Poema de Natal
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
|Vinicius de Moraes
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“Na nutrição natural do corpo humano a substância do pão, e do vinho, não se converte em substância de carne, e sangue? Pois se a Natureza é poderosa para converter pão, e vinho, em carne, e sangue, em espaço de oito horas, porque não será poderoso Deus a convertrer pão, e vinho, em substância e carne, e sangue, em menos tempo? Para confessar este milagre, não é necessário crer que Deus é mais poderoso, que a Natureza: basta conceder que é mais apressado. O que a Natureza faz devagar, porque o não fará Deus um pouco mais depressa?”
|Padre António Vieira, “Sermão do SS. Sacramento (1645)”, in Sermões -I, INCM, Lisboa, 2008, pp.114-115.
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A revolução, aqui como noutros pontos, não pode ser apenas de superfície; se o for, apenas significará para a Humanidade mais um atraso sem razão e mais uma derrota na conquista de uma verdadeira liberdade e da sua coincidência com o bem. É a própria vida que se tem de transformar na sua totalidade, com a morte completa do homem velho nas suas duas características basilares: a de fazer de tudo um ateoria, a substituir a realidade, culpas em que entra em grande parte a filosofia à maneira grega; e da de julgar que só em certas horas ou em determinadas circunstâncias de sua vida ele deve viver de uma forma sacratizada. Não é apenas por ignorância ou desinteresse que o homem vulgar pergunta por que motivo há-de prestar atenção a mais uma filosofia quando todas elas falham uma após outra e quando os filósofos são os últimos a viver segundo suas filosofias; ou por que motivo há-de entender ritos às vezes difícieis, quando alguma coisa mais forte de que todos os impulsos do exterior lhe está exigindo, dentro dele, a sacratização de toda a sua vida.
E é evidente que essa vida se não poderá tornar sagrada e por aí salvar o homem e o mundo enquanto não tivermos entendido e, mais do que entendido, praticado, um princípio basilar: o de que nos cumpre, acima de tudo, não atingir na vida os objectivos de nossa vontade, mas os objectivos da vontade de Deus, isto é, não o que consideramos melhor no mundo segundo o nosso gosto individual, mas o que quem mais vale viu como perfeito para o conjunto dos interesses universais. É relativamente secundário para o alvo de uma perfeita vida religiosa sabermos em que consiste a vontade de Deus; mesmo porque, no querer sabê-la, pode estar oculto o secreto desígnio de ser como se pedíssemos vista de uma mercadoria que depois recusaríamos ou não, segundo os nossos gostos. O que é essencial é que estejamos dispostos a cumpri-la, qualquer que ela venha a ser, sem revoltas nem queixas, embora não sem as lamentosas angústias que de vez em quando ela impõe à nossa fraca natureza humana. A nossa vida, para que realmente seja e não tenha apenas aquela aparência de ser que leva as pessoas a se perguntarem, numa constante tortura, por que razão vivem, deve basear-se numa oferta total à vontade de Deus, a qual, no entanto, não o esqueçamos, só se poderá exercer no mundo através de nossa própria vontade, de nosso próprio zelo, de nossa própria diligência. Seremos os servos de Deus e, por consequência, os seus artífices”.
|Agostinho da Silva, Só Ajustamentos, in Textos e Ensaios Filosóficos -II, Âncora Editora, Lisboa, 1999, pp.121-122.
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A Política, encarada como Poética da transformação do mundo, é inseparável da Práxis, da acção que, desde a sua acepção aristotélica guarda o sentido dum acto que se repercute no Real, tanto no entorno exterior, mas nunca extrínseco, quanto no próprio agente, mesmo quando este não julga residir em si a meta, ou o objectivo, da acção.
Não é possível higienizar o campo da política e encará-lo como estanque ou imune às grandes derivas daquilo a que comumente se chama o horizonte do sagrado ou do religioso. A este propósito é interessante notar que Tocqueville afirma que todas as revoluções políticas são, no fundo, revoluções religiosas, e foi assim que ele viu tanto a revolução americana, como a revolução francesa.
Basta ter em devida conta o lema revolucionário, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, saído da forja do livre-pensador Martinets de Pascoallys, muito provavelmente de origem portuguesa, é uma versão da teoria das três idades de Joaquim de Flora, apresentada sob a forma de emblema e de palavra de ordem para a transformação do mundo. Cada um destes tópicos se assume como uma diacosmese, centrada na transformação do homem, a partir de dentro, ao assumir-se como agenciador da transformação do mundo.
A assepsia onto-teleológica resulta da vitrificação do mundo a partir da cosmovisão positivista que deu corpo ao nihilismo antropolátrico que ganhou direitos de cidadania, principalmente a partir dos meios académicos, na segunda metade do século XIX. A política não seria um assunto de ética, mas de moral, uma moral imposta às massas acéfalas por uma elite de ilumidados, os antepassados ultramodernos dos actuais tecnocratas. A religião seria uma espécie de redil para conter a acefalia da turba não ilustrada, Oliveira Martins é um dos defensores, entre nós, desta tese. Marx faz eco desta visão ao afirmar que a religião é o ópio do povo. Mas isso não impede que as imagens bíblicas constituam o esteio simbólico do marxismo, também ele uma tentativa de trazer para o aqui e o agora a Cidade de Deus, expurgada da figura do Pai, mas concatenada pelo rigorismo retentivo dum Superego colectivo erigido sob o signo da castração e da elisão da presença simbólica da Mãe.
Esta cosmovisão fez a terraplanagem do horizonte ontológico que serviria de base à construção dos guetos, dos campos de extremínio, dos muros, em Berlim ou em Israel, dos regimes racistas, enfim, de todos os dispositivos sócio-políticos que realizam a utopia biologista. Realizar no campo político o que a evolução terá realizado mundo natural.
Os autênticos revolucionários têm que olhar para dentro de si. Com vista a cortarem as amarras, os fios translúcidos que o esforço aracnídeo da metafísica ocidental segregou, encasulando a grácil adveniência do amor, impossibilitando a plenificação do que, sendo húmus e fermento, há em cada homem como afirmação do ilimitado, como doação de si, para lá das muralhas, desnecessárias e auto-mutilantes, do egotismo reificante.
Daqui deriva a autêntica insubmissão: o estar ao serviço do que é mais, do que escapa à trama desapropriadora que instaura a ilusão de um mundo independente das energias diacosmésicas que emergem do núcleo insuperável de onde emerge a supremacia ontológica de todos os homens, todos iguais na sua realeza intrínseca, tanto os mais rapaces usurpadores, como os que são vitimados pela pobreza, pela guerra e pela indiferença dos que têm mais.
Uma poética do espaço público e do tempo histórico assente na teurgia da transformação do homem e do mundo, a partir do âmago do que, de forma extrínseca, definimos como realidade, é o que é necessário para que se instaure uma cultura verdadeiramente universalista e afirmadora do que há de próprio no nascermos humanos num horizonte de proximidade.
E é preciso não esquecer que o autêntico universalismo pressupõe, em termos simbólicos, como horizonte último de inteligibilidade, a ideia de pluriverso: o todo não pode conter tudo, o tudo é sempre mais e inabarcável. Daí a força destes versos da Mensagem:
“Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou 'spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.
Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.”
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
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2 comentários:
Retenho que o domínio da política, sobretudo nos momentos revolucionários, nunca foi imune ao sagrado ou ao religioso, mas observo que quase sempre o foi por perversão desse sagrado ou religioso...
É claro que sim.
E talvez isso se fique a dever, em praticamente todas as situações, pela alienação e pela denegação, assentes na recusa do sagrado como sagrado (e da ideia de que o sagrado é já em si revolucionário). Isto sem confundir, ou identificar de forma rígida, o horizonte do sagrado com a esfera das religões positivas, das quais muitos movimentos políticos são simulacros.
Daí a importância, digamos, da via interior.
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