(em jeito de comentário)
Historicamente, o primeiro grande conflito entre Portugal e Castela que não teve por base a simples disputa da independência portuguesa ou a definição de fronteiras e áreas de conquista na Ibéria muçulmana - aquilo que na nossa história ficou conhecido como "guerras fernandinas", e que na verdade foi apenas um episódio local de uma guerra muito mais vasta, a "Guerra dos Cem Anos" entre a Inglaterra-Aquitânia e a França - deveu-se exactamente às mesmas condições geopolíticas que o Clavis refere no seu texto. Por serem geopolíticas e não conjunturais, essas condições são perenes. Em 1370, portanto, os mesmos problemas de 2008, agora com a acrescida complexidade que o mundo moderno nos traz.
A Inglaterra (ou melhor: a Coroa Inglesa) dessa época (1360-70) era uma potência comercial e marítima, e os seus reis eram também senhores da parte Ocidental da França: a Normandia, o Poitou, a Aquitânia (toda a actual fronteira hispano-francesa), e aliados da Bretanha. Dominavam a navegação na costa Norte. A França (a Coroa Francesa), ainda longe da sua actual configuração, era um território pequeno centrado em Paris e Orleães que procurava expandir-se para o interior e sul do "hexágono", e vigiava com atenção as fronteiras do Leste (cenário de guerra permanente com a "Alemanha" em todas as suas configurações históricas até bem recentemente): potência de vocação continental, assente na agricultura e nas rotas terrestres de comércio que tinham como topo norte as cidades da actual Bélgica e como ponta sul as cidades comerciais da Itália.
Daqui um choque, o habitual choque entre o Mar e a Terra, entre potência marítima e comercial e potência continental. Pouco a pouco, a Biscaia (Norte de Espanha) envolveu-se - o centro da questão era a Normandia, do outro lado do Golfo; compreensivelmente, uma a uma as regiões ou potências cristãs ibéricas nele se envolvera, também. As marítimas, como Portugal (antes dos Descobrimentos, "marítimo" significava a navegação no Atlântico Norte - já não no Mediterrâneo, que estava "cortado" de Portugal pela dominação muçulmana em Gibraltar/Ceuta) alinharam pela Inglaterra: assim também a Galiza (onde as tropas inglesas do Duque de Lencastre, futuro sogro de D. João I, desembarcaram e fizeram quartel-general). Já as regiões de economia "complementar" da da França alinharam por esta: assim Castela e Leão, e a zona "Barcelonesa", Aragão-Catalunha, porque esta em pleno Mediterrãneo (do lado de "lá" de Gibraltar, em complemento ao Sul de França e Itália (Marselha, Génova, etc), interessada no seu comércio.
Daqui, com a Guerra, veio a famosa "Aliança Inglesa", daqui veio o desenvolvimento marítimo de Portugal, e daqui veio por acaso ou predestinação o casamento de D. Fernando com Leonor Teles (que foi a maneira de evitar um casamento com uma princesa castelhana ou francesa) e tudo o que aconteceu depois, incluindo Aljubarrota e o Infante D. Henrique (até no nome dado a este, que era o do bisavô Inglês).
Agora, mais de 600 anos depois, continua actualíssima a questão da "vocação atlântica" de Portugal e da necessidade de escolha entre este caminho e o "Europeu".
Só que...
Em primeiro lugar, o Imperador do Mar e Senhor do Atlântico já não é um simpático príncipe de Lencastre, mas o poderio Norte-Americano, herdeiro para esse efeito da Coroa e dos interesses ingleses;
Em segundo lugar, a Espanha foi dominada por Castela e, agora, por uma frágil aliança entre Castela e a Catalunha, rivais na supremacia ibérica mas muito mais interessadas na (e dependentes da) "Europa" do que no Atlântico.
Em terceiro lugar, a economia portuguesa e a espanhola alcançaram um grau de interdependência fortíssimo, bem mais forte do que presumivelmente se alcançará alguma vez com o Brasil para não dizer com a imprevisível Angola. Note-se, para não ir mais longe, a total ausência de bancos brasileiros em Portugal (e reciprocamente, apesar dos esforços - aliás mal sucedidos, e talvez não por acaso - do banco estatal português), enquanto o Santander ganhou projecção mundial (único banco ibérico a tê-la) à custa da "colonização" bem sucedida dos sistemas financeiros da América Espanhola....
Em quarto lugar, a Europa não são agora os caprichos do Rei de França, mas uma realidade que se estende até Moscovo (poderemos assistir a uma demonstração prática disso se o sistema financeiro russo colapsar, como nos últimos dias ameaça), com ou sem Comunidade e Euro.
Tudo isto significa que o "caminho atlântico" de Portugal teria de começar por o Brasil (ou um número suficiente de brasileiros) se decidir a romper a tutela Norte-Americana e - por paradoxal que isto possa parecer - que Luanda se decidisse também a fazê-lo. E que o Brasil compreenda a situação portuguesa. Se não, o "atlantismo" português terá como destino o "atlantismo" a que já nos habituámos com Durão Barroso, e nada mais do que esse atlantismo. Não se pode ter sol na eira e chuva no nabal, como dizia o meu avô minhoto. Mas também se diz que "para pior já basta assim".
Tudo isto significa também que - agora como em 1370 - a "Espanha" tudo fará para que a Jangada de Pedra se não solte novamente e para que Portugal continue a ser um rectângulo periférico de uma Ibéria que olha já não para França mas para as terras "imperiais" da Alemanha (veja-se o permanente alinhamento da diplomacia espanhola).
E também - agora vou mudar dramaticamente de tom - que temos que decidir (para ser claro: tem o MIL que decidir) se estamos a falar a sério ou a brincar à cabra-cega com o Paracleto ou com a História. Não é que brincar à cabra-cega seja mau em si (valeu-me o meu primeiro e inesquecível beijo infantil...) mas pode ser curto, e ser imprudente. É que, se confio plenamente no primeiro, habituei-me a temer a segunda.
Tenho visto, aqui e noutros lugares, apelos a que Portugal se "liberte da Europa e aproxime do Brasil", justificando depois essa aproximação (ou melhor, o acolhimento dela) com o pretexto de que "o Brasil está morto por pôr um pé na Europa". Se nos libertássemos, o prudentíssimo pé brasileiro arriscava-se a molhar-se no Atlântico - e Atlântico já o Brasil tem. Chuva e nabal, de novo.
Por isso tudo o que diz o Clavis, neste texto que agora comento, sobre a estratégia portuguesa face ao vizinho ibérico - porque ou é uma estratégia que, a ser cumprida, obviamente contribuirá para a implosão do poder castelhano e para a ruptura de laços económicos importantes (os da dominação financeira e energética), ou não é estratégia nenhuma e é apenas uma inofensiva especulação - merece ser cuidadosamente meditado, medido e valorado. Aqui, quero dizer: não o "aqui" português ou o ilimitado "aqui" lusófono, mas aqui entre nós que aqui Mil-ancolicamente vamos escrevendo.
Até porque, se queremos arrumar o mundo, seria bom começar por arrumar a casa; mas também porque, se, como antevejo, o Paulo Borges ou o Paulo Feitais ou muitos dos outros convivas e responsáveis daqui (seja o que for este complexíssimo lugar) me retorquirem que mais vale "desarrumar" o mundo, que arrumadinho demais anda ele - coisa de que não serei o primeiro a discordar! - sugerirei que seja ele então desarrumado de alto a baixo, e desarrumado de uma vez por todas: e para que não seja só o Mundo-que-há a ter uma estratégia, discutamos a sério a proposta do Clavis, e os meios de lhe dar corpo.
2 comentários:
Sempre se repetirá, a menos que aconteça aquela parvoíce da jangada do comunista.
Dom Fernando II, Rei Regente de Portugal teve a inteligência de recusar a coroa de Espanha, swe tivesse aceite dificilmente existiria Portugal independente hoje.
Talvez os iberistas não conheçam a história deste país. Talvez ser culto no que é nosso seja demasiado identitário para eles.
Mas também recusou a coroa da Grécia, afirmando assim a sua fidelidade a Portugal. Um grande homem, estrangeiro e português.
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