A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

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segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Trans-Pátria

Inicio aqui uma rubrica que dedicarei regularmente a temas diversos, dentro do espírito da Declaração de Princípios e Objectivos do MIL. Por Trans-Pátria entendo o movimento da Pátria, no meu caso a portuguesa, em direcção ao universo e ao universal, aquilo que a cumpre no rumo da própria transcensão a que aponta, bem como, num outro mas complementar sentido, o seu movimento do real para o ideal, enquanto actualização das suas mais fundas virtualidades.
Republico, modificado e acrescentado, um texto anterior, que teve uma fortuna polémica. Caso o queiram debater, a partir da sua compreensão, estou disponível.

Por um patriotismo trans-patriótico e universalista
Oito considerações para uma fundamentação do MIL


1. A milenar tradição da introspecção meditativa e os progressos contemporâneos da microfísica e das neurociências (que hoje se juntam numa convergência histórica, como nas experiências realizadas no MIT, em Massachusetts, e nos encontros Mind and Life, o último dos quais de 6 a 12 de Junho deste ano, em Nova Iorque) parecem indicar não ser possível encontrar, quer na constituição da chamada matéria, quer na da chamada mente, ou seja, nisso cujo conjunto designamos por realidade, uma mínima entidade que exista em si e por si e que permaneça idêntica a si mesma, ou seja, que tenha características próprias. Todas as dimensões da chamada realidade parecem obedecer assim a duas leis fundamentais, a de interdependência e a de impermanência, que se resumem na sua ausência de características ou qualidades intrínsecas. Como se pode constatar na mínima experiência perceptiva e como a observação científica confirma, sujeito e objecto constituem-se mutuamente e interagem num dinamismo e numa metamorfose constantes, como meros fenómenos recíprocos, sem essência própria. O conceito de identidade parece ser assim uma abstracção desadequada para expressar o real, sem outro fundamento senão o de ser uma ficção convencional e funcional, que serve o reproduzir de uma tradição fortemente entranhada nos hábitos culturais, psicológicos e sociais do senso comum humano.
2. O conceito de identidade nasce, como o seu correlato, o de alteridade, de uma experiência ingénua e irreflectida, na qual, devido a hábitos inconscientes, o sujeito se crê distinto do objecto, o eu do não-eu, o mesmo do outro, o idêntico do diferente, ao mesmo tempo que esses termos da experiência se crêem reais e existentes em si e por si, com características e qualidades próprias, positivas, negativas ou neutras, que nunca são mais do que projecção da percepção inconscientemente condicionada. Este estado, que se pode chamar de ignorância dualista, origina três tendências da experiência mental-emocional na relação sujeito-objecto: 1 – o fascínio e o desejo-apego, caso o objecto seja percepcionado como atraente e positivo; 2 – o medo e a aversão, caso o objecto seja percepcionado como repulsivo e negativo; 3 – a indiferença, caso o objecto seja percepcionado como neutro. Qualquer destas experiências resulta em conflito e sofrimento, primeiro interno e depois externo, indissociável de uma extrema vulnerabilidade perante todas as vicissitudes da vida, pois a mente dominada pelo apego e pela aversão não pode assegurar de modo algum a posse do que deseja nem a exclusão do que rejeita, devido à lei da impermanência e metamorfose constantes de tudo, sujeitando-se assim constantemente à carência do que deseja ou ao medo de o perder, bem como à ameaça do que rejeita ou ao medo de o não evitar. Por outro lado, a indiferença é uma falsa alternativa, que apenas gera a experiência de solidão, de entorpecimento mental e despotenciamento vital.
Da ignorância dualista e da combinação das três tendências referidas resultam as pulsões emocionais inerentes a todos os actos e omissões, mentais, verbais e físicos, que as tradições ético-espirituais, teístas ou não-teístas, religiosas ou laicas, designam como actos negativos, faltas, pecados ou toxinas mentais, como hoje alguns preferem: desejo possessivo, ódio e cólera, inveja e ciúme, orgulho e arrogância, avidez e avareza, torpor mental e tristeza, entre muitas outras. Em qualquer dos casos, antes de lesarem os outros, estas pulsões lesam a mente do próprio sujeito a partir do primeiro instante em que nela surgem, distorcendo a percepção da realidade, gerando ignorância, insensibilidade e tormento interior. Por isso são objectivamente negativas, independentemente de qualquer doutrina moral ou revelação religiosa.
3. Um olhar desapaixonado e realista sobre o processo e a história da civilização humana, desde os seus primórdios até hoje, não pode deixar de constatar que tudo – a organização social, a ciência, a técnica, a política, a economia, a cultura, a educação e a religião - tem sido predominantemente movido pela ignorância dualista, o apego, a aversão e a indiferença, bem como por todas as suas combinações possíveis, com o resultado evidente, em termos gerais, de a humanidade até hoje sempre ter obtido precisamente o que mais rejeita, o sofrimento, e sempre haver falhado o que mais deseja, a felicidade: prova evidente de que o desejo-apego e a aversão resultam precisamente no contrário do que buscam. As únicas excepções a esta monumental ilusão e fracasso colectivo, habitualmente camuflado com os nomes de “progresso”, “evolução”, etc., são os seres que despertam e se libertam da ignorância dualista e das suas consequências mentais e emocionais: aqueles que nas várias tradições se designam como sábios, santos, etc., e que se consideram mestres espirituais quando à libertação individual acrescentam o amor e a compaixão de continuarem a agir para disso libertarem os outros.
4. Aplicada à questão das sociedades, das culturas, das nações e das pátrias, esta visão constata que nenhuma delas existe em si e por si, com uma identidade e características irredutivelmente próprias. Todas, pelo contrário, apesar de apresentarem singularidades em devir, nascem, vivem e morrem ou metamorfoseiam-se de acordo com as leis fundamentais de interdependência e impermanência que abrangem todas as dimensões do real. Com efeito, quem pode, por exemplo, pensar o que é Portugal separando a sua história e cultura das de todos (ou quase) os povos europeus, africanos, sul-americanos e orientais? O conceito de identidade nacional é pois, tal como o de identidade pessoal - e sobretudo se pensado de forma essencialista ou substancialista - , uma mera abstracção que em última instância apenas funciona na lógica da ignorância dualista que predomina na mente humana.
5. Tal como acontece quando se extrema a bipolarização eu-outro, o extremar da suposta identidade cultural ou nacional como uma essência única, permanente e independente das demais, leva ao nacionalismo ou patriotismo ensimesmado que potenciam essa ignorância dualista e esses complexos de apego ao que parece ser próprio e de indiferença ou aversão ao que parece ser alheio que já vimos serem as causas fundamentais de insensibilidade, sofrimento e conflito para quem por elas se deixa dominar e para os demais. O nacionalismo ou patriotismo comum, levando a amar a sua cultura, nação ou pátria acima das demais, é pois injustificável e condenável em termos sapienciais e éticos, sendo incompatível com qualquer projecto de emancipação da consciência e de serviço do bem comum a todos os homens e a todos os seres.
6. Há todavia a possibilidade de se conceber e praticar uma outra forma, não de nacionalismo, mas de patriotismo, o patriotismo trans-patriótico e universalista, que apenas preze, cultive e promova, numa determinada tradição cultural e numa determinada pátria, aquilo que nela houver de melhor, ou seja, de aspiração ao bem comum universal, não só dos homens, mas de todos os seres. O patriotismo trans-patriótico e universalista é o que em última instância aspira a orientar as energias de uma dada nação para que progressivamente se superem todas as fronteiras e barreiras, primeiro mentais e afectivas, e depois institucionais e territoriais, entre todos os povos e culturas, de modo a que a comunidade humana possa expressar o mais possível a estrutura e as leis fundamentais da própria realidade: ausência de id-entidades com características intrínsecas, interdependência, impermanência. O patriotismo trans-patriótico e universalista é o que aspira a romper o círculo vicioso e infernal em que tem decorrido e decorre a história da civilização humana e a devolver humanidade e mundo ao Paraíso que em si intimamente encobrem. O patriotismo trans-patriótico e universalista é o único que está de acordo com a milenar tradição sapiencial da humanidade e com a ciência contemporânea, convergindo para a verdadeira evolução que é a da consciência e para o verdadeiro progresso que é o espiritual, entendendo por tal o despertar da dualidade que permita ver e sentir o outro como a si mesmo e assim visar a emancipação mental, cultural, social, política e económica de todos os homens e o respeito por todas as formas de vida.
7. Este patriotismo trans-patriótico e universalista é o que encontro no melhor da ideia de Portugal e da comunidade lusófona que – depurada do lastro de muitos condicionantes - interpreto em Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, para apenas referir os mais destacados. Foi ele, embora ainda informulado e sem a fundamentação aqui apresentada, que inspirou o Manifesto da Nova Águia e a Declaração de Princípios e Objectivos do MIL – Movimento Internacional Lusófono - , cujos textos iniciais redigi e dos quais oitenta por cento ou mais permaneceu nas versões finais. É apenas à luz do patriotismo trans-patriótico e universalista, como projecto fundamentalmente ético-espiritual e só a partir daí cultural, cívico, social e político, que considero fazer sentido a existência do MIL. Não acredito, aliás, noutra possibilidade de real transformação do mundo que não se enraíze primeiro numa profunda transformação da mente que o percepciona. A grande revolução futura e já presente, em todo o planeta, é a união inseparável dessa transformação mental – a que alguns chamam meditação - e de todas as esferas da actividade humana, incluindo a económica e a política. Quando digo transformação mental refiro-me ao simples treino da mente para ver as coisas como são, para além da dualidade, do apego e da aversão, para além do medo e da expectativa, para além do passado e do futuro, no aqui e agora presente. Nada de necessariamente religioso, místico, esotérico ou exótico e que não vem do Oriente porque a mais profunda cultura ocidental, clássica ou cristã, sempre o conheceu. É a redescoberta disso, mais do que qualquer ideologia laica ou religiosa, a grande novidade que cresce hoje como bola de neve em todo o mundo.
8. Creio que os resultados do inquérito feito aos aderentes do MIL, para além das conclusões extraídas pelo Renato Epifânio, mostram que na maioria dos que responderam predomina não um patriotismo nacionalista, mas antes lusófono e universalista. Com efeito, se 63% declaram que a pátria é “um valor da maior importância”, apenas 21% considera que a sua pátria é o seu país, enquanto 38% a identificam com a Lusofonia e 41 % afirmam que a sua pátria é “trans-lusófona”. Isto mostra que as pessoas aderiram ao essencial da nossa Declaração de Princípios e Objectivos e que isso as responsabiliza por os porem em prática, contribuindo, num momento crítico do mundo, para uma cultura de paz e de elevação da consciência. Exorto pois a que se criem mais Núcleos MIL, onde se difundam e pratiquem estas ideias e se traga desde já para a nossa vida quotidiana essa diferença que consideramos melhor para o mundo: abertura, clareza e paz da mente e do coração, capacidade de diálogo e compreensão, amor aos homens e aos seres vivos - para além das diferenças de nação, língua, etnia, cultura, religião, ideologia e espécie - , promoção e pedagogia dos valores mais benignos e universais das nossas culturas lusófonas, intervenção cívica e social que afirme estes valores na esfera pública, política e económica.
Para que se cumpra o nosso lema: Por um novo Portugal, uma nova Comunidade Lusófona e um Novo Mundo.

6 comentários:

Renato Epifânio disse...

Caro Paulo

1. O que na altura desde logo despertou uma "fortuna polémica" foi o propósito manifestado de uma "refundação do MIL". Registo com agrado que essa expressão, tão equívoca (como se provou), tenha caído.

2. Quanto ao que agora escreves, acho que a expresão mais adequada, e mais consonante, com os resultados do Inquérito, é a de "patriotismo trans-nacionalista".

Abraço

Paulo Borges disse...

Caro Renato,

1 - Creio que a "fortuna polémica" não se deveu por si só à expressão equívoca, se não houvesse a incapacidade de leitura e de compreensão de muitos.

2 - Creio que essa expressão, bem como a leitura que nela fazes, são muito redutoras dos resultados do inquérito, que como reconheceste mostram a presença nas respostas de uma maioria de cidadãos do mundo ou da Jerusalém Celeste, ao que eu acrescentei de patriotas lusófonos e universalistas.
Considero aliás isto natural, pois nunca entendi a Declaração de Princípios e Objectivos do MIL como um manifesto propriamente patriótico, mas fundamentalmente lusófono e universalista.

Abraço

Renato Epifânio disse...

Caro Paulo

Números redondos (ainda há gente a votar e não vale a pena perdermo-nos por dois ou três pontos percentuais...):

1) um quinto de "nacionalistas"

2) dois quintos de "lusofonistas"

3) dois quintos de "tras-lusófonos".

Em 3), há então, pelos menos, três
"tribos" (sem qualquer desprimor):

a) a dos "cidadãos do mundo"
b) a dos "cidadãos da Jerusalém Celeste"
c) a dos "patriotas universalistas".

O que disse, e reitero, é que em 3) há um público mais heterogéneo do em que em 1) e em 2). O que é natural: um "trans" é sempre menos unívoco do que um "sim"...

Por isso, sem ser "redutor", a única clara maioria que aqui vejo (quatro quintos) é a dos patriotas trans-nacionalistas...

Abraço

Renato Epifânio disse...

Mas, se preferes, assentemos no conceito de "patriotismo lusófono-universalista" (por mim, gosto da expressão). Já o "trans-patriotismo" parece-me um conceito mais difícil de aceitar... Isto, obviamente, para quem defende que "a Pátria é um valor da maior importância".

Abraço

Anónimo disse...

Caro Paulo e Renato

Li o texto do Paulo,excelente texto por sinal,
com o qual me identifico.
Quanto ao conceito,concordo com o Renato,assenta melhor "patriotismo lusófono-universalista"

Abraço
aPr

Paulo Borges disse...

Renato, também gosto da expressão "patriotismo lusófono-universalista", que para mim inclui o que entendo por trans-patriotismo, embora se tenha de explicar o seu sentido, que pode parecer contraditório, pois o patriotismo ainda está muito conotado com o nacionalismo.

O tempo permitirá a melhor afinação da linguagem e do pensamento.

Saúdo as novas pessoas que aparecem a comentar este e outros posts e exorto os muitos outros aderentes a fazer o mesmo. É tempo de se tornarem mais activos na construção deste projecto, que é de todos.

Abraços