de rara coerência mental, uma admissão que então Agostinho da Silva era militante comunista, quando na verdade a lei foram concebida a pensar na maçonaria, uma sociedade secreta tradicionalista e republicana que pode ser muito justamente colocada sob a oposta orientação política seguida pelo comunismo, a Direita.
Estes elementos ditos de "Esquerda", usam o nome do Povo e um suposto direito de sua representação para imporem a sua vontade em nome de uma "ditadura do proletariado", de cujos desígnios supremos ele são os únicos e inquestionáveis intérpretes. Na verdade, estes pretendem lançar sobre a população a mesma rede de exercício de Poder que os elementos que se identificam a outra tendência.
Todos afinal, anseiam pelo Poder, pela capacidade de imporem a sua vontade e visão do mundo aos outros, seja em nome da Tradição ou de um suposto Conservadorismo, seja em nome de uma etérea e raramente sufragada "vontade popular". Contra ambos, e muito além deles, encontramos as posições de Agostinho da Silva.
Tradicionalista de Direita quando busca nas raízes municipalistas e comunalistas da Idade Média portuguesa, Progressista de Esquerda quando encontra na democracia dos concelhos e na não-propriedade rural e medieval as raízes para sua visão de economia e das sociedades que antevê gratuitas na melhor perspectiva franciscana (ordem que muito prezava e cujos conventos chegou a frequentar numa espécie de retiro laico), Agostinho da Silva pairava muito além desta limitadora diferença Esquerda-Direita...
"Interessa-nos o povo porque nele se apresenta um feixe de problemas que solicitam a inteligência e a vontade; um problema de justiça económica, um problema de justiça política, um problema de equilíbrio social, um problema de ascensão à cultura, e de ascensão o mais rápida possível, da massa enorme ate hoje tão abandonada e desprezada; logo que eles se resolvam terminarão cuidados e interesses; como se apaga o cálculo que serviu para revelar um valor;"
Esta passagem é particularmente importante no âmbito deste estudo porque aqui apresenta Agostinho da Silva um protoplasma de programa político:
"um problema de justiça económica"
Entenda-se aqui, de repartição da riqueza e de supressão da fome e da miséria. Mais do que aumentar a produção ou a produtividade das organizações e da Economia, devem as sociedades orientar-se para uma justa divisão dos proventos do Trabalho e da repartição da riqueza gerada. Nas sociedades globalizadas da atualidade assistimos de facto a um fenómeno exatamente oposto: nunca hoje como antes tanta riqueza se concentrou em tão raras mãos. Nunca antes como hoje os rendimentos do Capital foram tão desproporcionados em relação aos rendimentos do Trabalho. Nunca antes como hoje, se assistiu a uma tão continua e severa erosão dos salários reais, sacrifícios impostos pela deslocalização industrial e por níveis de Desemprego "sabiamente" mantidos elevados de forma a pressionar as remunerações salariais. É contra este mundo desigual e injusto que se insurge Agostinho, é a esta desigual distribuição que o Professor chama de "injustiça económica". Fica assim estabelecido que a cada um deve caber aquilo de que precisa, não aquilo que uma divisão social, estratificada e desproporcional, lhe quer atribuir.
"um problema de justiça política"
Isto porque as sociedades atuais não têm uma distribuição justa e paritária da capacidade de "fazer política"... Ainda que exista uma "máscara de democracia representativa" na maioria das sociedades ocidentais e do resto do mundo, na verdade em raros momentos nos últimos duzentos anos houve menos poder político nas mãos dos cidadãos. O poder político está concentrado numa élite familiar que se perpetua no poder, nos meios de comunicação e nos lugares de administração das grandes empresas. Em todo o mundo ocidental, netos destas famílias poderosas, transitam para as televisões, daqui para o teatro e cinema, daqui para a literatura e para a política e, depois, para os conselhos de administração das grandes empresas, passando de permeio pelas universidades. Esta suspeita promiscuidade, que tudo penetra e que tudo envenena, proíbe a introdução nesta seleta casta de indivíduos nascidos fora da casta regente. Mantendo-se pura, a casta dos Senhores casa entre si, raramente tolerando movimentos sociais verticais, permitindo apenas as deslocações horizontais entre escalões sociais... Excelente exemplo destas palavras encontramo-lo hoje nos Estados Unidos, tido em tempos idos (anos cinquenta) como a "Terra das Oportunidades" e dos "Self made men", mas que hoje se revela ser uma das sociedades do mundo onde a ascensão social é mais difícil.
"um problema de equilíbrio social"
Em que a existência da acima listada impermeabilidade social se assume como uma das injustiças mais dramáticas dos nossos tempos. O mérito não está mais ligado à posição social de alguém na sociedade. Nascemos num determinado estrato e neste permanecemos durante toda a vida. Estratos sociais correspondem de forma absolutamente estanque a estratos económicos e nem uns nem outros permitem facilmente movimentações para cima ou para baixo. Acentuando este imobilismo, temos ainda sociedades onde as diferenças entre os que têm muito e os que pouco ou nada têm são cada vez maiores... Enfim, a escavadora da desigualdade não cessa de aprofundar o abismo entre as classes.
"um problema de ascensão à cultura"
Com a degradação crescente dos níveis de qualidade e eficiência da escola pública republicana, com a multiplicação dos níveis de facilistimo, engendrados para fazer aumentar estatísticamente um sistema público de ensino governado por corporações fechadas e egóticas e por políticas governamentais fluidas e desenhadas ao sabor dos ciclos eleitorais, a Escola desalma-se e perde a sua missão fundamental que é a de ser veículo de Cultura e de promoção do Saber e da curiosidade e criatividade das gentes. Sem uma escola de qualidade, não poderá haver Cultura de qualidade habitando em mais almas do que num reduzido grupo formatado pela casta regente que se alterna alegremente nos escalos de topo, treinada em escolas privadas e de acesso restrito à "casta dos Senhores".
Não basta construir bibliotecas, financiar peças de teatro e obras-primas de cinema com fundos públicos para alavancar uma política de promoção da Cultura. Importa sobretudo criar condições para o desenvolvimento da criatividade em todos os locais e organizações onde o Homem exerce a sua atividade profissional e académica. De mero "reprodutor de coisas", o Homem tem que assumir a sua plena humanidade e tornar-se em "criador de coisas", sejam elas bens culturais, obras e de Arte ou novos engenhos ou formas de organização do trabalho e das sociedades.
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
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2 comentários:
Promete, o artigo...
deu muito gozo a comentar - em particular - estes segmentos de textos agostinianos.
Especialmente relevantes no contexto em que tentam encastrar o MIL num "movimento político" de "esquerda" ou de "direita".
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